Texto: Liane
Alves
Luz e sombra: reconheça os sentimentos ruins e
pacifique-os
O que se esconde na penumbra que
não conseguimos ver? Por que as trevas nos parecem tão assustadoras? Como
encarar esse medo e integrar com o desconhecido?
A foto de final de curso não
poderia ser mais alegre: com um sorriso aberto no rosto, ali estavam reunidos
os alunos de um curso de direito em seu dia de formatura, com a tradicional
toga e o diploma nas mãos. Depois de cinco anos de esforços, os futuros
advogados eternizavam sua alegria numa imagem para ser guardada como lembrança
de um momento feliz. Porém, se a câmera pudesse capturar o que se passava nos
corações de Mônica e Fernando, em lados opostos da fotografia, algo bem
diferente seria revelado.
Apaixonados e com data marcada
para o casamento, tudo o que queriam era estar lado a lado naquele instante
significativo de suas vidas. Mas não deu tempo. Como a posição dos alunos foi
organizada rapidamente, Mônica acabou num canto aguardando a chegada de
Fernando, enquanto ele não teve força para atravessar a confusão e ir até ela.
Se fosse feita uma foto de seus sentimentos naquele instante, um caldeirão de
emoções negativas borbulharia dentro deles.
Fernando se sentia esquecido pela
namorada e com a certeza de que ela não o amava tanto quanto ele, pois ela não
se aproximou. Já Mônica estava com os olhos marejados de lágrimas e
inconformada com a ausência do amado ao seu lado, depois de terem estudado
tantas noites juntos. Naquele momento, por algo tão bobo eprosaico, ele teve
gana de desmanchar o noivado por um avassalador sentimento de rejeição. E ela
teve o mesmo ímpeto, por sentir-se traída em sua confiança e abandonada. Sem
saber, os dois estavam completamente dominados por suas respectivas sombras. O
inferno fervia dentro deles em labaredas.
O que é mal, ruim, negativo não
está só fora. Na verdade, está principalmente dentro de nós. O drama que é
descrito nos relatos bíblicos, como a queda dos anjos, quando Satanás é jogado
no abismo e sofre como um cão pela perda do amor de Deus e da felicidade
divina, acontece todos os dias em nossos corações.
Por um momento, o mal toma conta
de nossa alma e nos afastamos da alegria, da harmonia, da bondade e da paz.
Isto é, nos afastamos do Amor, que é o nome secreto de Deus. Mas o que nos joga
dentro desse mundo de conflitos e sofrimento? Teologicamente, é Satanás, o Diabo.
É interessante notar que um dos adjetivos usados para descrevê-lo é
simplesmente “O Perturbador”. Tudo anda bem e tranquilo, até que surge de
repente aquele que perturba e nos empurra para o buraco do inferno. E seu modo
de agir é desse jeito mesmo: rápido, traiçoeiro, inesperado. Quando vemos,
estamos sofrendo sem ao menos perceber como fomos parar naquela situação
dolorosa.
Outro de seus nomes é ainda mais
sugestivo: “O Enganador”. Ele o faz pensar que algo é de uma forma, quando, na
verdade, é de outra. Ele cria ilusões, como um grande mágico, e nos faz
acreditar que elas são reais e que existem, quando tudo não passa de um truque.
Se sua sombra ativa principalmente o ciúme, aparecerão várias situações em que
essa emoção negativa se manifestará em você, porque é essa a lente pela qual
você vê o mundo. Ela distorcerá tudo o que você vê, fazendo com que ache o que
procura, mesmo que não seja real, exatamente porque uma das características da
sombra é voltar a apresentar a questão de novo, e de novo, e de novo, até você
resolvê-la. “As situações de ciúme, nesse caso, serão sempre recorrentes.
Enquanto a questão original que
aciona esse gatilho psicológico não for identificada sob a luz da consciência,
o mesmo cenário, com poucas variações, vai se repetir”, explica Irene Cardotti,
analista junguiana e psicoterapeuta bioenergética e sistêmica, de São Paulo. E
o que poderia impedir essa reação tão automática e nos livrar da recorrência?
“Reconhecer a sombra, integrá-la, admitir que você é ciumento e que sempre vai
ter a tendência de procurar chifres em cabeça de cavalo, por exemplo. Ao
reconhecer seu olhar torto e tendencioso na questão, quando a situação se
apresentar de novo, ficará mais fácil se conter e pensar duas vezes antes de
tomar uma decisão precipitada que poderá prejudicá-lo”, conclui Irene.
A palavra diabo vem da raiz
latina diavolo, aquele que se divide em dois. Sob o domínio das sombras, eclode
um diálogo interno frenético dentro de nós, que nos parte ao meio: “Por que ele
fez isso?”, “Oque isso quer dizer?, “O que vai acontecer?”, “O que vou fazer de
agora em diante”, e por aí vai.
Ficamos divididos, jogados de um
lado para outro, em meio a uma avalanche de perguntas que tentamos responder
internamente. Aliás, a palavra diálogo também tem a mesma raiz, aquilo que é
dual, uma fala entre duas partes. É essa divisão que nos racha em dois, a
origem de nosso sofrimento.
Os budistas também usam a
dualidade para descrever o samsara, o universo manifestado. Para eles, tudo tem
uma única natureza, que é pura e compassiva. Quando o samsara se instala,
porém, é criado o mundo dual, o mundo do conflito. No budismo, a grande razão
de nosso sofrimento é a dualidade, de onde nascem a raiva, o apego e a
ignorância (o desconhecimento de como as coisas realmente são).
Ameditação nos concederia a
possibilidade de trazer de volta nosso estado unificado natural. Com a luz do
distanciamento que ela nos proporciona, vemos as labaredas dentro de nós, mas
não nos queimamos,porque percebemos que não somos as chamas. E que uma parte de
nós sempre permanece cristalina, compassiva, serena e presente.