A versão da
promotora
A
responsável pelo processo do menino Bernardo Boldrini afirma que testemunhas
fizeram relatos diferentes à imprensa e à Justiça
THAIS
LAZZERI E VINÍCIUS GORCZESKI
02/05/2014
17h58
Dinamárcia
Maciel de Oliveira (Foto: Sabrina Mallmann/ÉPOCA)
(Foto:
Sabrina Mallmann/ÉPOCA)
As
ruas de Três Passos, cidade do Rio Grande do Sul, foram tomadas pelo luto. Há
duas semanas, morreu o menino Bernardo
Uglione Boldrini, de 11 anos, morador da cidade, vítima de um crime bárbaro.
Ele foi encontrado morto dentro de um saco de lixo, enterrado às margens do Rio
Mico, depois de ficar desaparecido por
uma semana. Os suspeitos do assassinato, como em outros casos recentes da
história do país, eram seu pai, Leandro Boldrini, e a madrasta, Graciele.
Nesse
enredo, foi envolvida também Edelvânia Wirganovicz, assistente social e amiga
da madrasta. Os três estão presos temporariamente em Três Passos. Depois da
morte, entraram em cena a avó materna de Bernardo, Jussara Uglione, e Elaine
Rauber, que foi babá de Bernardo há cinco anos, quando a mãe biológica dele era
viva. À imprensa, a babá disse que a madrasta tentara asfixiar o enteado. A avó
afirmou que a Justiça falhou por não coletar o depoimento da babá em novembro
do ano passado, quando começou um processo por abandono. A promotora
responsável pelo caso, Dinamárcia Maciel de Oliveira, conta outra versão da
história.
Em quase
duas horas de entrevista a ÉPOCA, Dinamárcia lança dúvidas sobre o depoimento
da babá, alçada espontaneamente à condição de testemunha-chave do caso. Em
várias entrevistas, a babá repetiu a acusação de asfixia contra a madrasta e
disse que o pai de Bernardo se tornou negligente depois do segundo casamento. À
polícia, o testemunho dela, feito em segredo de justiça, durante o
desaparecimento do menino, é diferente. Dinamárcia pediu anulação do segredo de
justiça do depoimento da babá em razão dessas contradições.
No
depoimento, obtido por ÉPOCA, a babá afirmou à polícia que, apesar do que
andara dizendo à avó de Bernardo e à imprensa, não vira o menino ser “asfixiado
por alguém”, nem o ouvira queixar-se
disso. No mesmo depoimento, diz que, quando a mãe do menino era viva, “quem
mais dava atenção à criança era o pai”, porque a mãe era “avoada”. À luz dessas
contradições, Dinamárcia questiona a validade do testemunho. “Na minha opinião,
ela (a babá) não é uma testemunha idônea”, diz. Em entrevista a ÉPOCA, a babá
Elaine afirmou que a mãe biológica de Bernardo era “bem atenciosa” e confirmou
a tentativa de asfixia, segundo ela relatada por Bernardo. Disse ter omitido
essas informações no depoimento à polícia por medo de represálias.
Outra
ressalva da promotora Dinamárcia diz respeito à participação da avó, Jussara,
de 73 anos. À imprensa, Jussara reclamou do trabalho da Justiça por não ter
ouvido a ex-babá. Dinamárcia diz que, em novembro de 2013, quando chegaram a
ela as denúncias sobre Bernardo, foram tomados depoimentos de 15 pessoas
próximas ao garoto, além de um grupo do Colégio Ipiranga, onde ele estudava.
Ela afirma que ninguém – nem vizinhos, nem amigos da família – confirmou as
denúncias de mau comportamento da madrasta. Bernardo foi ouvido cinco vezes e,
segundo Dinamárcia, desmentiu as acusações de violência física contra a
madrasta. Nessa ocasião, a babá não foi ouvida.
Dinamárcia
diz que o comportamento da avó em relação ao neto tampouco parece coerente com
alguém que percebe uma criança em risco. Primeiro, por ter desmarcado a data da
coleta do depoimento – de 3 de janeiro deste ano para o dia 20 –, alegando
problemas de saúde. Não parecia, diz ela, haver tanta urgência de socorrer o
menino. No depoimento, a avó não demonstra ansiedade em relação à proteção do
neto, nem fala sobre a conduta da madrasta. Segundo Dinamárcia, quando a
criança corre riscos, o pedido de socorro é o ponto de partida do depoimento.
“Se
meu neto corre risco efetivo, não reportarei isso no fim do processo, será a
primeira coisa que vou dizer: ‘Promotora, socorro, o menino está correndo
perigo na mão da madrasta’”, afirma. A menção à história da babá de asfixia é
feita apenas indiretamente, no fim do depoimento. Lá, a avó diz que confirma as
informações enviadas à promotoria, via e-mail, por seu advogado. Nesse e-mail,
constava a história de tentativa de asfixia e o abandono sofrido pelo neto.
“Ela não cita a babá no depoimento, porque ratifica todos os e-mails que
esclarecem suas afirmações”, diz Marlon Balbon Taborda, advogado da avó.
As
contradições nos depoimentos (Foto: reprodução)
Dinamárcia diz que o afastamento da avó do neto por
quatro anos também é estranho, sobretudo para quem afirma que o menino era
vítima de negligência. A avó de Bernardo entrou com um processo para visitar o neto em 2010, mas em 2011
desistiu e nunca mais recorreu à Justiça. A documentação referente ao caso foi
retirada do Fórum por Taborda, advogado da avó, neste ano. Procurado, ele
afirmou que a avó desistiu do processo “para não ser pivô de uma separação” no
novo casamento do genro, Leandro. Apesar de ela afirmar à imprensa que não via
o neto desde 2010, em seu depoimento à polícia, em janeiro deste ano, ela diz
que tivera contato “recente” com o menino.
O
processo de Bernardo chegou à promotora Dinamárcia em novembro de 2013 por meio
de uma assistente social e do Conselho Tutelar. A comunidade dizia que o filho
de um médico, Bernardo, era negligenciado pela família. A partir dos relatos,
Dinamárcia pediu a coleta de testemunhos. No dia 28 de novembro, chegaram os
relatórios do Conselho Tutelar e do Colégio Ipiranga, onde Bernardo estudava.
No dia 3 de dezembro, veio o parecer da psicóloga que entrevistou Bernardo. No
dia 6, Taborda, o advogado da avó, fez o primeiro contato com Dinamárcia. Antes
de ela montar o processo e apresentá-lo ao Fórum, o próprio Bernardo apareceu
em sua sala com um pedido peculiar: queria uma nova família.
Bernardo,
diz ela, tinha escolhido um casal de amigos do pai. “Ele disse que queria uma
família com amor”, afirma Dinamárcia. Como existia a possibilidade de a família
não aceitar a guarda provisória do garoto, Dinamárcia perguntou a Bernardo se
ele aceitaria ficar com a avó. Bernardo concordou, mas disse que o pai não se
dava bem com a avó e, por isso, ele, Bernardo, não convivia com ela.
Dinamárcia
diz que aproveitou para esclarecer pontos importantes na trajetória do garoto,
o primeiro a chegar sozinho a sua sala, em 13 anos de trabalho, para pedir
ajuda. Em uma hora de conversa, diz ela, Bernardo confirmou que ficava para
fora de casa porque não tinha as chaves e, no jantar, preparava sua torrada,
porque a madrasta não o fazia. Confirmou que a madrasta o ofendia verbalmente,
o chamava de bruxo, diabo e veadinho. O pai, segundo Bernardo, chegava tarde do
trabalho e brigava com ele. Bernardo disse, segundo Dinamárcia, que nunca fora
machucado fisicamente por nenhum dos dois.
Para
dar início ao processo por abandono, Dinamárcia precisava saber se a família
sugerida por Bernardo o aceitaria. Uma assistente social os procurou. Com
receio de se indisporem com Leandro, eles se negaram. Dinamárcia montou a ação
pedindo que a avó ficasse com a guarda temporária do neto, enquanto o pai e a
madrasta seriam avaliados compulsoriamente. Ou obedeciam, ou a avó ficaria com
a guarda definitiva. Dinamárcia diz que mandou uma assistente social visitar a
avó para saber se ela tinha condições de criar um pré-adolescente. Ela disse
que contrataria alguém para ajudá-la. Em 31 de janeiro, a ação foi protocolada
no Fórum. O juiz Fernando Vieira dos Santos marcou a audiência para dali a 15
dias.
Para
evitar assédio a Bernardo, o pai, Leandro, foi informado e intimado apenas uma
hora antes da audiência. Bernardo já estava no Fórum. Ao contrário do que
sugeriu Dinamárcia na ação, o juiz não convocou a avó. O pai de Bernardo, diz
Dinamárcia, mostrou-se surpreso. Confirmou que a madrasta e o menino não se
davam bem e disse estar disposto a lutar pelo filho. Não queria o menino longe
dele. Bernardo foi ouvido em outra sala. Diante da explicação do juiz sobre o
desejo do pai, Dinamárcia diz que o menino ficou feliz.
Gostou
de saber que o pai não o queria longe e aceitou dar-lhe uma chance. “Ele fez
algumas exigências. Queria um aquário, ficar mais tempo com o pai e ser bem
tratado pela madrasta”, diz Dinamárcia. O teste familiar duraria 90 dias. O
juiz entendeu que a família não precisava ser monitorada por uma assistente
social, como Dinamárcia sugeriu. O menino foi morto 60 dias depois.
A
decisão do juiz, dizem advogados ouvidos por ÉPOCA, é comum e segue a
legislação brasileira. A lei prioriza a permanência da criança na família
biológica. Como não havia relato ou prova de maus-tratos ou violência física, o
juiz entendeu que o laço poderia ser mantido. “Sempre parto do pressuposto de
que um pai não maltratará um filho”, disse o juiz. A assessoria de comunicação
do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou o pedido de entrevista feito
por ÉPOCA a ele. “A negligência é sempre subestimada. A Justiça só se preocupa
com a violência física”, afirma o advogado do Conselho Estadual dos Direitos da
Criança e do Adolescente Ariel de Castro Alves. “Quando há violência, a Justiça
reage rápido.” Para Dinamárcia, as razões são mais humanas: “Quando não há
amor, qualquer coisa pode acontecer”.
A
última vez em que Dinamárcia viu Bernardo foi três dias antes de seu
desaparecimento. Ele passava perto da garagem do Fórum, acompanhado de um
adulto. Ela conta que Bernardo sorriu e acenou. “Ele parecia bem”, diz
Dinamárcia. Desde a morte do garoto, ela repassa mentalmente, todos os dias,
sua conduta durante o caso. “Não teria feito nada diferente.
Propus
em favor de Bernardo o remédio jurídico mais forte que tinha, o afastamento
imediato da família.” Ela não questiona a decisão do juiz. Para Dinamárcia, ele
também decidiu com base na lei e nas informações que tinha. O encaminhamento
poderia ser outro, diz ela, se existissem outras provas e denúncias: “Se alguém
realmente sabia de alguma coisa e não comunicou para não se indispor, foi
omisso.”
Os
suspeitos (Foto: reprodução)
(Fotos:
reprodução)