segunda-feira, 12 de janeiro de 2015


12 de janeiro de 2015 | N° 18040
DAVID COIMBRA

Como é a vida 19 graus abaixo de zero

– Eu não sou homem de usar cuecão! – foi o que disse para a Marcinha, quando ela acomodou um cuecão na minha mala, antes da viagem que fiz para cá, para Boston, em janeiro do ano passado.

Ela suspirou: – Leva assim mesmo...Levei, mas fechei a mala repetindo:

– Não sou homem de usar cuecão. Não sou! Eu não!

Ao chegar aqui, fui dar uma saída. Botei o pé na calçada. Dei três passos. Voltei para o hotel. E me tornei homem de usar cuecão. Hoje sei bem que o amado cuecão bem como roupas especiais para o frio subzero são peças de sobrevivência no Norte distante.

Agora, no meu segundo inverno na Nova Inglaterra, peguei um frio de 19 graus Celsius abaixo de zero, sensação térmica de 30 graus negativos. Você aí, de bermuda e camiseta, imagina o que é isso?

Podia ter ficado no recôndito do lar, protegido pelo aquecimento central, sorvendo um bom tinto e desfrutando, com a Marcinha e o B, um puchero que preparei com minhas próprias mãos. Mas não. Saí à rua para caminhadas intrépidas. Por que tamanho desatino? Por SUA causa. Disse para mim mesmo: preciso contar como é a vida 19 graus abaixo de zero. Pois conto.

1. Quarta-feira. 6h. -9°C.

Você leu certo: às seis da manhã, o degas aqui estava ao relento. Tinha um compromisso às seis e meia. Seis e meia! Coisa de americano.

Era noite ainda, todo mundo em casa, e eu caminhando. Andava entre os belos sobrados de madeira, sorvia o ar noturno e via, ao longe, a silhueta dos edifícios de Downtown. Foi muito bonito, muito, e, sozinho na cidade adormecida, senti-me livre. Tanto que comecei a sorrir sem motivo e assobiar baixinho e assim vi o céu azular no horizonte e as estrelas apagando- se aos poucos e foi uma boa maneira de iniciar o dia.

2. Quinta-feira. 10h. -19°C.

Tenho a dizer, com toda solenidade, que aprendi algo de quarta para quinta: que faz diferença estar na rua com 9 graus negativos ou com 19 graus negativos. Ah, faz.

Antes de sair de casa, olhei para fora: o céu era de um azul-claro perfeito. O ar estava parado, os galhos nus das árvores não se moviam. O dia parecia amistoso. Mas, no momento em que saí, foi como se tivesse levado um soco na cara. A sensação é precisamente essa: de uma agressão. Só os meus olhos estavam expostos, e eles lacrimejavam em cascata. O ar era sólido, era como se eu inalasse pedras de gelo.

Na região central há um parque, o Public Garden, com um laguinho no meio. O laguinho estava congelado. Andei sobre as águas. E ali adiante uns guris jogavam hóquei sobre as águas. E os namorados se beijavam sobre as águas.

3. Sexta-feira. 14h30min. -5°C.

Meu filho estava contente, porque ele pôde brincar no pátio da escola. A professora me disse que, abaixo de sete graus negativos, eles preferem deixar as crianças dentro do prédio. Até sete graus negativos, tudo bem. Coisa de americano.

Meu filho ficou ainda mais feliz porque nevou bastante, e ele queria fazer um boneco de neve. Não era só ele que estava feliz. A temperatura amena, para o inverno do Norte, fez com que os americanos saíssem às ruas. Eles caminhavam com enormes copos de café nas mãos e cumprimentavam-se sorrindo. A animação geral me contagiou. Fui até uma loja de brinquedos e comprei uma grande pá de plástico cor-de-laranja para meu filho fazer seu boneco de neve. Na frente da loja tem uma sorveteria ótima, a J.P. Licks. Fiquei olhando para a vitrine da sorveteria e lembrei do sorvete de baunilha, que é uma delícia. Atravessei a rua. Meu filho, sem nem olhar para mim, anunciou:

– O meu eu quero de casquinha.