quarta-feira, 14 de janeiro de 2015


14 de janeiro de 2015 | N° 18042
ARTIGO - PLÍNIO MELGARÉ*

CHARLIE HEBDO ERROU?

Independentemente de aspectos históricos mais remotos, a liberdade de expressão consagra-se como uma conquista da modernidade, constituindo singularmente a cultura ocidental. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 1948, afirma a liberdade de expressão. Antes ainda, fruto da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão expressamente reconheceu essa liberdade. Nada obstante, ao mesmo tempo em que a considerava um dos direitos mais preciosos do homem, sustentava que este deveria responder diante do abuso dessa liberdade. Nesse ponto um problema presente até os dias atuais: em que circunstâncias há o exercício abusivo da liberdade de expressão?

E no caso da sátira? Em razão de sua excepcional força discursiva, o uso da sátira e do humor como elemento de crítica social ocorre desde os tempos mais remotos. Mas e os seus limites? Em causa está definir até que ponto é aceitável a difamação ou o caráter ofensivo do humor. Na França, no final dos anos 80, uma publicação satírica foi condenada em razão de uma caricatura que atribuía ao conservador Le Pen a prática de tortura na guerra da Argélia.

Pretender respostas apriorísticas não é o melhor caminho. Contudo, alguns tópicos podem ser traçados como balizadores do discurso satírico e da liberdade de expressão. Aponta-se, nesse sentido, ser lícita a sátira quando veicula situações faticamente impossíveis – ou ao menos manifestamente insólitas ou implausíveis. De outra parte, há de se considerar razoável que o conteúdo discursivo da sátira ultrapasse o que o senso comum tem por decente ou de bom gosto: é também uma de suas características. Em contrapartida, abusiva seria a sátira que insulta gratuitamente, versando sobre temas alheios ao contexto social, distanciando-se, pois, de um sentido público e comunitário.

Como pano de fundo, cenário de todo o debate proveniente da liberdade de expressão e do seu exercício, está a composição da tessitura social que construímos – ou que queremos construir. E compreender que a plasticidade do ambiente discursivo presente na esfera pública e o consequente alargamento das liberdades de expressão são aspectos constitutivos das democracias contemporâneas. Ao fim e ao cabo, deve-se reconhecer a liberdade de expressão como essencial ao desenvolvimento autônomo da pessoa humana – além de um canal efetivo que dinamiza a vida política, prevenindo a sociedade de ameaças arbitrárias.


*Advogado e professor da Faculdade de Direito da PUCRS e FMP