JOÃO PEREIRA COUTINHO
A
vitória de Khomeini
O Ocidente chegou a tal ponto de covardia moral que qualquer
crítica sobre o Outro será um 'preconceito'
LONDRES - Leio nesta Folha que o governo iraquiano pretende
aprovar nova legislação matrimonial para mulheres xiitas. "Mulheres"
é força de expressão: no Iraque, o casamento era possível para maiores de 18
anos.
Agora, com a provável reeleição do premiê Nurial-Maliki, a
ideia é passar para metade: com nove anos, a noiva pode subir ao altar, cumprir
todos os desejos do marido e, caso o organismo o permita, engravidar.
Mas não pense que a nova lei "desprotege" os
direitos das "mulheres" de nove anos: existe sempre a possibilidade
de divórcio para elas desde que o marido seja impotente ou, melhor ainda,
vítima de castração. Imagino que, caso a castração seja efetuada pela própria
"mulher" de nove anos, o caso não seja pacífico nos tribunais religiosos
locais.
Confrontado com essa notícia, um sujeito racionalmente
equilibrado dirá que a nova lei não é, em rigor, uma lei matrimonial. É uma
expressão de selvageria, sancionando o abuso de crianças --ou, para não usar
eufemismos, permitindo a violação pedófila para os grandes machos do Iraque,
que temem sexualmente as mulheres adultas e por isso preferem caçar na escola
primária.
Mas o Ocidente chegou a um tal ponto de covardia moral e
miséria intelectual que qualquer crítica sobre o Outro será sempre um
"preconceito" --e, pior que isso, um crime. Melhor não dizer nada.
Que o diga Paul Weston. Esclarecimento: o sr. Weston é um
político britânico ligeiramente amalucado que se candidata às eleições
europeias pelo extremista Liberty GB. As ideias do homem, que oscilam entre o
ridículo e o lunático, não fazem a minha praia.
Mas um episódio recente fez manchetes nos jornais aqui de
Londres: quando fazia campanha nas ruas, Paul Weston cometeu a imprudência de
ler um trecho de Winston Churchill onde o antigo premiê britânico tecia
considerações pouco simpáticas sobre os muçulmanos.
Foi o que bastou para que a polícia chegasse ao local e
enfiasse Weston na cadeia.
Lendo o trecho em questão, não há nele qualquer incitamento
ao ódio racial --e, pelos padrões do excêntrico Churchill, a prosa é
relativamente anódina.
Mas o espantoso da situação é que o país que nos deu John
Stuart Mill --um dos grandes defensores da liberdade, e sobretudo da liberdade
para ofender terceiros-- considera que é função do seu governo proteger a sensibilidade
de grupos ou minorias de tudo aquilo que as desagrada ou ofende.
Como é evidente, o problema aqui não está no sr. Paul
Weston, por mais desagradável que a criatura seja. Está no próprio texto de
Churchill --e nos milhares de textos da cultura ocidental nos quais muçulmanos,
judeus, cristãos, hindus, budistas, índios, negros, druidas, fadas ou gnomos
são tratados com "desrespeito".
Quem prende um político por ler um desses trechos pode, pela
mesma ordem de ideias, censurar qualquer texto, qualquer filme, qualquer
quadro, qualquer escultura, qualquer peça de teatro que ofenda a sensibilidade
dos mais sensíveis. O resultado lógico desse processo psicótico é a destruição
retroativa da cultura que sobreviveu até nós.
Há precisamente 25 anos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, sem
ler "Os Versos Satânicos" de Salman Rushdie, condenou o escritor à
morte por ofensas ao Profeta e ofereceu US$ 1,5 milhão a quem executasse o
serviço.
Khomeini está morto, Rushdie está vivo e os otimistas
afirmam que, na luta entre a escuridão e a luz, a luz acabou por vencer.
Os otimistas estão errados. Para começar, a
"fatwa" de Khomeini continua válida sobre a cabeça de Rushdie. E,
depois, mesmo em 1989 não faltaram escritores ocidentais que, entre a escuridão
e a luz, optaram pelas trevas.
A revista "Vanity Fair", para celebrar a data,
lembra o caso de John Le Carré, que escreveu um dos textos mais sabujos contra
Rushdie (e "compreendendo" o desagrado do aiatolá). Eu já conhecia
esse caso e confesso que desde 1989 não entra um único romance de Le Carré aqui
em casa.