sábado, 3 de maio de 2014

A versão da promotora

A responsável pelo processo do menino Bernardo Boldrini afirma que testemunhas fizeram relatos diferentes à imprensa e à Justiça

THAIS LAZZERI E VINÍCIUS GORCZESKI
02/05/2014 17h58
 
Dinamárcia Maciel de Oliveira (Foto: Sabrina Mallmann/ÉPOCA)
(Foto: Sabrina Mallmann/ÉPOCA)


As ruas de Três Passos, cidade do Rio Grande do Sul, foram tomadas pelo luto. Há duas semanas,  morreu o menino Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, morador da cidade, vítima de um crime bárbaro. Ele foi encontrado morto dentro de um saco de lixo, enterrado às margens do Rio Mico, depois de  ficar desaparecido por uma semana. Os suspeitos do assassinato, como em outros casos recentes da história do país, eram seu pai, Leandro Boldrini, e a madrasta, Graciele.

Nesse enredo, foi envolvida também Edelvânia Wirganovicz, assistente social e amiga da madrasta. Os três estão presos temporariamente em Três Passos. Depois da morte, entraram em cena a avó materna de Bernardo, Jussara Uglione, e Elaine Rauber, que foi babá de Bernardo há cinco anos, quando a mãe biológica dele era viva. À imprensa, a babá disse que a madrasta tentara asfixiar o enteado. A avó afirmou que a Justiça falhou por não coletar o depoimento da babá em novembro do ano passado, quando começou um processo por abandono. A promotora responsável pelo caso, Dinamárcia Maciel de Oliveira, conta outra versão da história.

Em quase duas horas de entrevista a ÉPOCA, Dinamárcia lança dúvidas sobre o depoimento da babá, alçada espontaneamente à condição de testemunha-cha­ve do caso. Em várias entrevistas, a babá repetiu a acusação de asfixia contra a madrasta e disse que o pai de Bernardo se tornou negligente depois do segundo casamento. À polícia, o testemunho dela, feito em segredo de justiça, durante o desaparecimento do menino, é diferente. Dinamárcia pediu anulação do segredo de justiça do depoimento da babá em razão dessas contradições.

No depoimento, obtido por ÉPOCA, a babá afirmou à polícia que, apesar do que andara dizendo à avó de Bernardo e à imprensa, não vira o menino ser “asfixiado por alguém”, nem  o ouvira queixar-se disso. No mesmo depoimento, diz que, quando a mãe do menino era viva, “quem mais dava atenção à criança era o pai”, porque a mãe era “avoada”. À luz dessas contradições, Dinamárcia questiona a validade do testemunho. “Na minha opinião, ela (a babá) não é uma testemunha idônea”, diz. Em entrevista a ÉPOCA, a babá Elaine afirmou que a mãe biológica de Bernardo era “bem atenciosa” e confirmou a tentativa de asfixia, segundo ela relatada por Bernardo. Disse ter omitido essas informações no depoimento à polícia por medo de represálias.

Outra ressalva da promotora Dinamárcia diz respeito à participação da avó, Jussara, de 73 anos. À imprensa, Jussara reclamou do trabalho da Justiça por não ter ouvido a ex-babá. Dinamárcia diz que, em novembro de 2013, quando chegaram a ela as denúncias sobre Bernardo, foram tomados depoimentos de 15 pessoas próximas ao garoto, além de um grupo do Colégio Ipiranga, onde ele estudava. Ela afirma que ninguém – nem vizinhos, nem amigos da família – confirmou as denúncias de mau comportamento da madrasta. Bernardo foi ouvido cinco vezes e, segundo Dinamárcia, desmentiu as acusações de violência física contra a madrasta. Nessa ocasião, a babá não foi ouvida.

Dinamárcia diz que o comportamento da avó em relação ao neto tampouco parece coerente com alguém que percebe uma criança em risco. Primeiro, por ter desmarcado a data da coleta do depoimento – de 3 de janeiro deste ano para o dia 20 –, alegando problemas de saúde. Não parecia, diz ela, haver tanta urgência de socorrer o menino. No depoimento, a avó não demonstra ansiedade em relação à proteção do neto, nem fala sobre a conduta da madrasta. Segundo Dinamárcia, quando a criança corre riscos, o pedido de socorro é o ponto de partida do depoimento.

“Se meu neto corre risco efetivo, não reportarei isso no fim do processo, será a primeira coisa que vou dizer: ‘Promotora, socorro, o menino está correndo perigo na mão da madrasta’”, afirma. A menção à história da babá de asfixia é feita apenas indiretamente, no fim do depoimento. Lá, a avó diz que confirma as informações enviadas à promotoria, via e-mail, por seu advogado. Nesse e-mail, constava a história de tentativa de asfixia e o abandono sofrido pelo neto. “Ela não cita a babá no depoimento, porque ratifica todos os e-mails que esclarecem suas afirmações”, diz Marlon Balbon Taborda, advogado da avó.

As contradições nos depoimentos (Foto: reprodução)

Dinamárcia diz que o afastamento da avó do neto por quatro anos também é estranho, sobretudo para quem afirma que o menino era vítima de negligência. A avó de Bernardo entrou com um processo  para visitar o neto em 2010, mas em 2011 desistiu e nunca mais recorreu à Justiça. A documentação referente ao caso foi retirada do Fórum por Taborda, advogado da avó, neste ano. Procurado, ele afirmou que a avó desistiu do processo “para não ser pivô de uma separação” no novo casamento do genro, Leandro. Apesar de ela afirmar à imprensa que não via o neto desde 2010, em seu depoimento à polícia, em janeiro deste ano, ela diz que tivera contato “recente” com o menino.

O processo de Bernardo chegou à promotora Dinamárcia em novembro de 2013 por meio de uma assistente social e do Conselho Tutelar. A comunidade dizia que o filho de um médico, Bernardo, era negligenciado pela família. A partir dos relatos, Dinamárcia pediu a coleta de testemunhos. No dia 28 de novembro, chegaram os relatórios do Conselho Tutelar e do Colégio Ipiranga, onde Bernardo estudava. No dia 3 de dezembro, veio o parecer da psicóloga que entrevistou Bernardo. No dia 6, Taborda, o advogado da avó, fez o primeiro contato com Dinamárcia. Antes de ela montar o processo e apresentá-lo ao Fórum, o próprio Bernardo apareceu em sua sala com um pedido peculiar: queria uma nova  família.

Bernardo, diz ela, tinha escolhido um casal de amigos do pai. “Ele disse que queria uma família com amor”, afirma Dinamárcia. Como existia a possibilidade de a família não aceitar a guarda provisória do garoto, Dinamárcia perguntou a Bernardo se ele aceitaria ficar com a avó. Bernardo concordou, mas disse que o pai não se dava bem com a avó e, por isso, ele, Bernardo, não convivia com ela.

Dinamárcia diz que aproveitou para esclarecer pontos importantes na trajetória do garoto, o primeiro a chegar sozinho a sua sala, em 13 anos de trabalho, para pedir ajuda. Em uma hora de conversa, diz ela, Bernardo confirmou que ficava para fora de casa porque não tinha as chaves e, no jantar, preparava sua torrada, porque a madrasta não o fazia. Confirmou que a madrasta o ofendia verbalmente, o chamava de bruxo, diabo e veadinho. O pai, segundo Bernardo, chegava tarde do trabalho e brigava com ele. Bernardo disse, segundo Dinamárcia, que nunca fora machucado fisicamente por nenhum dos dois.

Para dar início ao processo por abandono, Dinamárcia precisava saber se a família sugerida por Bernardo o aceitaria. Uma assistente social os procurou. Com receio de se indisporem com Leandro, eles se negaram. Dinamárcia montou a ação pedindo que a avó ficasse com a guarda temporária do neto, enquanto o pai e a madrasta seriam avaliados compulsoriamente. Ou obedeciam, ou a avó ficaria com a guarda definitiva. Dinamárcia diz que mandou uma assistente social visitar a avó para saber se ela tinha condições de criar um pré-ado­lescente. Ela disse que contrataria alguém para ajudá-la. Em 31 de janeiro, a ação foi protocolada no Fórum. O juiz Fernando Vieira dos Santos marcou a audiência para dali a 15 dias.

Para evitar assédio a Bernardo, o pai, Leandro, foi informado e intimado apenas uma hora antes da audiência. Bernardo já estava no Fórum. Ao contrário do que sugeriu Dinamárcia na ação, o juiz não convocou a avó. O pai de Bernardo, diz Dinamárcia, mostrou-se surpreso. Confirmou que a madrasta e o menino não se davam bem e disse estar disposto a lutar pelo filho. Não queria o menino longe dele. Bernardo foi ouvido em outra sala. Diante da explicação do juiz sobre o desejo do pai, Dinamárcia diz que o menino ficou feliz.

Gostou de saber que o pai não o queria longe e aceitou dar-lhe uma chance. “Ele fez algumas exigências. Queria um aquário, ficar mais tempo com o pai e ser bem tratado pela madrasta”, diz Dinamárcia. O teste familiar duraria 90 dias. O juiz entendeu que a família não precisava ser monitorada por uma assistente social, como Dinamárcia sugeriu. O menino foi morto 60 dias depois.

A decisão do juiz, dizem advogados ouvidos por ÉPOCA, é comum e segue a legislação brasileira. A lei prioriza a permanência da criança na família biológica. Como não havia relato ou prova de maus-tratos ou violência física, o juiz entendeu que o laço poderia ser mantido. “Sempre parto do pressuposto de que um pai não maltratará um filho”, disse o juiz. A assessoria de comunicação do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou o pedido de entrevista feito por ÉPOCA a ele. “A negligência é sempre subestimada. A Justiça só se preocupa com a violência física”, afirma o advogado do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente Ariel de Castro Alves. “Quando há violência, a Justiça reage rápido.” Para Dinamárcia, as razões são mais humanas: “Quando não há amor, qualquer coisa pode acontecer”.

A última vez em que Dinamárcia viu Bernardo foi três dias antes de seu desaparecimento. Ele passava perto da garagem do Fórum, acompanhado de um adulto. Ela conta que Bernardo sorriu e acenou. “Ele parecia bem”, diz Dinamárcia. Desde a morte do garoto, ela repassa mentalmente, todos os dias, sua conduta durante o caso. “Não teria feito nada diferente.

Propus em favor de Bernardo o remédio jurídico mais forte que tinha, o afastamento imediato da família.” Ela não questiona a decisão do juiz. Para Dinamárcia, ele também decidiu com base na lei e nas informações que tinha. O encaminhamento poderia ser outro, diz ela, se existissem outras provas e denúncias: “Se alguém realmente sabia de alguma coisa e não comunicou para não se indispor, foi omisso.”

Os suspeitos (Foto: reprodução)

(Fotos: reprodução)