quarta-feira, 10 de dezembro de 2014


10 de dezembro de 2014 | N° 18009
PEDRO GONZAGA

O PRESENTE

Porque a vida é curta concebemos o arrependimento, dizia um antigo moralista, que encerrava seu parágrafo asseverando que deveríamos ser gratos por sabermos desde muito cedo o custo de cada uma de nossas escolhas.

Confesso a vocês que, apesar do peso e dessas estranhas gratidões e do constante “lembre-se disso, lembre-se daquilo”, gosto muito de ler esses sermoneiros, que sabiam tão bem onde nos ferem os piores espinhos. Não creio que haja melhores autores de autoajuda que Paulo, Santo Agostinho, Padre Vieira. Sempre cientes da passagem do tempo e das mudanças operadas no mundo e dentro de nós mesmos por esse agente silencioso, invisível senão na escala de anos.

Nunca acreditei em quem diz não se arrepender de nada, jamais comprarei o “Eu faria tudo outra vez da mesma maneira!”. Como é possível? Eu que me arrependo até de largar um livro? Que triste poder ser outro e escolher a mesma vereda já trilhada. Descontada a vaidade, parece-me que as pessoas que afirmam a solidez de suas escolhas o fazem pautadas pela irreversibilidade de todos os atos: ao escolherem, escolhido está. Concordo com isso, também não quero reescrever nada, como não quero subscrever nada.

Penso nisso no dia do meu aniversário. A vida é curta. Mas contra ela fomos e temos sido muitos, arrependidos e convictos, errados e certos, certos nos erros, errados nos acertos. E peço licença, leitores, para pedir a intervenção de alguma divindade capaz de me regalar com um presente para a ocasião: um dia num instante liberto de arrependimento.

Lá estou eu músico, são três da tarde, praticando. De volta àquelas horas de escalas e arpejos, até que tocar o instrumento se torna algo puramente físico (o que só em horas se alcança), prazer análogo ao estado de comunhão física que alcançamos com alguém depois de longo tempo de intimidade, quando as chaves ou as cordas há muito dedilhadas desaparecem, e tudo se revela sem o compromisso falso da performance ou da aprovação espetaculosa das primeiras vezes.


Licença encerrada, nenhuma divindade aparece. No entanto, a descoberta vale, feito um singelo presente: a verdadeira dedicação desconhece arrependimento.