03
de outubro de 2014 | N° 17941
MOISÉS
MENDES
A urna
esquecida
Vou
contar uma história do tempo antigo, da eleição de 1974, quando não se podia
escolher no voto o presidente da República e os governadores. A ditadura não
deixava.
Iríamos
eleger apenas os deputados estaduais e federais e um senador pelo Rio Grande do
Sul. O oposicionista Paulo Brossard (MDB) enfrentava o governista Nestor Jost
(Arena).
A
meningite espalhava-se pelo Brasil, mas poucos sabiam. Torturavam e era como se
ninguém soubesse. Foi nesse ano sombrio de 1974 que aconteceu em Livramento
algo excepcional na meia democracia brasileira.
Todas
as noites, fechávamos a edição do jornal A Plateia e íamos beber conhaque
Dreher, uísque Drury’s ou cachaça com bitter num boteco do início da ladeira da
Avenida Tamandaré, depois da esquina da Rivadávia. Gringo Alvim, Santamaria,
Basile, Pintinho, Lescano, João David, Wolmer, Sequinho e eu.
Naquela
noite de quinta-feira, véspera da eleição de 15 de novembro, Sequinho chegou
com um malote de lona embaixo do braço. Largou o malote sobre a mesa e anunciou
com orgulho: sou presidente de mesa.
Era
chefe dos mesários. Havia recolhido no Foro o material da sua seção, com a urna
de votação, cédulas e lista de eleitores. Largou o malote e pediu um conhaque.
Naquele
noite, fizemos previsões categóricas sobre o fim do regime militar, que já
durava uma década. Cravamos: em dois anos, Brizola e Jango estariam de volta.
Derrubava-se
a ditadura em bares com certa facilidade. Não se falava de futebol e de mulher
em 1974, só de política. A fronteira transpirava autoritarismo, blefe e medo. O
Uruguai também estava sob ditadura.
Foi
então que o dono do bar decidiu guardar o malote do mesário Sequinho atrás do
balcão. Pouco depois da meia-noite, restavam na mesa Gringo Alvim, Basile e eu.
De repente, o dono do bar ergueu as mãos à cabeça e gritou: e agora?
O
mesário havia esquecido o malote. Um pedaço da democracia estava ali, sem dono,
num ar empestado de álcool e fumaça.
Ninguém
sabia onde Sequinho morava. Não havia telefone na maioria das casas, nenhum de
nós tinha carro. Derrubar a ditadura era fácil, mas como resolver o problema da
urna esquecida? Esparramou-se pelo bar o pavor da cumplicidade.
Seríamos
presos como anarquistas que conspiravam com os Tupamaros contra a eleição.
Esperamos até perto das 2h para ver se o Sequinho voltava. Nada. Vasculhamos o
malote e ali estava, pelo lado de fora, numa etiqueta, o número da seção e o
endereço: Colégio Santa Teresa de Jesus.
Só
havia uma saída: levar a urna à escola, pela manhã, antes da abertura da porta
para a votação. Fomos embora. Ao amanhecer, eu e o Gringo, que morávamos numa
pensão, rumamos a pé para a escola, perto do centro. Sentamos no meio-fio.
Aí
pelas 7h30min, chegou Sequinho, de bicicleta. Assobiava. Disse que voltara ao
bar, que estava fechado. E que foi dormir tranquilo, com a mais absoluta
certeza de que levaríamos a urna.
Gringo
foi embora e eu peguei o ônibus para Alegrete, onde iria votar. Naquela
sexta-feira, feriado de 15 de novembro de 1974, eu ajudei a eleger Paulo
Brossard senador e a salvar a urna extraviada com as migalhas da democracia
pela metade que eles nos davam.
Conto
essa história para dizer: só os que não viveram aqueles tempos se atrevem a
desqualificar esta democracia inteira que também os mesários esquecidos da
Fronteira ajudaram a conquistar.