terça-feira, 13 de janeiro de 2015


13 de janeiro de 2015 | N° 18041
DAVID COIMBRA

Boas ideias e maus sentimentos

“Eu sou um deus ciumento” é a advertência que Jeová faz a Moisés no Deuteronômio.

Eis a base de todas as religiões monoteístas. E a razão de inúmeros crimes cometidos em nome dessas religiões.

Os romanos acreditavam em muitos deuses e, por isso, tinham extrema tolerância com os deuses dos povos que conquistavam. Cada um podia ter sua religião, desde que pagasse impostos religiosamente. A César o que era de César.

A secular guerra que envolve muçulmanos, cristãos e judeus só existe porque o deus de cada uma dessas religiões é ciumento, embora todos tenham se originado do mesmo e devessem ainda ser o mesmo: aquele Jeová de Moisés.

Muita gente morreu por causa da intolerância do monoteísmo, portanto. Só que mais gente morreu por causa da intolerância ideológica. Por causa de Hitler e do nazismo, morreram dezenas de milhões; por causa de Stálin, Mao, Pol Pot, Enver Hoxha e do comunismo, morreram centenas de milhões.

O melhor que as mortes de Paris e o terrorismo islâmico têm a nos ensinar, hoje, é, precisamente, a tolerância.

Pessoas do nosso convívio têm exercitado diariamente a intolerância, não em nome de seus deuses, mas em nome de suas ideias. Você desenvolve certeza religiosa de que determinada ideia é boa e de que tudo que vagamente se opõe a ela é ruim, e passa a combater com intolerância essa oposição.

Vou tomar, de propósito, a causa mais nobre e talvez mais delicada de todas: a luta contra o racismo. Não existe preconceito mais repugnante do que o preconceito contra os negros. Não me refiro a qualquer preconceito racial, refiro-me ao contra os negros porque eles foram escravizados pelos europeus durante quatro séculos, sobretudo nas Américas, por serem negros. Não por serem africanos, até porque outros africanos, de origem árabe, também escravizavam os negros. Logo, os negros sofreram e sofrem apenas pela cor da sua pele.

Os crimes horrendos cometidos contra os negros são hoje universalmente condenados e combatidos. Bem. Quais foram os maiores líderes dessa causa? Quem obteve maior sucesso na luta pela igualdade? Os homens tolerantes: o pastor Martin Luther King, que estudou aqui, na Boston University, e o maior gênio político da história da Humanidade, o sul-africano Nelson Rolihlahla Mandela.

Luther King e Mandela aprenderam que não se chega a lugar algum sendo excludente. A maioria das pessoas quer viver em harmonia e morrer em paz. Só. Às vezes essas pessoas têm sentimentos contraditórios, às vezes elas ficam furiosas, às vezes cometem erros, às vezes elas têm interpretações equivocadas das outras pessoas, da vida e do mundo, mas isso não quer dizer que elas sejam más pessoas. Voltando ao caso do racismo e tomando um exemplo prosaico, responda: quem são as “melhores pessoas”: os que cometeram injúria racial naquele jogo do Grêmio, no ano passado, ou os que atearam fogo à casa de quem cometeu injúria racial?

Um sistema inteiro de boas ideias pode ser implodido por um único mau sentimento.


Tolerância. O ser humano substantivo só se torna humano como adjetivo se houver tolerância.