12 de outubro de 2014 |
N° 17950
FABRÍCIO CARPINEJAR
Anjo justiceiro
O que mais adorava na biblioteca
de minha escola eram as fichas ao final do livro.
Tinha que assinar o nome enquanto
a bibliotecária colocava a data de devolução. A leitura costumava vencer em
sete dias.
Até hoje, adulto e independente,
levo sete dias para ler um livro, mesmo que seja meu, com medo de pagar multa
na minha escola. Internalizei o hábito. Não me desvencilhei do medo de atrasar.
Admirava o capricho do canto de
leitura. Todos os livros mostravam a história dos seus leitores: quem leu, o
período de quem se interessou por aquela obra. Com o registro dos hóspedes
colado com um envelope na contracapa, pelo lado de dentro.
Poderia descobrir aqueles colegas
que partilhavam de iguais afinidades, igual paixão, igual inclinação pelos
enredos de amor.
Só que me entristecia quando
puxava um volume qualquer da prateleira da Imperatriz Leopoldina e ninguém
ainda o havia retirado. Ninguém!
Um livro que poderia estar havia
anos no acervo e jamais fora procurado, jamais fora levado para casa. A ficha
vazia. O coração vazio de tinta. Os andares das linhas em branco. Como um hotel
de letras imenso, falido; quartos de histórias vagos e fechados.
Como nenhum aluno se interessou?
Como nenhum aluno sequer o pegou por engano?
O livro sem pai nem mãe, no
orfanato das horas, imaculado, virgem, sem nenhum farelo de pão entre as
páginas, sem nenhuma digital, sem nenhuma marcação de lápis.
O livro longe de uma família.
Longe de um braço. Longe de um cuidado. Longe do cheiro achocolatado da térmica
das mochilas.
Tão triste. Eu pegava para ler de
propósito. Só para pôr um nome na fichinha e ele não morrer sozinho.
Eu me sentia um anjo justiceiro.
Não queria deixar nenhum livro não lido. Nenhum livro parado, sem ter sido
amado ou odiado.
Não lia o que gostava, lia para
aprender a gostar.
A bibliotecária Noeli já conhecia
minha mania, meu projeto de salvação.
Aparecia no intervalo do recreio
e pedia sua força:
– Me ajuda a encontrar um livro
que nunca foi lido?
Ela deixava sua mesa, não
questionava meu hábito estranho e se levantava para catar comigo nas estantes
uma capa ainda intacta, ainda inexplorada pelas turmas.
Podia ser romance, poesia,
crônica, ensaio, adulto, infantil, de menino, de menina, de bicho, de biologia,
de física. Não me assustava com o tema.
O que desejava era registrar meu
nome na aba e acabar com a maldição de pó e abandono.
Tornei-me leitor puramente por
compaixão, somente para estrear livros na biblioteca.