WALCYR
CARRASCO
12/12/2014
21h30
O Natal e a
mentira
É
uma das datas mais hipócritas que conheço. A outra é o aniversário. Nelas,
todos mentem
O
Natal é hipócrita. Podem me atirar pedras. Reafirmo. É uma das duas datas mais
responsáveis por mentiras. A outra é o aniversário, pelo qual acabo de passar.
Fiz 63 anos. Nada pior do que ouvir frases consoladoras do tipo:
–
Poxa, mas você não parece.
Como
se aparentar a própria idade fosse horrível. E daí se parecer 60, 70, 80?
Deveria parecer 20? Nem com toda plástica e Botox do mundo! No máximo, ficaria
com a cara paralisada e os olhos puxados, à oriental, como acontece com quem
exagera em plásticas. Para quê? Para parecer alguém que não quer aparentar a
idade que tem. Mas que aparenta. Deu para entender?É como se diz por aí:
–
Ixi, ela está com o rosto todo trabalhado.
Trabalhado
quer dizer: reformado. Se pudessem, alguns plásticos ou dermatologistas
passariam massa corrida e lixa industrial para garantir o resultado. Ainda não
surgiu nenhum produto à altura. Ainda.
Meu
aniversário é próximo do Natal, portanto, em dezembro, vivo um festival de
hipocrisia. Principalmente em relação a presentes. Não há nada mais difícil do
que surpreender alguém com algo de que realmente goste. A não ser que a gente
dê, por exemplo, um Land Rover zero. Ou um brilhante do tamanho de uma
dentadura. Surpreender é difícil. Se alguém anuncia o presente desejado, também
não tem graça. Como pedir: cuecas, meias, CD do Leonardo, um pacote de ração
para cães para economizar nos gastos, um mês de academia. Pior, fazer cara de
gentil e dizer:
–
Acho ótimo você dizer o que quer, assim não erro.
Natal
é teste do Enem, que a gente não pode errar? As pessoas espertas confessam:
–
Meu maior sonho é conhecer o Caribe!
Finjo
que não entendo e digo:
–
Sabe que eu não? O Brasil tem praias tão lindas. Já foi para Santos?
Em
seguida, começo a falar das belezas de Santos, enquanto o outro me encara com
ódio. Santos é uma cidade adorável no litoral de São Paulo, onde muitos
aposentados adoram viver. Não é conhecida pela beleza das praias, digamos
assim.
Confesse.
Nunca mentiu no Natal? Nem quando ganhou algum horror? E falou:
– É
exatamente o que eu precisava!
O
pior é quando esse horror é objeto de decoração. Quem deu, cada vez que vai em
casa fica olhando para ver onde pus. Estaria atirado no fundo de algum rio, se
não fosse a fiscalização. Então escondo. Cada vez que vou receber a visita,
tenho de lembrar:
–
Onde estão aqueles dois coelhinhos de porcelana? Tenho de pôr na mesa da sala.
A
campainha toca, e eu ainda correndo atrás dos coelhinhos. Ser gentil não é uma
arte, também pode ser um martírio.
Há
pessoas que simplesmente ganham o presente de Natal – isso acontece muito com
amigos secretos –, agradecem e choram de emoção. Depois embrulham, botam no
armário e aguardam o próximo Natal, para reciclar. Isso costuma dar tão errado
que nem tenho palavras.
A
mãe de um amigo devolveu, dois anos depois, o perfume que a própria irmã dele
tinha dado, ainda embrulhado no mesmo papel de presente. Mãe e filha acabaram
aos gritos, enquanto as pessoas se esforçavam para cantar “Jingle bells”. Eu
mesmo reciclei um presente, não digo quando nem onde, por discrição. Só sei que
era uma bolsa linda, masculina, que o contemplado jamais compraria. Nem eu,
aliás.
Era
cara. Sou do tipo que usa sempre o mesmo relógio, a mesma bolsa, até se
desfazerem. Resolvi passar adiante. Embrulhei num lindo papel de presente,
botei fitas. Na hora do amigo secreto, quando o contemplado abriu o presente
emocionado... bem em cima, exatamente em cima, estava o cartão de quem me dera,
endereçado a mim mesmo. Agora me expliquem: como não vi o cartão quando
embrulhei? Como, como? Parece que a tal Lei de Murphy é inexorável. Quando é
para dar errado, dá errado. Mas não deu. Ele ficou abismado contemplando a
pasta em couro preto.
Tanto
como eu, contemplando o cartão. Aí meus dedos se moveram mais rápidos que as
patinhas de uma aranha. Ainda não sei explicar como consegui, como ninguém viu.
Empalmei o cartão e fugi para o toalete. Nem tive coragem de jogar fora.
Rasguei e engoli. Na volta, o presenteado ainda chorava de emoção com minha
generosidade. Chorei junto.
Já
me preparo para as novas mentiras, inevitáveis no Natal. Neste ano, a família
quer fazer em minha casa. Vamos combinar: dar presentes é muito difícil. Uma
coisa certamente ninguém espera receber: sinceridade. Se é para mentir, que
venha o Natal. Já estou preparado.