04 de novembro de 2014 |
N° 17973
MOISÉS MENDES
Tônia e Eurípedes
Não se fala mais com um quase
famoso sem passar antes por um assessor de imprensa. O assessor fará a triagem
e dirá se você merece a entrevista que pede.
Em outubro, tentei falar com um
dos formuladores das propostas de um candidato a presidente. Deixei recado no
telefone, falei com uma assessora. Nada. Eu só queria um minuto de prosa.
Fiquei sem entender uma parte da sua pregação, que talvez seja dúvida para
sempre.
Hoje, o terceiro reserva de
qualquer time de futebol tem assessor. Técnicos que ganham R$ 500 mil por mês
têm quatro assessores. Cantores, palestrantes, cartomantes, todos só falam se o
assessor liberar.
Você tem que dizer qual é a
pauta, quanto tempo de conversa, se será pelo telefone ou pela internet, se vai
gravar, se a entrevista sairá no jornal impresso ou no online e se – o que é
pior – as perguntas podem ser enviadas com dois dias de antecedência.
No início do século 21, não era
assim. Um dia, decidi ligar para Tônia Carrero. Procurei o fone na lista: Maria
Antonieta de Farias Portocarrero. Não achei. Liguei para José Lewgoy. Ele me
deu o fone e disse: ela está feliz, vai gostar de conversar com um gaúcho.
Liguei e acionei meu sotaque do
Caverá, diferente de qualquer outro da Fronteira e por isso mesmo copiado na
volta, menos em Dom Pedrito, que também tem sotaque muito particular.
Um senhor atendeu com delicadeza.
Tão delicado que baixei um pouco a entonação para não acentuar o contraste com
sua fala macia. Tônia estava lendo no escritório e ele iria chamá-la. Tônia
disse apenas um oi e logo perguntou: você sabe com quem falou?
E logo respondeu: você falou com
Eurípedes. Sim, ela disse, meu mordomo, que o atendeu, se chama Eurípedes. Você
não acha o máximo?
Era o máximo. Falar com Tônia já
era o máximo. E ainda mais com Eurípedes, um dos gênios da tragédia grega. Eu
queria que o professor Moreno, que entende de gregos, continuasse a conversa
com Tônia. Eurípedes escreveu Medeia e mais uma dúzia de peças que o teatro irá
encenar até o fim dos tempos.
Eu disse, já sem forçar o
sotaque: nunca pensei em falar com Eurípedes e com Tônia Carrero no mesmo dia,
na mesma casa, no mesmo telefonema.
Tônia contou que o mordomo
chegara até ela por acaso. Não havia saído a escolher um mordomo que se
chamasse Eurípedes, ou Ésquilo, ou Sófocles.
Conversamos sobre Mafalda
Verissimo, sobre Lewgoy, sobre Porto Alegre. Tônia falava sem que eu
perguntasse nada, exuberante, com aquela voz rouca, como se estivesse me
esperando para conversar.
Me contou que um dia passeava de
braço com Mafalda num shopping de Porto Alegre. Uma fã se aproximou e perguntou
a Tônia: é a sua mãe?
Mafalda respondeu: só se eu
tivesse parido com 10 anos.
Mafalda morreu em 2003. Era nove
anos mais velha do que Tônia, que ainda mora no Rio.
Lembrei agora dessa conversa
porque às vezes sinto vontade de erguer o telefone e conversar com uma
celebridade sem a intermediação de assessores, só pelo prazer de ser
surpreendido, como fui naquela tarde.
Me lembro que desliguei o
telefone e disse ao meu amigo Henrique Erni Gräwer, que sentava ao lado:
– Conversei agora com o
Eurípedes. Aproveitei e falei com a Tônia.
E fui tomar café no bar com o
Zini Pires, como se nada de importante tivesse acontecido naquela tarde.