03
de outubro de 2014 | N° 17941
DAVID
COIMBRA
Em você, eu não
voto
Às
vésperas da maior e mais eletrizante eleição já disputada no Brasil, a de 1989,
escrevi uma coluna abrindo o voto. Era editor-chefe do Jornal da Manhã, de
Criciúma, e assinava um espaço acho que na página 3. Nessa condição, vivi com
intensidade aquela eleição histórica, entrevistei todos os candidatos, Collor,
Lula, Brizola, Maluf, Covas, Caiado, Ulysses, todos, e cobri seus comícios e
palestras.
Foi
um momento especial do Brasil e de nós brasileiros. Era a primeira eleição
direta para presidente desde 1960, realizada logo após a Constituinte. Tínhamos
a impressão de que iríamos salvar a nação a golpes de voto. Escrevi mais ou
menos isso naquela coluna, publicada um dia antes da votação, ou no dia mesmo,
não lembro mais. Escrevi que havia cinco candidatos dignos de voto, dos 11
concorrentes. Cinco que representavam a opção do Brasil pela democracia:
Ulysses, Brizola, Lula, Covas e Roberto Freire. Num desses, declarei, iria
votar (votei em Brizola no primeiro turno e em Lula no segundo, mas isso só
conto agora).
Claro
que meu arrazoado não fez mudar um único voto naquela época, como não faria
mudar hoje, mas houve gente que achou muito ousado aquilo de um jornalista
posicionar-se publicamente a favor de um grupo de candidatos numa eleição.
Ponderei muito, antes de escrever o texto, mas considerei que vivíamos um tempo
especial da história do Brasil, um tempo divisor de águas, e que era preciso
tomar uma posição, mesmo que aquilo só fosse importante para mim.
As
águas, de fato, foram divididas, o Brasil mudou e hoje as eleições não têm mais
aquele caráter ideológico que opunha os defensores da democracia aos
sabotadores da democracia. Hoje, todos os candidatos integram o grupo que
combatia o velho regime, são mais ou menos do mesmo extrato, e a democracia se
cristalizou nas mentes brasileiras como um bem em si. O jornalismo também
mudou. Hoje os jornalistas assumem ferozmente seus candidatos e atacam ainda
mais ferozmente os candidatos adversários. Ninguém sentiria os pruridos que
senti em 89.
Mas
a política, tristemente, diminuiu. Se você analisasse os cinco candidatos que
citei, veria que atrás deles havia estruturas lógicas e ideias alvissareiras,
em 89. O recém-fundado PSDB tinha pretensões de social-democracia europeia; e o
PMDB de Ulysses, algo das sólidas teorias democráticas norte-americanas. O PT
era a juventude assalariada e pretensamente impoluta querendo decidir sua
própria vida, e o PDT era a esperança das crianças do Brasil. Já o PCB, o
Partidão, era a própria dignidade dos velhos idealistas, talvez antigos, mas
sempre retos.
Esfacelaram-se
todos. O PSDB e o PT ganharam o poder; e perderam-se no poder. O PSDB vendeu-se
ao comprar a reeleição de Fernando Henrique, e o PT montou um sistema orgânico
de corrupção que faz do deposto Collor uma freira (pense só nos bilhões da
Petrobras, desconsidere todo o resto, e agora lembre-se que Collor caiu por
causa de um Fiat Elba!). Já o PDT primeiro foi neutralizado pelo PT, que lhe
tomou o espaço, e depois perdeu o charme e o rumo com a morte de Brizola, era
um partido de um homem só. O mesmo aconteceu com o PMDB, que, sem Ulysses, seu
Benjamin Franklin, seu Thomas Jefferson, virou uma geleca que se amolda a
qualquer forma que esteja no comando. Seja Luciana Genro presidente, seja Paulo
Maluf, lá estará o PMDB. E, por fim, o PCB, antes de morrer de velho, foi assassinado
por seus próprios filhos.
Restou
o desânimo. As pessoas sabem que não há ideias em disputa, salvo projetos de
perpetuação no poder ou de tomada do poder. Se o voto não fosse obrigatório,
60% dos eleitores ficariam em casa, fazendo churrasco — como aqui, nos Estados
Unidos. Mas, sendo obrigatório, o voto se torna casual. As pessoas votam em
quem está em primeiro nas pesquisas, “para não perder o voto”, ou no candidato
mais conhecido, os Tiriricas da vida. Não deveriam votar em ninguém. O voto
nulo seria não apenas mais coerente: seria mais expressivo. Seria um voto que
diria alguma coisa que o eleitor quer dizer, não o que querem que ele diga.
Há
25 anos, escrevi sobre quem merecia voto. Hoje, não seria capaz de fazer o
mesmo. Hoje, o que sinto vontade de dizer na cara de uns e outros é, tão
somente:
– Em
você, eu não voto. Em você, eu não voto!