quarta-feira, 5 de novembro de 2014


05 de novembro de 2014 | N° 17974
ARTIGO ZH - JAYME EDUARDO MACHADO*

SIMÃO BOLÍVAR ESTÁ VIVO!

É preciso prestar atenção nos chavões que volta e meia frequentam a mídia com insuspeitada insistência. O que mais se ouve e se lê acerca de eleitos é: “...não me representa!”. Geralmente é um brado aparentemente dirigido legitimamente a um indigno do meu voto, mas o segredo escondido nas segundas intenções dos seus propagadores é saber que o contágio acaba por sugerir algo mais concreto: “...ninguém me representa!”. Quer dizer, o Poder Legislativo, onde vicejam os malfeitos, não deve me representar.

E é no vácuo dessa dúvida moral – justificada pela omissão, pelas alianças de conveniência, enfim, pelo exercício corrupto do mandato legislativo legitimamente conquistado –, que se abre espaço para a penetração do mais ditatorial dos atos legislativos: o decreto!

O Decreto 8.243/14, que dá ao Planalto, sob a capa de uma Política Nacional de Participação Social, o controle da administração pública por “conselhos populares” formados por integrantes de movimentos sociais, agride a consciência nacional na tentativa de derrubar o pilar mestre da democracia: um homem, um voto.

O que ele ambiciona, usurpando as funções do Congresso Nacional, é dar acesso privilegiado e poder nas decisões da República aos grupos minoritários dos que escolher para integrar os tais conselhos populares. Eis um “ato legislativo” em que o valor da autonomia (de escolher seus representantes) e da liberdade (de trocá-los quando necessário), privilegia uma minoria, e confessa que a autoproclamada busca da “igualdade” é um insulto à verdade, porque a traição do princípio do “um homem, um voto” é a síntese da desigualdade.

O repúdio preliminar pela Câmara dos Deputados certamente será justificado pelos ideólogos do decreto por motivações políticas, tão ao gosto dos malfeitores da República. A Constituição que construímos tirou-nos de uma ditadura, mas a lição deve ser aprendida. Um texto não nos livra de outra, por mais miséria que ainda haja no país, por mais desigualdade que ainda transpareça.

Nela está escrito que a democracia direta, se é disso que precisamos, se faz por plebiscito, referendo ou lei de iniciativa popular. Mais dois anos, e toda a cúpula do Judiciário terá sido escolha pessoal do atual governo. Mais esse decreto, e o Congresso Nacional não nos representará mais. E aí aparece o fantasma de Simão Bolívar e sua doutrina. E esse “...nos representa”?


*Jornalista, ex-subprocurador-geral da República - JAYME EDUARDO MACHADO