sábado, 11 de outubro de 2014


12 de outubro de 2014 | N° 17950
CAPA

Nos fios da alma da mulher

“Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabelereiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo.

Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena”.

A cena de sensualidade marcante antecede um beijo, o primeiro trocado pelos protagonistas de uma das obras-primas da literatura brasileira. As palavras delicadas e permeadas de paixão são a confissão de Bentinho, que penteou os cabelos de Capitu antes de beijá-la nas páginas iniciais de Dom Casmurro. A principal personagem feminina de Machado de Assis é conhecida pelo poder de seus olhos verdes, os olhos de ressaca. Mas a verdade é que o jovem Bento Santiago menciona, já nos primeiros capítulos do romance, a beleza dos grossos cabelos de Capitolina antes mesmo de ter reparado em seu olhar.

Machado de Assis sabia das coisas. Uma personagem tão emblemática como Capitu não poderia ser somente olhos. Em primeiro lugar, ela é cabelo. Os fios que a uniram pela primeira vez ao futuro marido eram uma espécie de extensão dela mesma, de sua sensualidade e de sua paixão. Capitu, afinal de contas, é mulher. E, como tal, tem a alma trançada em sua grossa cabeleira.

Olhar para o movimento cada vez mais intenso nos incontáveis salões de cabelereiro que pipocam pelas cidades é a primeira pista para perceber a importância dos cabelos para uma mulher. Dizendo assim, até parece que essa relação visceral com os cabelos é coisa nova, posterior à invenção do salão de beleza. Nada disso: há na história das culturas evidências de sobra que comprovam o profundo significado das madeixas na personalidade de uma mulher e no jeito como ela entende a si e ao mundo a sua volta.

Ponto mais alto da anatomia humana, a cabeça é considerada, na maior parte das culturas, o centro vital do corpo. Nela estão os cabelos, que nascem, crescem e caem conforme sua própria vontade e ainda sobrevivem ao sujeito depois de sua morte. A cabeça dirige o corpo e, sobre ela, estão os fios que a ornam, protegem e definem.

Feitos de queratina, uma proteína muito resistente, os cabelos continuam crescendo mesmo após a morte e são capazes de guardar características de seus donos por décadas – entregam, por exemplo, se a pessoa usou drogas ou tem determinados hábitos alimentares.


PATRÍCIA LIMA