terça-feira, 6 de maio de 2014

JOÃO PEREIRA COUTINHO

A vitória de Khomeini

O Ocidente chegou a tal ponto de covardia moral que qualquer crítica sobre o Outro será um 'preconceito'

LONDRES - Leio nesta Folha que o governo iraquiano pretende aprovar nova legislação matrimonial para mulheres xiitas. "Mulheres" é força de expressão: no Iraque, o casamento era possível para maiores de 18 anos.

Agora, com a provável reeleição do premiê Nurial-Maliki, a ideia é passar para metade: com nove anos, a noiva pode subir ao altar, cumprir todos os desejos do marido e, caso o organismo o permita, engravidar.

Mas não pense que a nova lei "desprotege" os direitos das "mulheres" de nove anos: existe sempre a possibilidade de divórcio para elas desde que o marido seja impotente ou, melhor ainda, vítima de castração. Imagino que, caso a castração seja efetuada pela própria "mulher" de nove anos, o caso não seja pacífico nos tribunais religiosos locais.

Confrontado com essa notícia, um sujeito racionalmente equilibrado dirá que a nova lei não é, em rigor, uma lei matrimonial. É uma expressão de selvageria, sancionando o abuso de crianças --ou, para não usar eufemismos, permitindo a violação pedófila para os grandes machos do Iraque, que temem sexualmente as mulheres adultas e por isso preferem caçar na escola primária.

Mas o Ocidente chegou a um tal ponto de covardia moral e miséria intelectual que qualquer crítica sobre o Outro será sempre um "preconceito" --e, pior que isso, um crime. Melhor não dizer nada.

Que o diga Paul Weston. Esclarecimento: o sr. Weston é um político britânico ligeiramente amalucado que se candidata às eleições europeias pelo extremista Liberty GB. As ideias do homem, que oscilam entre o ridículo e o lunático, não fazem a minha praia.

Mas um episódio recente fez manchetes nos jornais aqui de Londres: quando fazia campanha nas ruas, Paul Weston cometeu a imprudência de ler um trecho de Winston Churchill onde o antigo premiê britânico tecia considerações pouco simpáticas sobre os muçulmanos.

Foi o que bastou para que a polícia chegasse ao local e enfiasse Weston na cadeia.

Lendo o trecho em questão, não há nele qualquer incitamento ao ódio racial --e, pelos padrões do excêntrico Churchill, a prosa é relativamente anódina.

Mas o espantoso da situação é que o país que nos deu John Stuart Mill --um dos grandes defensores da liberdade, e sobretudo da liberdade para ofender terceiros-- considera que é função do seu governo proteger a sensibilidade de grupos ou minorias de tudo aquilo que as desagrada ou ofende.

Como é evidente, o problema aqui não está no sr. Paul Weston, por mais desagradável que a criatura seja. Está no próprio texto de Churchill --e nos milhares de textos da cultura ocidental nos quais muçulmanos, judeus, cristãos, hindus, budistas, índios, negros, druidas, fadas ou gnomos são tratados com "desrespeito".

Quem prende um político por ler um desses trechos pode, pela mesma ordem de ideias, censurar qualquer texto, qualquer filme, qualquer quadro, qualquer escultura, qualquer peça de teatro que ofenda a sensibilidade dos mais sensíveis. O resultado lógico desse processo psicótico é a destruição retroativa da cultura que sobreviveu até nós.

Há precisamente 25 anos, o aiatolá Ruhollah Khomeini, sem ler "Os Versos Satânicos" de Salman Rushdie, condenou o escritor à morte por ofensas ao Profeta e ofereceu US$ 1,5 milhão a quem executasse o serviço.

Khomeini está morto, Rushdie está vivo e os otimistas afirmam que, na luta entre a escuridão e a luz, a luz acabou por vencer.

Os otimistas estão errados. Para começar, a "fatwa" de Khomeini continua válida sobre a cabeça de Rushdie. E, depois, mesmo em 1989 não faltaram escritores ocidentais que, entre a escuridão e a luz, optaram pelas trevas.

A revista "Vanity Fair", para celebrar a data, lembra o caso de John Le Carré, que escreveu um dos textos mais sabujos contra Rushdie (e "compreendendo" o desagrado do aiatolá). Eu já conhecia esse caso e confesso que desde 1989 não entra um único romance de Le Carré aqui em casa.

Passaram-se 25 anos, sim. Mas, esteja lá onde estiver, o aitolá Khomeini pode olhar cá para baixo e sentir-se orgulhoso com a descendência que deixou. O clima de medo que ele inaugurou contra Rushdie acabou por derrotar a coragem e a razão do Ocidente.