segunda-feira, 30 de setembro de 2019


30 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Por que ferver a água do chimarrão


Existe uma crença arraigada de que não se pode derramar água fervendo no chimarrão. "Queima a erva", alegam os incontáveis adeptos dessa corrente. Durante largo tempo aceitei isso como verdade inquestionável, porque era um ensinamento que passava de geração para geração. Mas havia um pormenor que sempre me incomodava, que ficava me sussurrando: "Há algo de errado aí? algo de muito errado?".

Mesmo assim, todas as manhãs, quando preparava meu mate, não deixava a água ferver, em respeito aos meus antepassados. "A chaleira não pode chiar", dizia para mim mesmo, repetindo uma fórmula ancestral, mas, ao mesmo tempo, sem acreditar nela.

Sabe o que me inquietava? A lógica.

Porque o chimarrão, ao fim e ao cabo, é um chá. Uma infusão. E como são preparadas todas as infusões? Com água fervente! Conta-se, inclusive, que o primeiro de todos os chás da humanidade foi bebido na China há 5 mil anos, o que não me surpreende, porque todas as coisas foram inventadas na China há 5 mil anos. Mas o que interessa agora é a forma como o chá foi criado: um imperador chinês estava fervendo água para beber e folhas de uma árvore próxima caíram na panela. O imperador viu que, a partir da fervura, formou-se um líquido de cor amarelada e resolveu experimentá-lo. Gostou e, a partir daí, passou a ferver folhas diariamente.

O chimarrão, portanto, também deveria ser feito com água em ponto de ebulição. Aliás, lembre-se do imperador chinês: ele fervia a água por questões de saúde, para matar todos os microrganismos que porventura estivessem nadando nela. Um grande motivo para nós também fervermos a nossa água, até porque a que vem do Rio Guaíba às vezes tem um cheiro maligno, não é confiável.

Por que, então, disseminou-se pelo Rio Grande a ideia (falsa! Mil vezes falsa!) de que a água do chimarrão não pode ser fervida? Que interesses estão por trás dessa fake news?

Depois de muita pesquisa, encontrei duas explicações: uma à direita e outra à esquerda.

A primeira, a explicação à direita, faz uma revelação alarmante: tudo começou na Escola de Frankfurt. Horkheimer e Habermas, principalmente eles, defendiam que os micróbios sobreviventes na água não fervida contaminariam mais do que estômagos e intestinos gaúchos: contaminariam o próprio sistema capitalista vigente no Estado. Porque, é óbvio, pessoas com dor de barriga são pessoas descontentes. Isso explicaria por que os gaúchos jamais reelegem um governador: os eleitores estão em eterna constipação ou, o que é ainda mais aflitivo, em permanente estado diarreico. E em quem poriam a culpa por tamanho incômodo? No governo, é evidente. Faz sentido. Porque, no Rio Grande amado, os desarranjos intestinais são tão frequentes, que se criou até uma palavra local para defini-los: o popular "churrio".

A segunda explicação, egressa das esquerdas, é igualmente assustadora: o conceito absurdo de que a água do mate não pode ser fervida espraiou-se entre nós por ação do Grande Irmão do Norte. Os Estados Unidos. Para a indústria farmacêutica, é fundamental que as pessoas vivam se queixando de males estomacais. Assim, ela fatura bilhões vendendo suas drogas a preços escorchantes. Os gaúchos acham os remédios caros, mas pagam, porque precisam desesperadamente se aliviar. Não é à toa que há tantas farmácias no Rio Grande do Sul.

Não sei quem está certo, mas eu, aqui, me rebelei. Fervo a água. Sim! Admito! Confesso sem pejo: fervo! Pouco me importam as críticas. Que venham os ataques nas redes sociais!

DAVID COIMBRA

30 DE SETEMBRO DE 2019
ROSH HASHANÁ

Comunidade judaica celebra o ano 5780



A comunidade judaica deu início, ao pôr do sol de ontem, às celebrações do Rosh Hashaná - o Ano-Novo judaico, que chega ao número 5780.

Em Porto Alegre, a data foi marcada pela realização de um serviço religioso na sede da Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência (Sibra), com a presença de membros da comunidade judaica de todas as faixas etárias e de representantes de outras religiões.

Ao longo de um período de três dias, ao anoitecer e pela manhã, as sinagogas realizam celebrações religiosas dedicadas ao Rosh Hashaná para pontuar a chegada do Ano-Novo com ponderações sobre a vida individual e em grupo.

- É um período de reflexão não apenas sobre o ano que começa, mas sobre o que terminou. Refletimos a respeito da nossa própria vida e também sobre nossos erros e acertos como comunidade - afirmou o rabino Guershon Kwasniewski, da Sibra.

Esse momento do ano dedicado à reflexão se estende por 10 dias, até o Dia do Perdão.

Reencontros

Para o presidente da Sibra, Daniel Weiss, as celebrações nas sinagogas, como a realizada na Capital ontem, também são importantes para fortalecer os laços comunitários:

- Muitas pessoas que não se veem durante o ano se reencontram, fazem um balanço, onde chegaram com o que fizeram e o que pretendem fazer no próximo ano.

Representantes de religiões de matriz africana, cristãs e muçulmanas enviaram mensagens de felicitação ou participaram da cerimônia inicial de Rosh Hashaná em Porto Alegre, que começou por volta das 19h. Além da palavra do rabino Guershon e de leituras sagradas, a celebração contou com música e cantos.


30 DE SETEMBRO DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

As Meninas


Em agosto, no auge da repercussão internacional das queimadas na Amazônia, a holandesa Lilly Platt compartilhou no Twitter o apelo de uma índia brasileira que denunciava a devastação em curso na floresta. O vídeo logo viralizou, atraindo a atenção de simpatizantes, mas também das costumeiras hordas de peões da barbárie. Em poucas horas, as redes sociais da garota foram invadidas por imagens pornográficas e ameaças. Detalhe: Lilly Platt tem apenas 11 anos.

Na semana passada, no Rio Grande do Norte, o radialista Gustavo Negreiros disse no ar que Greta Thunberg, de 16 anos, era "mal-amada" e estava "precisando de sexo". Não foi o único homem adulto a perder a noção do bom senso e do ridículo por aqui nos últimos dias. O deputado federal Eduardo Bolsonaro, nosso candidato a embaixador em Washington, compartilhou com seus seguidores uma foto em que Greta aparece almoçando em um trem enquanto é observada por crianças africanas famintas do lado de fora. Uma imagem tão falsa quanto mal-intencionada e covarde.

Foram tantos - e tão vis - os ataques à jovem ambientalista sueca desde que ela fez o discurso de abertura da Cúpula do Clima na ONU, na última segunda-feira, que o humorista americano Mark Humphries lançou, de gozação, um call center para dar apoio a homens adultos acometidos pela urgência irrefreável de atacar adolescentes que lutam pelas causas em que acreditam. Seria um sucesso se não fosse piada.

Meninas como Lilly e Greta lideram o movimento de jovens que estão exigindo que os adultos deem atenção à grande maioria dos cientistas (97%, segundo dados da Nasa) convencidos de que a tendência de aquecimento do planeta está ligada à ação humana e deve ser endereçada. Por diferentes motivos, muitas pessoas preferem agarrar-se aos outros 3%. Com alguma boa vontade, podemos até respeitar a dúvida honesta, mas como explicar todo esse ódio dirigido a adversárias que ainda estão na escola e morando na casa dos pais?

Para entender por que meninas que falam o que pensam incomodam tanto e por que os ataques a elas em geral envolvem desmoralização, ameaças e alusões sexuais, não precisamos da ajuda da Nasa ou mesmo de Freud. Meninas sempre prestaram-se muito bem ao papel de um certo tipo de inocência idealizada pelos homens - mas apenas se estiverem obedientemente caladas. Ou mortas.

CLÁUDIA LAITANO


30 DE SETEMBRO DE 2019
CHAMOU ATENÇÃO

Quase meio planeta sem internet


A internet segue inacessível a 49% da população mundial, revelou o estudo Estado da Banda Larga 2019 realizado por empresas da área e pela ONU. Mas, pela primeira vez, o índice apontou que mais da metade da humanidade está conectada à rede mundial de computadores, apesar de o número ainda estar longe da meta de 75% de penetração em 2025.

Quando considerados os domicílios, o índice aumenta, chegando a 57,8%. Em 2005, apenas 19% das casas conseguiam navegar na web. Contudo, quando considerada a banda larga fixa, o percentual cai para 14%.

A conectividade, não é homogênea em escala global. Fatores como localização geográfica, classe social, idade e gênero interferem nos índices. A conexão de baixa qualidade, por exemplo, é mencionada por 43% dos entrevistados em países mais pobres, enquanto que, em nações desenvolvidas, aparece em apenas 25% das respostas.

O preço dos pacotes também varia. Uma franquia de um giga em países do sul da Ásia consome 1,2% da renda mensal média. Já na África subsaariana, o serviço custa 6,8%.

A infraestrutura da rede avançou e hoje abrange 96% da população mundial. O tráfego internacional de dados é realizado por 400 cabos submarinos, abarcando 1,2 milhão de quilômetros, e por 775 satélites com atuação em serviços de comunicação na órbita da Terra.

No ecossistema móvel, 2018 foi o ano em que a tecnologia 4G se tornou hegemônica, sendo responsável por 44% das conexões móveis. No ano passado, o padrão 5G foi lançado nos EUA e na Coreia do Sul. Em 2019, a previsão é de que ele passe a ser ofertado em 16 novos países.

Para os autores, a internet se encontra em uma "encruzilhada" e é crescente o reconhecimento de que serão necessárias regulações específicas para enfrentar os riscos e desafios impostos pela rede.

CHAMOU ATENÇÃO

domingo, 29 de setembro de 2019



(Fies) o que todos os ministros já deveriam ter dito 

Weintraub disse aos donos de universidades privadas o que todos já deveriam ter dito. 'Vocês têm que se virar', disse o ministro da educação sobre dívidas

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse aos donos de universidades privadas que namoram um refresco para se livrar do calote que estimularam no Programa de Financiamento Estudantil.

“O que o governo vai fazer por vocês? Nada. Vocês têm que se virar.”

Segundo o ministro, “o Fies foi um crime do ponto de vista financeiro.” Mais que isso: foi o mais audacioso e custoso lance da privataria. O Fies dava financiamento a quem tirava zero na prova de redação, aceitava fiadores de fancaria, produziu um mico de R$ 17 bilhões e enriqueceu empresários espertalhões, ou senis, que acreditavam no moto contínuo.

Esse desastre foi construído com a cumplicidade da burocracia do MEC. Como dizia o ministro Paulo Renato: “Há setores que você pode até entregar para as freiras carmelitas descalças, mas na segunda reunião elas chegam com bolsas Vuitton”.

Se Weintraub mantiver sua promessa, a turma que passou a inadimplência de seus fregueses para a Viúva e ajeitou suas contas fazendo doações a candidatos, oferecendo cursos a gente boa, y otras cositas más, ficará chupando dedo.

Quem puder, se vira, quem não puder, quebra. E bola ao centro.

Elio Gaspari - Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Nathalia Arcuri chega à Band com a missão de tirar brasileiros da dívida com leveza e humor


3.000 pessoas se inscreveram para receber ajuda do reality financeiro



A especialista em finanças pessoais e empreendedora Nathalia Arcuri - Ricardo Carvalheiro/Endemol 
Em Me Poupe, Dívidas Nunca Mais!, Arcuri vai ajudar uma família por semana em 12 episódios. O programa recebeu 3.000 inscrições que pediam um longo  questionário sobre porquê elas deveriam ser ajudadas pela jornalista. “Temos de tudo, gente que está desempregada e que ganha R$ 30 mil por mês e aquelas que não fazem ideia do tamanho da dívida que tem”, conta Arcuri. Ela cita um participante que fez uma conta próxima de R$ 120 mil, enquanto ele devia quase R$ 500 mil.

Em seu canal no YouTube, ela já fez um teste com dois personagens. Bruna Andrioto cumpriu a missão de pagar R$ 70 mil em dívidas em 4 semanas. E Natália Veronez que devia R$ 30 mil só para os parentes também chegou a um acordo com todos eles. No programa de TV, a produção acompanhou os inscritos por um mês para conseguir encontrar uma solução para tirar o endividado do buraco.Para tirar os pés do inscrito da lama, Arcuri vai fundo nos estudos e usa teorias de finanças comportamentais, psicologia econômica e programação neurolinguística. 

“A questão financeira é só a consequência de um problema maior. A origem costuma estar no descontrole alimentar, ou no gasto com roupas —uma das maiores causas de inadimplência em cartão de crédito— e, ainda, as pessoas são muito desorganizadas. Elas pagam contas atrasadas com juros, esquecem de pagar o cartão de crédito que têm juros altíssimos”, avalia a jornalista, com base em sua experiência com seus seguidores no YouTube. 

A jornalista que poupou 70% de seu salário nos primeiros anos de emprego —e assim chegou ao seu primeiro R$ 1 milhão— pega pesado com os participantes. Como não há ajuda financeira envolvida, é preciso que as pessoas produzam renda extra, fazendo trabalhos ou vendendo roupas ou sapatos e tem todos os seus gastos controlados pela produção do programa. “Não damos prêmio porque queremos que o público se sinta no lugar daquela pessoa. Não tem ajuda nenhuma, nem cachê. Elas ganham de presente uma vida financeira nova”, explica Arcuri.
Toda essa reforma financeira é feita com ajuda de sua equipe, como Edson Leite, criador do projeto Gastronomia Periférica. “Vocês precisam ver o que ele faz com apenas R$ 20”, afirma Arcuri. Há ainda as consultoras  Carol Caliman e Carlinha Catap (consultoras de estilo) e Cora Fernandes (Personal Organizer) que ajudam os participantes a se livrar do que está sobrando em casa e fazer dinheiro com esses objetos e roupas. “Sair do estado de dívidas para de investidor é uma questão de comportamento. Não é saber fazer planilha ou saber lidas com números”, afirma Arcuri.

Mesmo com personagens em situação financeira bem complexa, Arcuri diz que ainda falará sobre investimento, já que é uma lenda, para ela, que endividados não possam poupar. “A questão de investimento é usada para mudar a chave da cabeça da pessoa. Quando eu só falo de dívida, elas só pensam em dívida. Na trajetória do Me Poupe!, muitas vezes, a pessoa começa a endividada e por ter acesso a mais informação, ele se transforma em investidor, porque essa acaba sendo a meta”, explica a jornalista. 

Além do participante selecionado, o programa terá quadros de educação financeira e selecionará dúvidas enviadas ao canal do YouTube Me Poupe! Uma das criações inéditas é o “Trago o Seu Dinheiro de Volta”. “Monto um banquinha na paulista com uma bola de cristal, que não lê nada obviamente, e vejo o futuro da pessoa pelo seu extrato bancário. Dali consigo ver se ela será um endividado nos próximos meses”, conta Arcuri.

Arcuri afirma que entende a crise que o país passa, mas crê que uma mudança de pensamento pode revolucionar muitas famílias. “O brasileiro passa muita dificuldade sim, mas também é muito acomodado, porque recebo perguntas todos os dias de conteúdos que já foram tratados nos meus vídeos”, reclama a especialista. 

DA INTERNET PARA A TV ABERTA

Desde 2012, Nathalia Arcuri tenta emplacar o reality financeiro na TV aberta. Ela começou o portal quando percebeu que poderia ajudar muita gente se conseguisse traduzir o difícil linguajar do mercado financeiro. E deu certo. Com vídeos didáticos e dicas práticas, ela se tornou referência no assunto.  “Quando a ouvi dizendo que ela começou esse trabalho por saber que 70% das mulheres que sofrem violência doméstica não conseguem sair dessa situação por não ter independência financeira, quisemos abraçar essa causa”, afirma Juliana Algañaraz, CEO da Endemol Shine Brasil.  

Na internet, o Me Poupe! é o maior canal de finanças do mundo do YouTube, com 4 milhões de assinantes, segundo Arcuri. A jornalista também já lançou o livro “Me Poupe! 10 passos para nunca mais faltar dinheiro no seu bolso”, mas, mesmo assim, ela queria chegar a quem não tem acesso tão fácil à internet, e conseguiu que a Endemol Shine Brasil (a mesma do MasterChef e Big Brother Brasil) entendesse seus objetivos. 

“O Brasil ainda precisa da TV aberta, que atinge 90% dos lares do Brasil entre 200 milhões de pessoas. Então, o grande desafio aqui é transformar uma linguagem digital em televisa que alcance todo o país de Oiapoque ao Chuí”, afirma Algañaraz. 

A promessa de sucesso é tanta que a Endemol exportará a ideia a outros países já no ano que vem. “Cada vez mais estamos exportando. Nos últimos anos já mandamos um reality de cabelos que foi para Portugal e um de cervejas que vai para a Espanha e são todas as ideias brasileiras. No ano que vem, o Me Poupe vai viajar pelo Mundo”, afirma CEO da Endemol.

sábado, 28 de setembro de 2019


28 DE SETEMBRO DE 2019
LYA LUFT

Pode ser mais simples

Almas aflitas, inseguros no turbilhão de informações corretas ou tresloucadas que nos confundem, em que até altas figuras fazem e refazem, decidem e se enrolam, vivemos vulneráveis a toda sorte de famigeradas "receitas" baseadas na futilidade geral: seja bem-sucedido, segure seu marido, enlouqueça sua mulher, tenha pelo menos dois orgasmos a cada relação, jamais envelheça etc. Como tudo está cada vez mais complicado, e andamos desgovernados, encalhados ou jogados por marés imprevistas, desistindo de prever qualquer coisa porque tudo se levanta e desmorona em questão de horas, acabamos nos aferrando a algum desses preceitos espalhados por toda parte.

É a era das receitas, das frases feitas e clichês, adaptados a milhares de desiguais como se assim carimbados não tivessem individualidades. Somos uma manada, o que oferece conforto, mas aniquila o espírito. Rouba a liberdade, mata a originalidade. É essencial - nos aconselham - fazer como todo mundo, frequentar o restaurante da hora, o cabeleireiro idem, ler aquele best-seller sem saber do que trata, conhecer as Bahamas, dar uma passadinha em Paris. Transpirando e lutando para pagar as reles contas do dia a dia, corremos ofegantes em busca disso que não podemos avaliar nem alcançar, eternamente frustrados.

Se prestarmos atenção a muitas mutantes e loucas recomendações, havemos de nos divertir: Não beba muito café; café faz bem. Não tome aspirina demais; tome uma por dia (a infantil, claro). Vitaminas não ajudam; tome esse moderno complemento de vitaminas. Faça exames a cada poucos meses; não faça exames demais. Álcool faz mal; uma taça de vinho faz bem. Exercite-se diariamente; não se esforce demais. Coma só carboidratos, evite carboidratos; fuja das gorduras, coma bacon e ovo frito todo dia no café da manhã... além dos grotescos conselhos sobre sucesso profissional, sexual, e ser linda(o), "ser famoso".

Mesmo em assuntos mais sérios, há declarações duvidosas, como "Quem não lê é uma pessoa triste". Desculpem, amigos, leitores, ex-alunos e colegas escritores, mas isso é mais uma empulhação. Quem não lê sabe menos, se diverte menos, tem menos bagagem interior, visão bem mais estreita de mundo, talvez fique mais solitário (livro é um belo companheiro) - mas não precisa ser "triste". Os mais ignorantes, quem sabe, andam mais alegrinhos por não fazerem ideia do festival de enganos e desfaçatez em que nos enredam.

Atenção: não estou dizendo que a gente não siga ao menos essa receita, de ler mais. Mas não reside nisso nossa tristeza: apenas, lendo, nossa alma se expande, cria varandas como dizia um amigo meu; aprendemos história, arqueologia, psicologia, saboreamos beleza, nos intrigamos, nos conhecemos melhor, curtimos "as franjas das palavras", seus muitos sentidos - se soubermos ver. Tudo pode ser mais simples do que nossa aflição com receituários financeiros, psicológicos, sexuais.

Numa palestra, me perguntaram por que alunos deveriam estudar. Não precisei refletir. Do fundo dos meus tantos anos e experiências, fracassos e tolices cometidas, respondi o que julgo ser a verdade mais simples: "Devem estudar para não ficarem burros".

De modo geral, em quase tudo a simplicidade nos salva. Coluna publicada na edição de 10 e 11 de dezembro de 2016

LYA LUFT

28 DE SETEMBRO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Levante e vá


Estava em minhas mãos o convite para assistir à palestra de um pensador contemporâneo que tem feito diferença com suas ideias e experiências. Deu vontade de ir. Mas em rápidos segundos conjecturei: está previsto chuva, o local não tem estacionamento, se eu for de Uber vai ter um montão de gente se amontoando para chamar o seu no final, e ainda por cima posso ver esse cara dando entrevistas pela web, ler tudo o que ele pensa em sites e livros. Me abalar até lá pra quê?

Aí lembrei de uma conversa que tive certa vez com um chatonildo que dizia que nunca ia a shows porque considerava um crime o preço dos ingressos e que podia tranquilamente escutar música em casa, a todo volume, sem esperar em fila, sem passar por revista na entrada, sem ninguém pisando no seu pé ou tapando sua visão. Não me conformo até hoje com essa escolha asséptica de viver regido pelo conforto, abrindo mão de estar no meio da muvuca.

Poucas coisas merecem ser adjetivadas como vibrantes. Shows são muito vibrantes. A energia já se espalha pelos arredores, começa a ser sentida durante a aproximação coletiva daquela multidão que se dirige ao mesmo lugar e com o mesmo propósito, como se estivesse peregrinando até uma igreja. Você já esteve num estádio de futebol? Numa passeata? Mesma coisa. É emocionante deixar de ser uma unidade para virar torcida, plateia, massa - fazer parte de algo maior do que o nosso eu.

Dentro de um estádio ou de um auditório lotado, ninguém pensa no que está acontecendo do lado de fora. Pode o mundo acabar que não importa. Fomos capturados pela magia estupenda de uma apresentação ao vivo, pelas vozes, suores, entrega de quem está no palco. É uma consagração, e o sagrado está sendo dedicado ao público, à divindade presente.

Então, que tal se desacomodar um pouco? Vamos sair de grupos de WhatsApp e fazer mais festas. Trocar um chat por uma conversa num bar. Não apenas curtir postagens de fotos, mas estar lá, ver com os próprios olhos. Dá trabalho, custa uns trocados e vencer a preguiça é uma guerra, mas você é um ser humano ou um rato?

Acabei indo à palestra. Não só pelo convidado grandioso, mas para somar meu aplauso aos dos outros, para trocar comentários com quem estava ao meu lado, sentir a pulsão do momento e principalmente para não me habituar a ver o mundo só pela tela do computador. É por isso que vou tanto ao teatro também, uma arte que não se realiza sem presença. É um privilégio ter uma conexão real e imediata, ser arrebatada por uma paixão momentânea que ao final evaporará sem deixar registro, a não ser na minha alma.

Sugestão de prioridade: continuarmos sendo testemunhas oculares da própria vida.

MARTHA MEDEIROS


28 DE SETEMBRO DE 2019

CARPINEJAR


Aquilo roxo


Fui convidar um amigo para sair. Estava em dívida com ele. Fazia meses que não colocávamos o papo em dia. Vivia adiando a conversa pelo excesso de trabalho. Ele surgiu com uma proposta um tanto estranha: - Vamos tomar um açaí amanhã de tarde?

Como assim açaí? Onde está a amizade da cervejinha? Onde está a cumplicidade da ceva gelada após o expediente?

É o fim do que conheço como parceria masculina. Convivência boa entre marmanjos trará quilinhos a mais, em nenhum momento quero controlar a aparência e evitar a barriguinha - isso já faço em casa.

É para beber despreocupado com o amanhã e depois filar uns bolinhos de bacalhau de recompensa, dividir umas frituras, experimentar tira-gostos do cardápio.

Com açaí, não tem saideira. Com açaí, não tem gargalhadas. Com açaí, não dá para ficar mais de meia hora numa mesa. Com açaí, ninguém vai se abrir, não haverá debate sobre futebol, confissões sobre casamento, indiscrições do emprego, contação de segredos difíceis. Não iremos olhar o movimento da rua com leve embriaguez, com direito a piadas e ironias de rápida espontaneidade.

Açaí rima apenas com pede para sair. Não nos encontraremos à vontade para dizer bobagens, para expor o que passa pela cabeça, para sermos autênticos.

Trocar o copo prismático de vidro pela sobriedade de uma colher de plástico constrange a intimidade das implicâncias.

Por mais que encha o pote de toppings, não teremos tempo para debater a fundo nenhuma última polêmica de nossas vidas. Acabaremos o conteúdo da fruta antes de começar a desvendar as raízes dos problemas.

Assim como acho um pouco inadequado e desconfortável comer moranguinhos na frente de alguém.

O companheirismo fitness não tem o mesmo valor das trovas botequeiras, das confidências do trago, do conclave ao entardecer, das horas perdidas e inconsequentes das verdades.

Amizade depende da recreação da memória, da desobrigação das toalhas de papel e dos cuidados com a etiqueta. Amizade é garrafa vazia e cabeça cheia de bobagens.

Porque não há nada mais consagrador do que só interromper o assunto para levantar o braço e incluir, corajosamente, mais uma na conta.

O que será do destino de nossos laços sem antes descobrir se o amigo gosta de ser servido com ou sem colarinho? Não saber disso é desconhecer inteiramente a companhia, é o bê-á-bá da confiança.
Desculpe, irmão, mas açaí não.

CARPINEJAR



28 DE SETEMBRO DE 2019
CAPA

"Vestir-se bem não é só uma questão de vaidade, é uma vontade de estar bem consigo"

Em seu novo livro, você afirma que a "deselegância é prolixa". No mundo de excessos das redes sociais, há espaço para a elegância?

Sou uma pessoa de outra geração, portanto não tenho essa intimidade (com as redes). Quer dizer, tenho para trabalhar, é útil, e realmente mudou a vida da gente. Quem me obrigou a começar foi Nelsinho Motta. Quando era casada com ele, me obrigou a ter um computador (risos). O negócio é que não fico atrás dessas conversas na internet. Eu me informo, porque a gente precisa saber o que está acontecendo, e sou curiosa, estou interessada na política mundial e local. Mas discussão entre pessoas acho deprimente, perda de tempo.

Onde está a elegância hoje?

Na empatia. Você precisa se interessar pelo outro. A elegância está em você não invadir o espaço do outro. Sei que é difícil a gente deixar de observar a si próprio para observar o outro.

Também no novo livro, você se preocupou em resgatar "rituais de dignidades sociais" que caíram no esquecimento. O que a gente perde quando ignora esses códigos sociais?

Não é que se perderam, nunca foram conhecidos (risos). Esse é o drama! As pessoas acham que moderno é não ter regrinhas do bem viver. Então você pisa no outro, fala o que quer, grita no telefone, ocupa o espaço que não é só seu. Tá difícil... E não é só no Brasil, não.

O quanto isso é cultural?

Acho que é muito do contemporâneo. Se você olha para a moda, é muito simples. Saímos do século 19 muito formais. Depois, ainda imitamos a burguesia durante a primeira parte do século 20. De lá para cá, tudo se tornou mais casual, não somente a roupa, mas o comportamento. Não temos mais esse formalismo. Por outro lado, não sabemos mais nem cumprimentar as pessoas direito. Ou exageramos, o que também não é necessário. As pessoas da minha geração, quando querem ser bacanas, são muito formais. Tem que conhecer as regras e ter uma certa, digamos, suavidade na adaptação.

Como você avalia a cobertura de moda no Brasil?

A moda está encontrando outra maneira de existir. Fiz minha carreira na editoria de moda de revista impressa. Você sabe muito bem que mudou totalmente o panorama. As revistas que sobreviveram tentam incluir, na discussão, outros valores que não somente a moda. A cobertura ficou um pouquinho menos interessante porque você encontra tudo na internet ou pelo menos aquilo que interessa saber para a vida de hoje, que é menos formal, com menos ocasiões. Só tem roupa de festa quando tem casamento.

A internet é um grande mosaico. Não faz falta uma curadoria inteligente de tudo o que está disponível hoje?

Acho que faz. Houve tentativas interessantes que fizeram muito sucesso no começo, tipo o (site norte-americano) Refinery 29, que misturou comportamento a moda. Mas hoje você tem tantas imagens na internet, sobretudo no Instagram, que é mais fácil acompanhar uma blogueira ou influenciadora que tem a personalidade parecida com a sua. Assim como as atrizes eram um espelho da gente na época, hoje são essas meninas influenciadoras. E tem uma de cada gênero. A minha filha Consuelo (Blocker), de 55 anos, tem um público superfiel. Conheço bem a Camilinha, as duas Camilas (Coutinho e Coelho), e elas estão o tempo todo se mexendo, avançando, mudando a maneira de comunicar. Porque não é só moda, é comportamento. E o que é a moda senão o retrato do comportamento de uma época?

Você também é próxima de outras jovens influenciadoras, como a Luiza Brasil e a Jana Rosa.

Adoro! Elas são minhas amigas. Elas me atualizam, sabe? Eu não tenho preconceito. Preconceito é horrível porque a gente não vai pra frente, né. Pré-conceito, quer dizer, ter um conceito antes de ver o que é. Elas me dizem como as coisas são. A Luiza me policia até na linguagem (risos). Porque o politicamente correto é meio complicado. Desde que comecei a escrever, a ortografia mudou cinco vezes (risos)! E ainda tem o politicamente correto! Além disso, estou sem memória, então, você imagina, ela tem que repetir muito (risos). A gente se diverte à beça.


28 DE SETEMBRO DE 2019

LEANDRO KARNAL

Língua e vida

A língua é viva e poucas coisas envelhecem tão rapidamente nela como a gíria. Nascidas de um termo da moda, de uma tendência passageira ou de algum leve agito na superfície dos vocábulos, as gírias raramente permanecem. Mais: saber algum termo denuncia idade. Uma propaganda, por exemplo, fundiu o termo bocó com mocorongo e surgiu "boko-moko" e ninguém jovem tem a mínima ideia de que era algo para indicar brega, cafona, kitsch.

Indicar um amigo querido como bicho já foi afetivo. Hoje implica ser fã de Roberto Carlos. Você ainda elogia alguém como batuta? Há chance de a pessoa se ofender se for mais recente seu nascimento. "Batuta é a sua mãe, filho de uma batuta!" Seu amigo dança com habilidade? Se você disser que ele é um pé de valsa, pode soar como algum tipo de joanete específico para muitos. "Chegou serelepe à festa supimpa?" Isso hoje pode ser que usou "bala" ou "doce" antes do evento? Se você nunca imaginou que "doce" se refira à droga LSD ou que "bala" possa se referir ao universo das anfetaminas, parabéns, você está "limpo", outra gíria do gueto dos "brisados". Grupos específicos criam muitas gírias.

Vai beber? Se pedir goró, mé, caninha, cachaça, birita, pinga, solicitar algo para molhar o bico ou para calibrar (retirei o "já") indicará que tem idade legal para consumir. Falar birita, aliás, já quase sinaliza que você poderia passar à frente da fila do bar protegido pelo estatuto do idoso. Está na hora de buscar sua patota, a turma que assistia ao Patrulheiro Rodoviário na adolescência.

Sinal claro de testosterona em declínio: "Aquela menina é um broto". Se ela retribuir e disser que você é um "pão", convide-a para sair, pois vocês pertencem à mesma geração e podem compartilhar seus remédios de controle de colesterol.

Há termos superados pela tecnologia. "Cair a ficha" ou "virar o disco!" não apenas perderam o sentido, distanciaram-se do real porque quase nada mais usa ficha e o disco de vinil é peça pouco comum. Novas tecnologias causam novos termos. Na internet, alguém pode "hitar" (fazer sucesso) ou um novato no grupo de game: "Noob".

Volto a repetir mesmo não sendo da área: a gramática e o dicionário de uma língua são museus; a vida pertence à rua e aos usuários nativos que usam, moldam, transformam e "deformam" os sentidos.

Da mesma forma que a dinâmica linguística é fascinante e bela, existem palavras que atravessam os séculos com força. As gírias/palavrões com conotação sexual são as mais notáveis. Mestre Houaiss registra que o termo mais vulgar e comum para descrever o ato sexual começa com f. e tem origem no século 13. Incrível! Algumas pessoas nem imaginariam que houvesse sexo na pudica e piedosa Idade Média, mas não só havia intercurso, conúbio amoroso e fornicação, como havia f.

O que feria ouvidos da época ainda não pode ser descrito totalmente em ambientes sofisticados e puritanos. Porém, de todos os termos, o infinito e o particípio passado de f. é o mais plástico e amplo. Em si, designa verbo que envolve prazer. Pode ser indicativo também de uma vingança de pessoa abandonada por amante: "Eu vou f. com sua vida".

Pode ser um poderoso elogio quando substantivado: "Você é f., cara!". Caracteriza o fundo do poço existencial no particípio passado: "Estou f.". Assinala absoluta indiferença com certa negatividade: "Eu quero mais é que se f.". Há sentidos mais complexos, como "está de f. o orifício anal do palhaço". Indica, no último caso, tarefa árdua, com dificuldades extremas. Normalmente, nas ruas e praças ou WhatsApp, orifício anal é substituído pelo símbolo do elemento cobre na Tabela Periódica.

Língua é viva, ampla, pulsa muito além da sala de aula. Se você é jovem ou mais maduro, adepto de vocabulários sofisticados ou busca neologismos de internet, saiba, sempre, que a comunicação vai além do indivíduo e do seu mundo. Língua é ponte e muitos a querem como muro. Língua comunica e há quem insista que ela deve ser tão fossilizada que impeça a comunicação. Quando você estuda a fundo a gramática, isso deve ser um trampolim para entender qual a dinâmica de uma língua, muito mais do que supor que as proparoxítonas devam ser todas acentuadas. As proparoxítonas, antigamente chamadas de esdrúxulas, têm uma sílaba tônica na antepenúltima sílaba e, na língua usual, esse ritmo de sílaba forte é pouco comum.

Assim, ao estudar gramática, você percebe a melodia da língua, suas exceções e saltos, sua vida e a história dos mais fundos conceitos que regem nosso cérebro com a sua respectiva língua materna. Nossa língua pode ser "rude e dolorosa" como especificou Bilac, pode usar gírias de internet ou antigas, pode ter a cadência camoniana ou o brilho dos termos em iorubá: sempre será a nossa, viva, rica, multicolorida, mestiça, com pai latino, vibrantes tios africanos e indígenas, invasão de algum software e, sempre, sempre, acima de tudo, a língua que ouvimos da nossa mãe.

Amar a língua nunca será acompanhá-la à sala de necropsia, todavia expandi-la em novos gritos de vida. E, ao fim, com sorte, depois de termos dado nossa vida com ela e através dela, assinalará, em sonoro português, que "aqui jaz" um usuário da língua portuguesa e que, momentaneamente, não pode mais receber seu WhatsApp. É preciso falar da palavra portuguesa esperança. É um termo lindo.

LEANDRO KARNAL

28 DE SETEMBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

A CIDADE IDEAL

No século XV, apogeu do Renascimento italiano, teóricos e pintores imaginaram como seria a nova cidade, animada pela ciência greco-romana, então reconquistada com entusiasmo. Sobreviveram daquele movimento três quadros, de autoria disputada, hoje exibidos em Baltimore (EUA), Berlim (Alemanha) e Urbino (Itália). Cognominados La Città Ideale, apresentam a imagem do centro de cidades racionais, clássicas, bem iluminadas e ventiladas, com pavimentos geométricos, ampla área pública, prédios belos simetricamente dispostos e eixos do espaço, que conferem perspectiva e ordem à urbe idealizada. 

Nas imagens, há pouca circulação humana, mas vê-se ambiente que convida a uma vida urbana sofisticada. No núcleo cultural desta imaginação da cidade temos o icônico Homem Vitruviano, desenho de Leonardo da Vinci (1452-1519) que representa o sistema de proporções e medidas que une o corpo humano ao espaço edificado, a partir do umbigo que é também centro da habitação, dos templos, da cidade e do cosmos.

É na nave cidade que nos movemos neste ciclo cultural em que estamos há 5 mil anos. No ciclo anterior, período Neolítico, houve cidades na Anatólia (interior da Turquia), como Çatal Hüyük e Göbekli Tepe, que colapsaram após cinco milênios, por razões que são hoje investigadas também com interesse em nosso mundo, gravemente ameaçado. A partir de c. 3100 a.C., as cidades mesopotâmicas evoluíram entre muralhas, com plano geométrico e hidráulico, e se tornaram a matriz do urbanismo antigo. 

Em Creta, no segundo milênio a.C., houve palácios como Knossos, com vários pavimentos, sistemas de água potável e servida e corredores, como se fossem condomínios compactos. Foi com o grego Hipódamos de Mileto (498-408 a.C.) que o urbanismo tornou-se teoria moderna, para planejarem-se cidades saudáveis, aeradas e ensolaradas, com quarteirões proporcionais, origem do plano urbano que hoje predomina. O arquiteto latino Vitrúvio (morto em 15 a.C.) herdou aquela teoria e acrescentou-lhe elementos romanos, descritos na obra De Architectura, relida na renascença. Desde então, desenvolvem-se várias ciências para dar forma a um produto máximo do espírito humano, a cidade.

Entregar o destino da cidade ao acaso, a demagogos ambiciosos ou à voracidade sem limites de especuladores imobiliários é o mesmo que entregar uma orquestra sinfônica para que um símio a reja, com a ressalva de que um macaco pode fazer mais regendo do que um despreparado governando. 

É preciso que se aplique em grau contemporâneo e com unidade o conjunto de ciências da cidade, do fundamento arquitetônico à vida democrática, dos serviços públicos de educação, cultura e saúde à circulação viária, da infraestrutura ao planejamento de longo prazo. É arte complexa, política, e sua finalidade é promover o espaço público, hoje degradado por gestores incapazes.

Nós, brasileiros, estamos nos acostumando a sofrer sob o jugo de governantes péssimos, como se fosse destino imperativo. Talvez seja a hora de começarmos a imaginar com cultura o que é a cidade ideal, antídoto aos males do Estado, jardim em que realizamos nossas travessias.

FRANCISCO MARSHALL


28 DE SETEMBRO DE 2019
ESPIRITUALIDADE - (Mestre Dogen)

PRIMAVERA

"O desabrochar da ameixeira é a primavera." 

A flor não desabrocha na primavera, mas o desabrochar da flor é a primavera. Não há uma estação do ano chamada primavera independente do desabrochar das flores.

Nos países temperados, a primeira árvore a desabrochar é a ameixeira branca. A árvore ressecada parece morta, sem folhas, com galhos e tronco tortos. De repente um pequenino botão de ameixeira branca surge, outro e mais outros. A fragrância volta a existir depois de meses de neve e gelo. A ameixeira branca é o símbolo da resiliência, uma das árvores utilizadas nas cerimônias especiais de congratulações. As duas outras árvores são o pinheiro, da longevidade, sempre verde em todas as estações do ano e o bambu com sua flexibilidade e respeito aos que surgiram primeiro (cresce em nódulos). Há um poema antigo japonês:

Ume wa kanko ete. Senko o hasu. (A ameixeira suporta o frio terrível

E desabrocha em fragrância.)

Resiliência é a capacidade de suportar dores terríveis, perdas, doenças graves, atropelamentos, depressões, lutos e desabrochar _ depois do frio e da falta de sentido da existência _ para ressignificar a vida.

"O desabrochar da ameixeira é a primavera."

Foi uma frase deixada pelo Mestre Eihei Dogen Zenji (1200-1254), fundador da ordem Soto Zen, no Japão medieval. Perceba que há uma sutil mudança de olhar.

Essa mudança transforma todos os nossos relacionamentos internos e externos.

Todos os nossos olhares. Pois nessa frase está o ensinamento básico de que tudo que existe é o co-surgir interdependente e simultâneo.

Nsta semana, as flores estão desabrochando, por todo o hemisfério sul do planeta _ primavera.

Já no hemisfério norte, as folhas que caem são o outono.

Segunda-feira, 23 de setembro, foi o dia do Equinócio, quando a noite e o dia têm a mesma duração. Entretanto, a noite não é igual ao dia, nem o dia igual à noite. O dia tem começo, meio e fim. O dia tem suas características únicas: sol, claridade. A noite tem começo, meio e fim. A noite tem sua característica de céu escuro, lua, estrelas.

Durante o Equinócio, noite e dia têm a mesma duração, mas não são iguais. Assim nós, seres humanos, não somos iguais _ cada um é único, mas todos temos o mesmo valor.

A mente da sabedoria perfeita é a mente da equidade. Ou seja, percebemos as diferenças e também percebemos que todos os seres são o todo manifesto.

Não somos iguais, mas podemos compreender, entender nossas diferenças.

A mente da equidade está além dos apegos e das aversões. É capaz de identificar cada criatura, respeitar suas características e agir de forma adequada às circunstâncias, sempre para o bem de todos os seres.

A mente da equidade é manifestação das Seis Perfeições: Dana - doação, caridade, amor, presença pura; Sila-_ preceitos, vida ética, fazer o bem a todos; Ksanti - paciência; Virya - força, perseverança; Diana - zen, meditação; Prajna - sabedoria.

As seis perfeições são como uma flor de seis pétalas, que desabrocham e são a primavera.

As seis perfeições são como seis folhas caindo e manifestando o outono.

Que o despertar da mente humana nos liberte da ganância, da raiva e da ignorância.

Que todos possam ser felizes e encontrar a plenitude. Mãos em prece

Monja Coen escreve a cada 15 dias neste espaço - MONJA COEN


28 DE SETEMBRO DE 2019
JJ CAMARGO

TODOS TEMOS RAZÃO

Não é tolerável achar que todo mundo que pensa diferente é careta, radical ou demente . Que a gente conviva com mais certezas do que dúvidas, parece uma coisa bem razoável, porque, afinal, valemos pelo que acreditamos. Então, é ótimo que estejamos assim, convencidos. O que não é de nenhuma maneira tolerável é a tendência moderna de achar que todo mundo que pensa diferente está irrecuperavelmente equivocado e é careta, ou radical, ou demente.

Certamente, essas manifestações de intolerância estridente têm a ver com a predominância de jovens metralhando nas redes sociais, com aquelas certezas da juventude que vão se diluindo com as dúvidas da maturidade, e a tal ponto e tão continuamente, que os precipitados julgam que as decisões do velho, cheias de ponderações, são apenas a expressão da decrepitude, quando na maioria das vezes são a mais rica manifestação de sabedoria.

Todo mundo se lembra do quanto a juventude foi a era das certezas absolutas, e, sem espaço para dúvidas, éramos os árbitros sempre disponíveis e implacáveis.

Essa evolução antropológica saudável me remete a uma parábola da milenar cultura judaica, que considero primorosa:

Um jovem procura o velho rabino para relatar uma briga feroz que travara com um colega de trabalho. Conta em detalhes o que considerava uma atitude mesquinha e desqualificada. O rabino o escuta em silêncio e pondera: "Meu filho, eu acho que você tem razão. Só recomendo que, se planeja tomar uma atitude, aguarde uma semana. As represálias no calor da indignação, a médio prazo, costumam magoar mais o agressor do que o agredido. Vai em paz e que Deus o acompanhe!".

No final da tarde, o objeto da discórdia procura o mesmo rabino e narra a sua versão do ocorrido e do quanto aquilo exigia uma reparação. Da mesma forma, o rabino, cofiando a barba branca, atribui-lhe a razão e repete a recomendação de prudência na resposta. A esposa do rabino, que, tendo ficado curiosa com a história do primeiro, acompanhou furtivamente e com máximo interesse o depoimento do segundo, assim que este saiu irrompe na sala do marido para confessar seu espanto: "Como pode um rabino que, em princípio, deve ser um árbitro imparcial das rusgas dos integrantes da sua comunidade, dar razão a duas atitudes opostas? Sinto muito, mas acho que hoje o seu desempenho foi constrangedor!".

O rabino, com aquela calma que nasce da fusão de experiência com sabedoria, confessa: "Não se choque tanto, minha querida, porque eu preciso admitir que você também tem lá a sua razão!".

Os indivíduos normais, que cresceram bem amados, e, por boa sorte ou educação adequada, se mantiveram distantes de ideologias escravizantes, e beberam da cultura que abomina a servidão mental, se dão conta que viver é apurar a capacidade de julgamento. E que o juízo precoce, em geral, desmerece quem o emitiu. E só saberemos que a maturidade chegou quando se tornar cada vez mais frequente o uso de dependes antes de um juízo definitivo. Porque a afoiteza é o caminho mais curto para o arrependimento, ou o remorso.

JJ CAMARGO


28 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O pinguim apaixonado

O pinguim, quando está apaixonado, convida a fêmea para passear na praia. Eles caminham lado a lado pela areia, ela faceira, ele olhando para baixo, como se estivesse procurando algo. E está mesmo. Está procurando a pedra ideal. De repente, encontra-a e a oferece para a pinguinha. Ela analisa o presente detidamente. Se recusa, o pinguim foi rejeitado. Ele vai embora, cabisbaixo, chateado, com aquele jeito engraçado de andar dos pinguins. Mas, se ela pega a pedra, gol do Brasil. Eles começam a namorar e nunca mais se separarão.

Meu filho descobriu isso sobre os pinguins, dias atrás, e veio falar comigo:

- Papai, tenho uma dúvida.

- O que foi, guri?

- Qual foi o primeiro pinguim que inventou essa tática da pedra? Tem que ter um primeiro, não é? Ele fez e os outros imitaram, e continua assim até hoje.

Fiquei refletindo. É provável que ele tenha razão. Deve ter existido um pinguim pioneiro, que conquistou a amada oferecendo-lhe uma pedra, e os outros acharam boa ideia. Porque, afinal, dar uma pedra para a pinguinha não parece um ato instintivo, como comer, beber e fazer sexo. Há bichos que se exibem para as parceiras em danças de acasalamento, outros cantam e o pavão abre aquele rabo dele, mas uma pedra é algo externo. É um instrumento, pode-se dizer, e só o Homo sapiens usa instrumentos.

Sim, houve, um dia, um pinguim genial, que moldou o comportamento de todos os outros pinguins do mundo.

É verdade que as nossas fêmeas também gostam de pedras, tanto que o ritual tradicional do pedido de casamento humano é bastante semelhante ao dos pinguins: o macho oferece um anel com uma pedra bem cara engastada e, se ela aceita, começou o compromisso. Mas nós temos o irritante hábito de subverter hábitos. As coisas são feitas sempre de um mesmo jeito e volta e meia aparece alguém para mudar tudo. Por que tanta inconstância. Por que não podemos ser previsíveis como os animais? Tudo seria mais fácil. Nós sempre saberíamos o que fazer. E, o melhor, não precisaríamos de governantes, legisladores ou juízes. Porque os costumes seriam as leis, como era antes, nos primórdios da civilização. Algo acontece e você já sabe qual será a consequência, sem discussões, sem sobressaltos. Seria útil no mundo inteiro, mas muito mais no Brasil. Porque, puxa, um país em que procuradores planejam matar juízes dentro do tribunal não é um país confiável.

O dromedário triste

Meu filho estava atento às ocorrências do mundo animal, nesta semana. Logo depois de descobrir os estratagemas românticos dos pinguins, contou-me sobre um caso assombroso: uma mulher deu uma mordida nos testículos de um camelo na Louisiana.

Na verdade, não era um camelo; era um dromedário - o camelo tem duas corcovas e o dromedário apenas uma.

Primeira pergunta: o que um dromedário estava fazendo na Louisiana? Isso é fácil de responder: estava confinado em um pequeno zoológico de estrada.

Pois bem. Deu-se que a tal mulher, seu marido e o cachorro do casal, que é surdo, foram ver Casper no zoo (Casper é o nome do dromedário). Eles gostaram tanto de Casper que começaram a jogar comida para ele. O cachorro, que devia estar com fome, considerou a comida apetitosa e entrou na jaula, com a evidente intenção de partilhar com Casper o seu lanche. Temendo que Casper se assustasse e fizesse mal ao cachorro, o casal o chamou. Mas o cachorro é surdo e não atendeu. In extremis, o casal invadiu a jaula de Casper, que, aí sim, se assustou.

Segunda pergunta: como reage um dromedário assustado? Essa não é tão fácil de responder, mas nós descobrimos graças ao casal invasor de jaulas, porque Casper avançou sobre a mulher e SENTOU-SE EM CIMA DELA. Oprimida sob o peso do grande animal, sentindo que seria inapelavelmente amassada, a americana reparou que, bem diante dela, balançava o saco escrotal do dromedário. Então, ela não teve nojo nem pejo. Simplesmente abriu a mandíbula o mais que pode, abocanhou aquele escroto imenso com denodo e desferiu uma VIOLENTA DENTADA nos testículos do dromedário, que, compreensivelmente, ganiu e urrou e levantou-se para escapar da dor excruciante.

Apesar de tão traiçoeiro ataque, o dromedário passa bem. A mulher, ao contrário, foi internada em um hospital próximo, porque a sentada do bicho a molestou. O casal foi processado por invadir a jaula de Casper e por passear com o cachorro sem coleira. E nós, que ensinamento tiramos dessa inusitada história? Que o inimigo pode nos imobilizar quase que completamente, que ele pode ser maior, mais pesado e mais forte, mas sempre terá um ponto fraco a ser explorado, se nós tivermos tirocínio e bons dentes.

DAVID COIMBRA