23
de junho de 2015 | N° 18203
CARPINEJAR
Batizado
do tênis
Mantenho
até hoje pânico de sair na rua com tênis novo.
As
duas décadas de experiência desde a escola não aliviaram a ansiedade.
Minha
vontade é comprar tênis usado, para não sofrer com o receio infantil que se
esconde intacto nos meus olhos de meia-idade. Sofria com o batizado dos
colegas. Bastava aparecer com um tênis branquinho que a turma fazia fila para
batizar.
Nunca
estudei em seminário, mas a turma virava um bando de padres sedentos para
aspergir lama no recém-nascido. Havia um delator espertinho, que gritava ao
tocar o sinal:
–
Fabrício está de tênis novo! Eu procurava argumentar em vão: – Só lavei, só
lavei.
Experimentava
no recreio um corredor humano que não permitia fuga. Sem apelação, escapatória,
adiamento, liminar. Fechavam a porta.
Em
minutos, o tênis ficava barrento, sujo, com manchas pretas de piche. Mais
humilhante do que um dia de chuva. Recebia o mapa de Porto Alegre nos cadarços
– herança das longas caminhadas das crianças, que vinham de longe para a
escola, atravessando vários bairros a pé.
Meus
dedos terminavam esmagados e achatados. São absolutamente tortos devido a esse
trauma silencioso.
O
primeiro que se aproximava para inaugurar era gentil, já os demais compensavam
o atraso com força e truculência. Aproveitavam o contexto para me chutar e
descontar diferenças de brigas históricas do futebol. Os pisões se transmudavam
em coices.
Adoecia
de remorso ao voltar para casa. A mãe protestava injustamente, ralhava que
joguei bola logo na estreia do presente, que não cuidava de minhas coisas e não
compraria mais nada.
Tratava-se
de uma ameaça séria numa época de recatado consumismo e de poucas opções (ou se
adquiria Conga ou Kichute ou Rainha).
Eu
não tinha outro tênis, era um só até arrebentar, até aparecerem as unhas, até a
sola se esfacelar como pão molhado.
Pai
e mãe analisavam o estado dos nossos calçados diante da reivindicação de que
precisávamos de um segundo par. No jantar, enfrentávamos uma vistoria tensa,
algo como reunião para melhoria de salários entre CUT e sindicato patronal.
Os
pais conversavam, cochichavam e vinham com o terrível parecer: – Dá para usar
mais uma semana. A semana durava um mês e meio.
Os
tempos de quem sofre e de quem cuida são sempre diferentes.