12 de outubro de 2014 |
N° 17950
CAPA
Nos fios da alma da mulher
“Continuei a alisar os cabelos,
com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças.
Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabelereiros de
ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tato aqueles fios grossos,
que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de
propósito para desfazer o feito e refazê-lo.
Os dedos roçavam na nuca da
pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas,
enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis.
Desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que
pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos
parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena”.
A cena de sensualidade marcante
antecede um beijo, o primeiro trocado pelos protagonistas de uma das
obras-primas da literatura brasileira. As palavras delicadas e permeadas de
paixão são a confissão de Bentinho, que penteou os cabelos de Capitu antes de
beijá-la nas páginas iniciais de Dom Casmurro. A principal personagem feminina
de Machado de Assis é conhecida pelo poder de seus olhos verdes, os olhos de
ressaca. Mas a verdade é que o jovem Bento Santiago menciona, já nos primeiros
capítulos do romance, a beleza dos grossos cabelos de Capitolina antes mesmo de
ter reparado em seu olhar.
Machado de Assis sabia das
coisas. Uma personagem tão emblemática como Capitu não poderia ser somente
olhos. Em primeiro lugar, ela é cabelo. Os fios que a uniram pela primeira vez
ao futuro marido eram uma espécie de extensão dela mesma, de sua sensualidade e
de sua paixão. Capitu, afinal de contas, é mulher. E, como tal, tem a alma
trançada em sua grossa cabeleira.
Olhar para o movimento cada vez
mais intenso nos incontáveis salões de cabelereiro que pipocam pelas cidades é
a primeira pista para perceber a importância dos cabelos para uma mulher.
Dizendo assim, até parece que essa relação visceral com os cabelos é coisa
nova, posterior à invenção do salão de beleza. Nada disso: há na história das
culturas evidências de sobra que comprovam o profundo significado das madeixas
na personalidade de uma mulher e no jeito como ela entende a si e ao mundo a
sua volta.
Ponto mais alto da anatomia
humana, a cabeça é considerada, na maior parte das culturas, o centro vital do
corpo. Nela estão os cabelos, que nascem, crescem e caem conforme sua própria
vontade e ainda sobrevivem ao sujeito depois de sua morte. A cabeça dirige o
corpo e, sobre ela, estão os fios que a ornam, protegem e definem.
Feitos de queratina, uma proteína
muito resistente, os cabelos continuam crescendo mesmo após a morte e são
capazes de guardar características de seus donos por décadas – entregam, por
exemplo, se a pessoa usou drogas ou tem determinados hábitos alimentares.
PATRÍCIA LIMA