Pasquale
Cipro Neto
Até para ser malandro...
Até para
ser malandro de sucesso talvez seja preciso algum refinamento (linguístico, no
caso)
O
caro leitor talvez não saiba, mas entre os estudiosos dos fatos da língua há uma
velha discussão sobre a importância e o emprego da norma culta. A discussão
começa pelo conceito de norma culta, que nem de longe é ponto pacífico entre os
especialistas.
Há aspectos
sobre os quais não pairam dúvidas. Um deles, por exemplo, diz respeito à concordância
(verbal e nominal): o que é predominante na linguagem oral (independentemente
da classe social do falante) não costuma ocorrer no padrão escrito culto.
Tradução:
na oralidade, é comum o verbo não concordar com o sujeito, qualquer que seja a
ordem ("Os manual chegou"; "Chegou os manual"); na
linguagem culta, a concordância é regular ("Os manuais chegaram"; "Chegaram
os manuais").
O
caro leitor talvez se lembre da descabida polêmica que envolveu o livro "Por
Uma Vida Melhor", no qual há um capítulo que aborda com muita propriedade
as diferenças entre fala e escrita, variedade popular e variedade culta. Convém
lembrar que esse livro é destinado ao "EJA" ("Educação de Jovens
e Adultos"). Em que pese o equivocadíssimo barulho feito por boa parte da
imprensa, da sociedade, dos congressistas e até de professores e educadores,
nem de longe o livro prega a ideia de que a norma culta é inútil, e também não
prega a tola tese de que qualquer variedade de língua é boa em qualquer situação.
Lembra
quando, em Santa Catarina, a Polícia Rodoviárial prendeu malandros que dirigiam
um veículo cuja placa era de "Frorianópolis"? E quando a PM paulista
prendeu bandidos que queriam entrar num condomínio com um caminhão em cuja
lateral se lia algo "Impório Santa Maria"? Havia até o endereço do
site do "impório" na lateral do caminhão (www.imporiosantamaria.com.br).
Não faltou coerência a esses larápios...
A
gatunagem não se cansa de tentar fisgar incautos. Veja só o texto de um e-mail
que recebi recentemente: "Atendendo a uma reclamante foi gerado uma queixa
de crime em seu cpf/email, estamos entrando em contato para a apresentação da
mesma. Para maiores esclarecimentos do Boletim de Ocorrencia, na qual a sua
pessoa tera que efetuar o comparecimento. Na data e local especificado. Com os
documentos de identificação. Confira na Ocorrencia os Documentos".
Nos
mais importantes concursos públicos do país, costuma-se pedir aos candidatos
que identifiquem marcas da linguagem oral presentes num texto escrito. Também
se pede que o texto seja reescrito, de acordo com o português formal. No e-mail
citado, o que é típico da linguagem oral? Pelo menos dois pontos chamam a atenção:
"foi gerado uma queixa" (o sujeito é "queixa", portanto "foi
gerada uma queixa"); "na qual a sua pessoa" ("a sua pessoa"
no lugar de "você", "o senhor", "a senhora" é típico
da oralidade de alguns grupos sociais).
Para
adequar o texto ao português escrito formal, é necessário alterar quase tudo,
escrever de novo, tamanha a ruindade do original. Falta vírgula depois de "reclamante";
não se trata de "queixa de crime", mas de "queixa-crime"; o
emprego de "mesma" como elemento que representa algo já citado não é frequente
no padrão formal; falta acento em "terá" e em "ocorrência";
o emprego de "na qual" é descabido etc., etc. etc.
Até para
ser malandro talvez seja preciso algum refinamento (linguístico, no caso),
embora não seja improvável malandros obterem sucesso sem esse refinamento e
incautos letrados caírem nessas arapucas. É isso.