21 de junho de 2015 | N° 18201
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Até a língua
Que o Brasil vive sob uma centralização absurda, todo mundo
sabe, ou ao menos todo mundo que desconfia do poder central. Gaúchos em geral
percebem isso, ainda mais se cuidam de lembrar a força arrebatadora com que a
autonomia dos Estados veio sendo amassada. O mais recente golpe pode ser
simbolizado na Lei Kandir: o governo federal, no tempo do Collor, 1996, fez
passar uma nova lei que isentou de ICMS, um tributo estadual, os produtos de
exportação.
Quem ganhou? A conta federal, a balança comercial do país,
com o aumento das exportações, desoneradas daquele tributo. Quem perdeu? Os
Estados, especialmente os exportadores, como o Rio Grande do Sul, cujo governo
perdeu, sem nunca mais recuperar, uma boa capacidade de se financiar e de ter
dinheiro para qualquer coisa. (A lei Kandir previa uma indenização, uma
compensação aos Estados exportadores, que receberiam do governo federal, ao
final de cada ano fiscal, uma parte do que teriam cobrado em ICMS. Nem isso o
governo federal paga, desde então.)
Centralização, eis o ponto. A história desse fenômeno vai
longe. Terá a ver primeiro com a tradição romana, depois com Portugal e seu
jeito de lidar com seu imenso (e frágil) império, e mais adiante com nossa história
nacional, marcada desde sempre por uma fortíssima centralização administrativa (e
econômica), que cevava apenas uns pequenos grupos de elite em cada província (basta
pensar no caso dos Estados nordestinos, considerados genericamente, em que
escassos clãs se revezam no poder desde a Independência, ou desde a República) e
impedia a formação de classes médias.
Os exemplos são vários. Logo após o 7 de Setembro, se
convoca uma assembleia constituinte, em que as províncias teriam voz para
finalmente reverter a centralidade do tempo colonial. Discutem e tal, e, por
motivos diretamente ligados ao vezo centralista, D. Pedro dissolve a
constituinte e define sozinho a constituição do novo país. Províncias com
alguma experiência social mais forte, como Pernambuco e Rio Grande do Sul, se
rebelam, mas no fim perdem. No começo da república a mesma coisa. E assim até agora.
Pois na França, num campo aparentemente tão trivial e sereno
quanto a língua, o país vive um dilema inesperado, ligado à centralização, que é
também forte historicamente. Ao longo do tempo, Paris impôs o francês a todos,
e precisou fazer força para derrubar línguas menores, regionais, como o
alsaciano e o bretão. Esse processo se fortaleceu especialmente depois da
Revolução Francesa, e foi cruel – para além do crime histórico de extinguir uma
língua, em si, estipulou-se demissão e pena de seis meses de cadeia para
funcionários públicos que falassem ou escrevessem outra língua que não o francês.
Agora, o novo dilema: a França deve regularizar internamente
sua adesão externa, na União Europeia, à Carta das Línguas Regionais e Minoritárias,
que justamente preserva o direito de usar outras línguas que não as do poder
central. É matéria vital para vários dos países-membros. A França se reivindica
diferente, por exemplo, da Espanha (que precisou reconhecer o catalão e o
galego como línguas oficiais, ao lado do castelhano) e de outros países multilíngues,
mas vai ter que rebolar para acomodar essa contradição.
Enquanto isso, no Brasil, assistimos ao patético espetáculo
da ultracentralização, com ministro e até presidente entregando trator lá no
fim do mundo ou inaugurando acesso asfaltado em cidadezinha extraviada no sertão.
E ninguém para discutir isso a sério, para viabilizar alguma forma de reverter
isso, à esquerda e à direita – todos os partidos parecem se contentar ou com o
simples fato de pegar uma beira nessa situação, via fundo partidário, ou com o
fato ou a perspectiva de exercer o poder e faturar tendo na mão a chave do
cofre.
Não, não sou separatista, nem desconheço que um país precisa
redistribuir riqueza entre regiões mais e menos bem sucedidas. Mas quero maior
autonomia para os Estados. Nem que seja pelo singelo motivo de que cidades como
Porto Alegre são de verdade, têm esquina, telhado vermelho e povo capaz de se
manifestar e pressionar o poder, ao passo que Brasília...