sábado, 30 de janeiro de 2016



31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
MARTHA MEDEIROS
24 horas sem carro


Deixei meu carro na oficina. Na manhã seguinte, um amigo inglês, David, chegou à cidade e me convidou para almoçar. Normalmente, eu o buscaria no hotel de carro, onde ele já estaria me aguardando em frente ao prédio, mas não foi assim dessa vez. Fui até o seu hotel de táxi. Desci. Entrei na recepção. E reparei que o tradicional balcão do check in mais parecia o de um boteco. O lobby era decorado com peças garimpadas em antiquários, privilegiando o design dos anos 50, mas com resultado bem contemporâneo. Mais cara de hostal do que de hotel de rede.

Desconhecia a existência desse lugar bacana.

David aparece. Onde ir? Sugeri almoçar no Multipalco, assim ele conheceria o Theatro São Pedro. Propus irmos a pé. O homem fuma e seu outro vício é o sol – um londrino, lembra? Fazia 31 graus e o céu estava limpo como minha consciência. Bora! E então caminhamos por ruas onde só costumo passar de carro sem prestar atenção em nada. Porém, naquele instante, eu estava dentro da cidade, pertencendo a ela. Como quando viajo.

Cruzamos por pessoas mateando (dei as explicações de praxe), comentamos sobre a beleza do viaduto da Borges e seu abandono, e chamou a atenção dele a quantidade de pequenas livrarias pelas quais passamos – jura? Nunca tinha reparado. Aproveitei para me gabar dos nossos índices de leitura se comparados com os do resto do país. Exagerei só um pouquinho – juro.

Então cortamos caminho por dentro da Praça da Matriz com seus residentes sem-teto (quando havia feito isso? Acho que nunca) e antes de nos acomodarmos numa mesa do restaurante, David invadiu a concha acústica da área e declamou alguns versos de Shakespeare – um pequeno luxo de uma terça-feira qualquer. Depois de almoçarmos, procurei o querido João Antonio, braço direito da dona Eva Sopher, e ele nos abriu as portas do templo da cultura gaúcha, onde dei a sorte de ver a Marcia do Canto em pleno ensaio final do espetáculo que homenageou o Nico. Abraços, beijos, risadas.

Dali, voltamos para o hotel percorrendo outras ruas. Paramos numa farmácia e encontrei Adriana, que foi professora da minha filha no maternal, vinte anos atrás. Hoje ela trabalha com literatura na cidade do Porto, onde mora, e combinamos de armar um projeto juntas – de repente umas leituras dos meus textos por lá, em terra lusa. Mais um pouco, em frente ao Beneficência Portuguesa, cruzo com o Matico, um amigo perdido no túnel do tempo – ambos nascemos ali, naquele hospital em cuja calçada nos reencontramos. Abraços, beijos, risadas.

Fim dos nossos serviços. Me despedi do David e, embalada, continuei caminhando, caminhando, caminhando, até chegar à minha casa.

Ligaram da oficina avisando que meu carro está pronto e estou sem nenhuma vontade de ir buscá-lo.



31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Romance nas ruas


Desde muito tempo eu gosto de ler romances e contos sobre Porto Alegre. Podem ser mesmo ruins, que eu gosto igual. Tem alguma coisa de curiosidade histórica, mas com um viés pessoal. Minha finada avó materna, a vó Ziloca (Ladeira de Moraes em solteira, Loch depois de casada), era porto-alegrense, nascida em 1904, e por certo me influenciou nisso. Ela era uma boa leitora, mas não foi por isso: foi por comentários eventuais que fazia, sobre cenas da infância dela, por exemplo a casa do avô dela no Menino Deus da virada do século 19 para o 20.

Uma vez, nós creio que ali na Praça XV, talvez esperando um bonde, ela me apontou uma esquina e disse que, na revolução de 23 – eu posso estar agora misturando datas, mas acho que era – ela tinha trabalhado uns dias como voluntária numa enfermaria que ficava ali mesmo, e ela apontou. E eu vibrei.

Não é que adiante muito conhecer essas firulas do passado, mas sei lá, me dá um grande gosto saber essas coisas, de cotidianos extraviados, jeitos fenecidos de viver a cidade.

Esse gosto cresceu muito quando eu convivi com o também finado Aníbal Damasceno Ferreira. Grande conhecedor de firulas singulares, o Aníbal, por nada, me perguntava: “Mas tu não leu o Estricnina? Bá, tem que ler!”. E lá ia eu atrás do tal livro, publicado pela primeira vez em 1897 e republicado cem anos depois (já por minha iniciativa). Outro que ele me fez ler foi o raro As Loucuras do Doutor Mingote, do Martim Gomes, de 1932, se não me engano. E assim outros.

Uma vez dei de cara com o Estrada Perdida, do Telmo Vergara, romance também dos anos 30. Talvez tenha sido o Fábio Steyer quem me falou do livro, sobre o qual ele escreveu um belíssimo estudo, em seu doutorado. Até agora não me conformo de livros como esses não terem edição corrente.

(Ei, se tiver algum leitor com vontade de botar dinheiro a fundo perdido num projeto inteligente, que vai fazer muito bem para a saúde espiritual da cidade, por favor me procure que eu tenho uma ótima sugestão.)

Toda essa evocação meio nostálgica me veio agora a propósito de falar de um livro recentíssimo, saído ano passado, ganhador de importante prêmio nacional – o Jabuti. Se chama Quarenta Dias, saiu pela Alfaguara; a autora é Maria Valéria Rezende. E é freira. Sim, freira. Estranheza pouca é bobagem?

Pois olha só o enredo básico: no presente da narradora, ela está escrevendo as lembranças de um período algo alucinatório, vivido no passado não muito distante. O que aconteceu: ela, a professora aposentada Alice, moradora de João Pessoa, na distante (para nós) Paraíba, se muda para Porto Alegre. Motivo: sua filha única casou com um gaúcho, e os dois trabalham na universidade; e a filha vai ter filho, motivo para convocar a mãe-quase-vó a se mudar para cá, para ajudar com o nenê.

Alice não quer, mas acaba vindo. Não gosta do frio, sente falta do vento e do mar. É posta num apartamento que odeia instantânea e profundamente, por motivos que eu não posso contar aqui, para não cortar o barato do leitor que vem vindo. Mas esse desconforto não é tudo, aliás é quase nada diante da outra novidade: longe de sua cidade amada, longe dos amigos e da rotina adorável que lá mantinha, ela pelo menos tinha a esperança de viver o neto que viria. Só que não: intempestivamente, a filha avisa que rolou uma bolsa para a Europa, e ela e o marido não podem perder. A mãe podia ficar por ali esperando, certo?

Alice fica em Porto Alegre, mas a um preço que só lendo pra avaliar. Sem entrar em detalhes demasiados, ela passa a viver... na rua, sim, na rua porto-alegrense, por 40 longos dias. Uma loucura, de acordo, mas foi assim.

E o mais impressionante é que esse relato da rua real da nossa cidade foi todo colhido ao vivo, pela autora, que se fez passar por alguém nessa condição, para poder ter elementos autênticos, fortes, na composição do relato.

O resultado é bastante bom, embora narrativamente não seja excelente, porque a trama perde força lá pelas tantas e o livro tem alguma velocidade só pela inércia. De todo modo, é uma leitura que merece o empenho, para gente que gosta da cidade e, não menos, para ter uma notícia viva de lugares inesperados em Porto Alegre, como o Campo da Tuca, a Maria Degolada, a Rodoviária, marcos do mapa que em geral permanecem muito longe das páginas impressas.

*Luís Augusto FIscher é Professor de Literatura na UFRGS e escritor, autor de inteligência com dor (2009). Escreve quinzenalmente.


31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
CARPINEJAR

Roubava a própria casa

Na infância, não sei bem o motivo, mas não tinha direito à cópia da chave de casa. Vinha do colégio desfalcado de medos.

Só os adultos recebiam a honra do molho com chaveiro. Era outro tempo: menos assalto, menos violência, sem cercas eletrônicas, mais crianças brincando na rua. A mãe ou o pai ou um dos três irmãos sempre estava na residência para abrir a porta. Não me preocupava com segurança.

Mas enfrentava momentos de azar quando não havia ninguém, tarde de passeio no supermercado e de reivindicação das preferências de cada um no rancho. Ansioso e hiperativo, não esperava obediente no banco de madeira. Fui um ladrão do próprio lar. O meu tipo físico ajudava: magrinho, ágil, de pernas longas.

Conhecia quais as janelas que poderiam estar destrancadas e forçava as venezianas, experiente dos pontos fracos e dos hábitos dos moradores. Não me encabulava de saltar o portão do pátio. Escalava as paredes para me esgueirar em uma fresta e pular para dentro da sala. Com arame de um cabide quebrado, puxava a chave reserva do gancho da parede. A minha maior façanha foi um dia em que subi o telhado, apoiando-me no muro, e desci pelo alçapão do banheiro. Eu me sentia um herói da ilegalidade. Festejava as minhas transgressões.

Dessa experiência, desenvolvi o meu olhar de fora, estrangeiro, sobre a rotina. Enxergava a minha casa como se não fosse minha, para aprender a entrar sem a chave. A brincadeira me preparou a manter um distanciamento dos laços de sangue, com facilidade para inventar e me transformar em personagem. Admirava observar os pais e irmãos pelas vidraças da rua, com o talento de um fantasma. A minha alegria era não existir, era me ausentar por completo, era ser um anônimo observando aquelas pessoas pela primeira vez.

Acabei sendo o único que não seguiu Direito. Numa família de defensores, promotores e juízes, escolhi ser um marginal da palavra. O escritor é aquele que nunca se vê inteiramente adaptado e sempre assalta a intimidade e o passado dos próximos. Tenho pena de meus irmãos, até hoje roubo as memórias deles e jamais devolvo. Nunca teve graça apertar a campainha e avisar da minha chegada.

*O colunista entra em férias nesta semana e retorna em março.



31 de janeiro de 2016 | N° 18431
ARTIGOS -DIANA LICHTENSTEIN CORSO*

DESENHOS NA PAREDE


Ele seria um subversivo político somente na dimensão em que a liberdade de expressão fosse perigosa. Esse era o caso. Trata-se de um conto de Julio Cortázar que transcorre na Buenos Aires dos anos de chumbo, quando se desaparecia pela mínima discordância com aquela gente que a ditadura pôs no mando. O personagem fazia desenhos com giz de cera nas paredes. Eram imagens artísticas, por vezes até abstratas, mas diligentemente apagadas a mando da polícia. Arriscava-se muito, era uma espécie de paixão que lhe movia a vida: fazê-los e depois visitá-los furtivamente para acompanhar o efeito que causavam nos transeuntes. Vê-los sendo apagados e insistir. Uma única vez pusera palavras: “Me dói muito”. Este foi removido com maior urgência.

Um dia, ao lado do seu, surgiu outro desenho. O traço era feminino, ele supôs. Por algum tempo comunicaram-se assim. Em geral, era ele que começava, ela respondia, uma dança na parede. Ele dedicava agora suas andanças furtivas a tentar surpreendê-la, sempre fracassando. Até o dia em que, obcecado por conhecê-la, expôs um de seus desenhos em um lugar mais visível e arriscado, onde podia ficar observando mais tempo à sua espera. Ela não pôde resistir ao desafio e foi pega. Ele não conseguiu ver mais do que um cabelo e uma silhueta azul sendo colocada na viatura.

Uma triste história de amor desencontrado, mas linda e colorida. Retrata a obsessão dos regimes repressivos com o apagamento da poesia, da arte, da parte mais pulsante da vida nas ruas. A escuridão política começa com o enrijecimento das almas. A ascensão das piores ditaduras nasceu de disputas políticas, de crises econômicas, mas atendia ao impulso popular de simplificar a vida. É uma tentação eleger inimigos fáceis e sentir a satisfação de eliminar todos aqueles que forem apontados como discordantes. O obscurantismo nasce também da preguiça do pensamento.

Após todos estes anos de democracia, mesmo a nossa, com inúmeros defeitos e trejeitos inaceitáveis, voltei a temer novamente pela poesia dos desenhos na parede. Não tenho tanto medo dos militares, nem dos políticos corruptos, quanto tenho da população simploriamente indignada e daqueles que manipulam esses sentimentos. Assusta-me a vontade que parece falar nas ruas de eleger alguém, aquele que estiver mais à mão, para odiar. Já vimos esse filme, quantas vezes? Quantas ainda o teremos de ver?

O conto Graffiti é uma história de amor das antigas, daquelas em que os amantes nunca se tocam. Eles apenas se rondam, desenham e se excitam com o mistério. O perigo que nos ronda agora, que parece estar excitando a tantos, é de colocar no poder os que apagam a poesia das paredes, do mundo, do amor. Me doeria muito.

*Psicanalista 


31 de janeiro de 2016 | N° 18431 
MOISÉS MENDES

O humor acovardado


Os humoristas brasileiros enfrentam uma crise constrangedora. Não os humoristas de jornal e revista, que se dedicam ao humor gráfico da charge e do cartum, mas os de TV, rádio e internet. Crises política e econômica, que mobilizam humoristas na Grécia e no Azerbaijão, não existem para o humor da TV brasileira.

Está cada vez mais evidente que o humor político da TV foi sepultado junto com o fim dos trocadilhos do Casseta & Planeta, há cinco anos. O humor que sobrevive nesse meio é diversionista. Ainda faz piada com suburbanos, desdentados e analfabetos.

Na internet, a turma do Porta dos Fundos produz humor dito de costumes (que se repete num filme com estreia prevista para junho), num momento em que o mundo desaba sobre as cabeças de Dilma, Lula, Marisa e Eduardo Cunha e nunca desabará sobre as cabeças de Aécio e de nenhum tucano.

Daqui a alguns anos, quando fizerem a arqueologia da primeira grande crise brasileira do século 21, não encontrarão nenhum quadro da TV, nenhum personagem, nada sobre a tentativa de golpe. Não acharão nenhum humorista imitando Eduardo Cunha caminhando pelo Salão Verde da Câmara em direção aos repórteres.

Não haverá um registro, um sequer, de alguém que tenha caricaturado Bolsonaro ou Zé Agripino na TV. E que personagens são o Bolsonaro e o Zé Agripino. Desde Itamar o Brasil não tinha personagens que já nascem como caricaturas.

E o que faz o humor? No máximo, se esbalda na Dilma gerentona e em seus discursos. A maioria se protege na irrelevância, para não correr riscos. A geração Porta dos Fundos e seus imitadores no YouTube fazem uma piada por semana sobre a Bíblia e os profetas. Abraão e Isaías nunca irão incomodá-los.

Repetem-se piadas sobre festas de amigo secreto, chefe chato e o descobrimento do Brasil. Mas poupam os políticos. E todo mundo ri. O humor da TV e da internet passa ao largo dos golpistas e das figuras fantásticas da direita que nunca sofreram escracho.

Há humor político na TV da Ucrânia, mas não na TV brasileira. As mulheres do humor russo arriscam o pescoço debochando de Putin. Os machos do humor brasileiro nos pedem para rir de quadros sobre papagaios, garçons e travestis. O Brasil pode acabar na semana que vem, e a TV e os sites de humor tiram sarro dos surdos.

Imagine que um dia desses, ao acordar, você descobre que o Eduardo Cunha é o novo presidente do Brasil. Enquanto isso, o humor da TV ainda se diverte com piadas sobre guerras de casais, inspirado em Adão e Eva.

Um país em crise, que não ri das suas desgraças, como nos ensina o psicanalista Abrão Slavutzky, em Humor é Coisa Séria (Arquipélago Editorial), está condenado a sofrer ainda mais. Nem no tempo da ditadura o humor político se encolheu como agora. O que aconteceu lá atrás foi o contrário – a resistência ao regime se deu também pela força do humor. E, às vésperas da redemocratização, até as piadas com militares contribuíram para a distensão.

Pobre humor nacional do século 21. Salvam-se os nossos cartunistas. Os outros, em maioria, acovardaram-se. Deveriam ter visto uma charge dos anos 40, de um cartunista francês, sobre o avanço do nazismo na II Guerra. Um personagem reúne os amigos e recomenda: se os nazistas nos matarem, vamos tentar enganá-los fingindo que continuamos vivos.

O humor de TV, alienado, alheio a tudo, como se nada do que acontece a sua volta fosse com ele, ainda tenta fingir, mas está politicamente morto.



31 de janeiro de 2016 | N° 18431
L. F. VERISSIMO

O futuro que não veio


Se todas as previsões feitas no passado sobre como seria a vida hoje dessem certo, cada um de nós teria um helicóptero – ou coisa parecida – na garagem, e para viagens mais longas só usaríamos aviões supersônicos. Os Volkswagens voadores não vieram, para não falar nas megalópoles superorganizadas com calçadas rolantes num mundo em paz permanente e sem pragas, mas o Concorde parecia ser um sinal de que pelo menos parte da visão se cumpriria, mesmo com atraso. Era um protótipo que, com o tempo, se aperfeiçoaria e se democratizaria. Seus defeitos eram desculpáveis, tratando-se de um protótipo. Fora as críticas irrelevantes (sim, querida, o caviar é Beluga, mas com a granulação errada), o pior que se dizia de uma viagem no estreito 

Concorde, com suas poltronas apertadas, era parecido com o que aquele inglês disse do ato sexual: o prazer é fugaz e a posição é ridícula. Tudo isso seria corrigido com o tempo, inclusive o seu maior defeito, o preço das passagens, só acessível a quem distingue o grão do caviar. Mas o Concorde acabou antes de poder ficar viável. E o que se chora não é o fim de uma máquina muito cara e talvez desnecessária, mas de um sonho: o que a vida poderia ser, se todas as possibilidades abertas pela ciência e a tecnologia depois da I Guerra Mundial tivessem dado em outro mundo.

As idílicas previsões dos anos 20 e 30 pressupunham um progresso da natureza humana comparável ao da sua técnica. Não aconteceu. No fim, o que a gente mais sente falta, do passado, é do futuro que ele previa. O Concorde podia ser só uma extravagância feita para você poder almoçar em Paris e almoçar de novo em Nova York. Acabou como símbolo do fim prematuro de um século que só ficou na imaginação.

Mas, enfim, o futuro previsto no passado não incluía uma palavra, uma pista, uma sugestão que fosse (fora, talvez, o rádio de pulso do Dick Tracy) da grande revolução que viria e ninguém sabia, a da informática. Quer dizer, já era um futuro obsoleto.

E, pensando bem, a substituição da máquina de escrever pelo computador não afetou muito o que se escreve. Quer dizer, existe toda uma geração de escritores que nunca viram um tabulador (que, confesso, eu nunca soube bem para o que servia) e uma literatura pontocom que já tem até os seus mitos, mas mesmo num processador de texto de último tipo ainda é a mesma velha história, a mesma luta por amor e glória botando uma palavra depois da outra com um mínimo de coerência. Como no tempo da velha pena de ganso.

RUTH DE AQUINO
29/01/2016 - 21h54 - Atualizado 29/01/2016 21h54

A zica do Planalto

Cada fala de Dilma sobre a zika vira uma festa para humoristas e um constrangimento para a população

Zica com “c” é uma gíria brasileira que significa mau agouro, azar, maldição, momento de baixo-astral, quando tudo dá errado. A origem da palavra não se sabe ao certo, mas há quem jure que seria uma contração da palavra ziquizira. Faz sentido. Não tem nada a ver com a zika, triste doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti. Triste porque infecta o cérebro de bebês no útero materno, triste porque atesta nossa incompetência de país subdesenvolvido diante do mosquito que também transmite a dengue, triste porque pode atingir 1,5 milhão de pessoas no Brasil neste ano, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Cada fala da presidente Dilma Rousseff sobre a zika vira uma festa para humoristas e um constrangimento para a maioria da população – não, claro, para os militantes dilmistas, que a perdoam sempre e atribuem esses lapsos à pressão da dieta argentina ou da “inquisição medieval” contra ela e contra Lula. Dilma já chamou o mosquito de vírus. Dilma já chamou a zika de vetor. Dilma já disse que a doença é transmitida por ovos infectados por vírus. Dilma já inventou um outro inseto que seria especializado em zika, e que não seria o mesmo da dengue. 

Dilma também disse que “o Brasil não parou e nem vai parar” – e não vai mesmo parar de piorar enquanto ela achar que o inferno são os outros. A microcefalia do Planalto não permite que criatura e criador caiam na real. Dilma e Lula estão juntos na saúde e na doença, na alegria e na tristeza. Juntos no idioma maltratado. Juntos na solidariedade a Zé Dirceu, o consultor-modelo que mais voou em jatinhos de empreiteiros e lobistas, abastecidos por propinas. Juntos no discurso de perseguição da “mídia”, da Lava Jato e dos delatores premiados.

Pode continuar a trocar o ministro da Saúde, o ministro da Fazenda, o ministro do Planejamento, o ministro da Educação (aliás, por onde anda Aloizio Mercadante, qual será seu bloco escolar este ano?). De nada vai adiantar essa dança das cadeiras ministeriais para agradar a um ou outro partido. Não são eles os mosquitos vetores que contaminaram o Brasil com uma ziquizira da qual será muito difícil sair. O da Saúde, Marcelo Castro, formado em psiquiatria, depois de espalhar piadinhas de mau gosto com mulheres grávidas, cometeu o pecado fatal: foi sincero. Marcelo Castro disse que o Brasil “está perdendo feio” a guerra contra o mosquito – e isso é o fim da picada, não é, presidente?

Dilma não convive com a sinceridade. Seu governo não erra. Aliás, “se erra”, como admitiu há alguns meses, erra pouco e sem maldade – e tudo tem conserto. Erra porque foi vítima. Suas amigas, do gênero Erenice Guerra, também sempre acertam. Se erram, é por ingenuidade ou por falta de memória. A ex-ministra Erenice é ingênua, dá para sentir. E nem lembra quem pagou viagens aéreas dela. Dilma também já se esqueceu de muitas canetadas nessa roda-viva de Petrobras, Casa Civil, Presidência da República. Seu problema não foi o mosquito, mas a mosca azul.

Para a mosca azul não há antídoto nem vacina. A mosca, num passe de mágica, tira as contas do vermelho num gráfico ilusório, com a sua, a nossa ajuda. Uns bilhões do FGTS aqui, outros da CPMF ali, e pronto. O país fica cor-de-rosa, a cor dos programas eleitorais do PT. Só que não, a conta não fecha mesmo assim, porque o Estado brasileiro é voraz e gigantesco. Não há foco na redução do tamanho. Só no aumento de taxas, impostos e contas de serviços públicos. A dívida pública federal terminou 2015 em R$ 2,793 trilhões. A dívida – assim como o Brasil – não vai parar.

Diante do Conselhão de quase uma centena de empresários, empreendedores, banqueiros e autoridades – sem a presença incômoda da imprensa –, Dilma lançou um plano de sete medidas para liberar R$ 83 bilhões em crédito para habitação, agricultura, infraestrutura, pequenas e médias empresas. A maior parte desse dinheiro viria do FGTS. Crédito para um país em recessão, que não acredita na capacidade do governo para enfrentar a crise. Dilma disse que, para “a travessia a um porto seguro”, a CPMF é “a melhor solução disponível”.

Não existe nem espaço para o crédito moral, quando se vê Lula, o fiador de Dilma, acuado por delações que o envolvem em reformas milionárias e obscuras de imóveis como o tríplex do Guarujá ou o sítio de Atibaia – hoje amaldiçoados. Na vida real, os juros batem recorde e famílias endividadas precisam refinanciar seus débitos porque não podem lançar mão do dinheiro alheio. O Solaris não nasce para todos. A zica que contaminou o país tem origem na Capital.


30 de janeiro de 2016 | N° 18430
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A RODA QUE GIRA


VIVEMOS SOB O TACÃO DO PASSADO COM RARAS CHANCES DE SERMOS DE FATO CRIATIVOS

É difícil entender o que leva alguns a considerar que nossa vida deva ser sempre um modelo interessante e original, quando, na verdade, vivemos sob o tacão do passado com raras oportunidades de sermos de fato criativos. E, para quem valoriza sossego, é melhor que seja assim, pois qualquer sinalização de novidade já provoca uma compreensível reação, às vezes francamente destemperada, dos que seguem a cartilha relaxante da mediocridade e não toleram comparações pretensamente humilhantes.

Então, se assumimos que somos meros copiadores dos modelos disponíveis, sem arroubos de genialidade desgastante, é importante que atentemos para os exemplos que passamos aos nossos filhos que, por afeto, proximidade e descendência, são os nossos plagiadores naturais e instintivos.

Pode ser que o modelo de afeto que dispensas aos teus pais não seja suficiente para sensibilizar teus filhos nos cuidados desvelados dos avós, mas não tenha dúvida de que esse modelo será ressuscitado no futuro quando tocar a eles decidirem que apreço merecerás na velhice. E não há nada de espetacular neste comportamento. É só a roda da vida que também não se preocupa em ser original.

Fiquei com pena quando visitei a dona Carolina, com 82 anos, boa saúde, alojada num cubículo improvisado numa extensão da garagem, com um ventilador pequeno e insuficiente no canto da parede, uma TV de tubo com imagem e chuvisco, e uma amostra escassa de céu espremida entre muro alto e um varal de roupas ao vento. Na estante, uma Bíblia de capa de couro marrom, Contos Fluminenses, de Machado de Assis, um livro de palavras cruzadas sem capa e uma cestinha com incontáveis prendedores de cabelo. 

De plástico barato. A nora que pedira a consulta, advertira que a dita alegava uma dor no tórax, mas que não levava muita fé nessa queixa porque ela tinha um raio-x de tórax do ano anterior que fora normal e, além disso, já não andava mais dizendo coisa com coisa. “De qualquer maneira, é melhor ter certeza que não tenha nada grave, ainda que estejamos preparados. Porque, nesta idade... o que esperar? É a roda da vida e ninguém vive para sempre, não é, doutor?”. Pois é.

O exame físico era normal e ela nem lembrava de queixa nenhuma, mas queria mesmo era conversar, e como conversamos. Com uma memória prodigiosa e um senso de humor apurado, foi uma das entrevistas para não esquecer. Com espírito leve e debochado, não guardava nenhuma mágoa e só lamentava que todas as suas amigas preferidas já tivessem morrido e da pouca paciência que tinha de conquistar novas entre essas velhas estranhas que gostavam de Big Brother. Se pudesse fazer um pedido, seria o de trocar a TV velha sem imagem por um rádio. Se era para curtir só o som, que fosse sem o maldito chiado. Mas se prometera que esta seria uma negociação para o próximo Natal. Se houvesse.

Quando saí, a nora mais velha quis saber o que achara da velha insuportável e ficou visivelmente chateada quando confessei que me apaixonara pela vózinha doce e bem-humorada.

E descarregou a irritação no filhote de uns 12 anos que brincava na terra, no jardim: “Carlos Eduardo, já para dentro! Não espere eu te pegar pelas orelhas, entendido?”.

“Não enche, tá?” foi a resposta. Bati o portão convencido de que aquela roda estava começando a girar. À distância, até fiquei com a impressão que ouvira um rangido.



30 de janeiro de 2016 | N° 18430 
NÍLSON SOUZA

O FEITIÇO DO TEMPO


– Siga comigo o caminho das nuvens – convida a moça do tempo, mostrando um mapa multicolorido do Brasil com desenhos de sóis e chuviscos espalhados por todas as regiões.

O apelo é irresistível. A previsão meteorológica virou uma atração mundial da televisão desde que os programadores se deram conta do interesse das pessoas pelas variações climáticas. Todos duvidam, todos desconfiam, todos ridicularizam os previsores, mas não há quem não preste atenção.

Por quê? Minha tese: acompanhar o vaticínio é uma maneira de darmos uma espiadinha no futuro. Mais do que isso, quando conferimos se o dia de amanhã será ensolarado ou nublado, estamos antevendo um cenário do qual seremos protagonistas. Não se trata simplesmente de programar a roupa que iremos vestir no dia seguinte ou se teremos de carregar guarda-chuva. Trata-se, isto sim, de apostar que estaremos presentes no futuro para conferir o prognóstico.

E para criticar. Os meteorologistas mais prudentes não se cansam de avisar que é previsão – e não precisão –, mas ninguém perdoa quando eles erram. O percentual de acertos atualmente chega a 90%, mas os 10% de equívocos costumam ser superdimensionados pelos profetas do acontecido, que somos nós. Ainda que o clima planetário seja reconhecidamente caótico, a culpa é sempre do previsor, nunca da própria natureza.

Mesmo assim, esses arautos das intempéries conquistam prestígio e admiração. Alguns se transformam em verdadeiras celebridades. E as emissoras de televisão investem no quadro, criando cenários cinematográficos e apostando em personalidades diferenciadas. Como essa moça bonita e simpática, que me convida a seguir com ela pelo caminho das nuvens.

Sigo, com o espírito crítico aguçado, pensando que no dia seguinte terei a oportunidade de cobrar-lhe coerência. Doce ilusão. Amanhã, como uma Sherazade moderna, ela contará outra fábula do tempo e todos acreditaremos, encantados pela profecia sobre desconhecido.



30 de janeiro de 2016 | N° 18430 
DAVID COIMBRA

O que é melhor: macarrão ou Monalisa?

Todo mundo gosta de pizza. Não por acaso. Pizza é uma imbatível reunião de valores. É como ter Pelé e Garrincha no mesmo time. Você sabia que a Seleção, com Pelé e Garrincha juntos, jamais perdeu? E não foram poucos jogos: foram 50, incluindo os de três Copas do Mundo.

Pois a pizza não tem dois, e sim três talentos insuperáveis: a massa, que lhe dá a forma e a consistência; o queijo derretido, que lhe dá o charme e a sedução; e o molho de tomate, que lhe dá o sabor e a suavidade. Pão, queijo e tomate. Estão para o paladar como os Beatles estão para o ouvido.

O tomate. Um dia ainda escreverei alentado tratado sobre o tomate. Não é por acaso que os italianos chamam-no de “pomo d’oro”. Fruta de ouro. Sim, porque o tomate é de fato uma fruta. Vi, com meus próprios olhos esverdeados, sul-coreanos comendo tomates às dentadas, como se fossem maçãs. Na Coreia do Sul, ninguém faz salada de tomates. 

Um dia, o Pedro Ernesto Denardin ensinou a dona de um restaurantezinho onde almoçávamos, em Ulsan, a fazer salada no estilo brasileiro, com cebola, tomate e alface. Ela fazia e chamava os amigos para nos verem comendo. Era muito estranho aquilo de comer tomate em rodelas, temperado com azeite, sal e vinagre. Os coreanos olhavam e faziam: óóóó.

Mas é claro que o ápice da carreira do tomate foi alcançado pela arte suprema dos italianos quando eles inventaram o... molho de tomate! Oh, que culminância da Civilização, a criação do molho de tomate! Quanto da nossa humanidade devemos aos italianos. Pense: Michelângelo pintou o teto da Capela Sistina e tirou do mármore de Carrara o David, o Moisés e a Pietà; Leonardo nos deu o sorriso da Monalisa; Dante, a visão do inferno; a Júlio César devemos o calendário e o simpático mês de julho; a Augusto, o de agosto; e a Terra, no entanto, se move graças a Galileu Galilei; mas qual é o nome do italiano que concebeu o molho de tomate?

DIGA!

Se não disser, reflita: o que faz de você mais feliz: contemplar o enigma do sorriso da Monalisa ou almoçar um generoso prato de fetuccine coberto por denso, vermelho, quente, oloroso e saboroso molho de tomate, encimado por miríades de minúsculas lascas de queijo parmesão?

É óbvio que você preferirá o macarrão, sobretudo se vier acompanhado de um bom tinto.

Pois então: agora vá ao Google e descubra o nome do italiano que inventou o molho de tomate. O Google, que tudo sabe, não sabe. Ninguém sabe. E ele, esse italiano, provavelmente um napolitano, ele era um gênio.

Renderei, agora, preito ao italiano que, entre os séculos 17 e 19, teve a ideia de fazer do tomate a base do seu molho de pizza ou macarrão. Em sua homenagem, reservarei uma linha inteira para glorificá-lo. Aí vai:

GLÓRIA AO ITALIANO ANÔNIMO DO TOMATE! GLÓRIA AO ITALIANO ANÔNIMO DO TOMATE! GLÓRIA AO ITALIANO ANÔNIMO DO TOMATE!

Feito esse necessário reparo, lembro agora que o molho “Pomodoro” vem, exatamente, de pomo d’oro, que, já ressaltei, é como os italianos chamam o tomate.

Mas me alonguei e não cheguei aonde queria. Sabe de quem queria falar? Do Bolsonaro. Deixarei para a próxima coluna. Aguarde!



30 de janeiro de 2016 | N° 18430 
CLAUDIO MORENO

Triplex

O apartamento de três andares comprado por Lula também gerou uma polêmica ortográfica

Um dos itens que mais agitaram o mundo político brasileiro, nesta semana, foi uma questão de prosódia: qual é a forma correta de pronunciar o nome do apartamento de três andares que o ex-presidente Lula adquiriu em Guarujá? Qual é a sílaba tônica, afinal? É um tríplex ou um triplex? Rima com sílex ou com unissex?

É sempre mais complicado definir a pronúncia correta de uma palavra. Temos muito mais segurança quando se trata da escrita porque existe, no Brasil, uma lei que (mal ou bem) ajuda a fixar uma grafia uniforme: afinal, sempre podemos consultar o vocabulário ortográfico, que traz as recomendações da Academia. No que se refere à pronúncia, contudo, temos de nos contentar com o exemplo das pessoas cultas e com a opinião dos gramáticos e dos dicionaristas (não esqueça, prezado leitor, que a pronúncia que um dicionário indica representa apenas a opinião de seu autor; é uma opinião especializada, mas é uma opinião).

Um especialista em Fonologia, contudo, pode ir além da simples opinião; estudando nosso léxico, pode identificar certos padrões bem definidos na organização dos sons que compõem as palavras e na distribuição da sua sílaba tônica. No caso dos vocábulos terminados em X, houve uma nítida mudança de tendência na segunda metade do séc. 20. As palavras formadas até essa data eram paroxítonas, isto é, com a tônica na penúltima: látex, índex, tórax, pólex (o polegar), cóccix, ônix, clímax, hálux (o dedo grande do pé).

A partir do final da 2ª Grande Guerra, porém, o paradigma começou a trocar: todos os novos vocábulos com esta terminação passaram a ter a sílaba final tônica – durex, inox, pirex, gumex, telex, jontex, relax, prafrentex, redox, Sedex, Mentex, Jontex, Giroflex. Não importa que muitas ainda sejam, ou tenham sido, nomes comerciais: os falantes dão-lhes instintivamente o padrão que a língua está usando neste momento para palavras com este perfil.

Essa mudança de modelo ocorrida nos anos 50 é que vai explicar a hesitação atual quanto à pronúncia (e, consequentemente, quanto à grafia) de dúplex, o avô de nossas coberturas, e de tríplex, um imperial apartamento de três andares ligados por escada interna (no caso do ex-presidente, por um elevador particular). Ora, dúplex é uma palavra muito antiga, usada como sinônimo de dúplice (“convento dúplex – convento para frades e freiras”, ensina Antenor Nascentes), portadora daquela nítida aura de palavra erudita e alatinada. Ao ser adotada pelo léxico do comércio de imóveis, todavia, a palavra ingressou verdadeiramente na corrente sanguínea do Português e, seguindo a tendência que descrevemos, tomou a forma duplex. 

O dicionário Caldas Aulete (o que não é o seu feitio) enfia o pé na jaca e afirma, com aquela certeza dos ingênuos, que dúplex hoje “pronuncia-se erroneamente como oxítono”. O Aurélio, com honestidade, registra, no verbete dúplex: “Pronuncia-se correntemente como oxítono”; o Houaiss registra duplex como “forma não preferível e mais usada do que dúplex”… Nosso prezado leitor, portanto, poderá escolher o que lhe der na telha: ou usa as formas modernas duplex, triplex (como eu faço), ou, alinhando-se com os antigos, emprega dúplex, tríplex.



30 de janeiro de 2016 | N° 18430 
CLÁUDIA LAITANO

Noblesse oblige

Na ilustração da capa desta semana da revista The New Yorker, ex-presidentes americanos célebres (Abraham Lincoln, John F. Kennedy, Theodore Roosevelt, Franklin D. Roosevelt e George Washington) assistem, entre incrédulos e ultrajados, ao discurso de um dos mais novos postulantes ao cargo que eles ocuparam. 

A mensagem é simples e direta, mas se fosse necessário traduzi-la para o universo mais palatável da gastronomia o sentido seria mais ou menos o seguinte: o candidato republicano Donald Trump está para Lincoln como o frango assado da mercearia da esquina está para o coq au vin do chef Paul Bocuse. A matéria-prima pode ser da mesma espécie, mas o preparo faz toda a diferença.

Nesta semana, quando o deputado Jair Bolsonaro expressou em Porto Alegre seu desejo de candidatar-se à Presidência, não pude deixar de imaginar uma versão local para a capa da New Yorker. 

Dada a escassez, na galeria de ex-presidentes do Brasil, de grandes vultos históricos 100% democratas (e já ungidos pelo respeito unânime da posteridade), a nossa versão da revista precisaria inverter os sinais, reunindo figuras como Costa e Silva, Médici, Sarney e Collor para, em comitiva, darem as boas-vindas a Bolsonaro como legítimo representante de sua linhagem no panteão da política brasileira do século 21. Seria engraçado – como escorregar na rua e bater a cabeça na calçada.

Ninguém ficará surpreso se as eleições de 2018 nos brindarem com um candidato de extrema-direita com uma base de apoiadores mais expressiva e barulhenta do que a de personagens folclóricos como Pastor Everaldo ou Levy Fidelix. A polarização, a crise econômica, a falta de autocrítica da esquerda e o pessimismo generalizado (ressaca do otimismo amplo, geral e irrestrito de cinco anos atrás) nos conduzem a isso. 

Gestada em um ambiente político bem mais estável do que o nosso, a candidatura de Donald Trump também é o resultado de uma clivagem interna nos EUA. De um lado, o século 21 e suas causas. Do outro, os nostálgicos da tradicional família branca, triunfante, heterossexual e armada dos anos 50.

Trump e Bolsonaro não representam apenas oposição política aos presidentes que pretendem substituir. Se fossem apenas adversários políticos de Obama e Dilma, respectivamente, talvez não fizessem tanto barulho. Para conquistarem corações e hipnotizarem mentes, os dois se esforçam para romper a fina camada de hipocrisia que faz com que alguns políticos disfarcem o próprio caráter. Além disso, prometem o impossível: a volta a um passado perdido de ordem, progresso e patriarcado.

Discursos homofóbicos, racistas, chauvinistas seduzem quem se sente inseguro – em casa, no emprego, no próprio corpo – ao mesmo tempo em que despertam a ira e o desprezo de quem está razoavelmente confortável no século 21. Mas é preciso ficar muito alerta para que essa ira e esse desprezo não se expressem na mesma linguagem raivosa e sem filtro que faz tanto sucesso entre os fãs de Bolsonaro e Trump. Sejamos como a capa da New Yorker desta semana: enfáticos, sem perder a elegância.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016


29 de janeiro de 2016 | N° 18429
ARTIGOS - ANA AMÉLIA LEMOS*

O RECORDE QUE NÃO NOS ORGULHA



Mais de 1,5 milhão de empregos com carteira assinada foram extintos no Brasil em 2015, no pior resultado anual dos últimos 24 anos. Esse recorde não nos orgulha. Somente em dezembro, 596,2 mil trabalhadores, a maioria chefes de família, ficaram sem salário, de acordo com o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). A cada trimestre, o número de desempregados cresce, atingindo 9,1 milhões de trabalhadores, segundo o IBGE.

As projeções para este ano recém iniciado também preocupam. Estudos da Organização Internacional do Trabalho estimam que 700 mil brasileiros perderão seus empregos ao longo de 2016. A cada três desempregados, no mundo, um será brasileiro. A OIT projeta uma triste estatística social: 2,3 milhões de desempregados no planeta.

A deterioração do mercado de trabalho é o mais perverso efeito da crise econômica que o país enfrenta, penalizando a parte mais fraca da cadeia produtiva: o assalariado, que precisa prover a si e a família frente às necessidades básicas. A informalidade tem sido a alternativa para muitos trabalhadores, ante a falta de perspectivas em conseguir, no curto prazo, outro emprego com carteira assinada. 

Sem acesso a benefícios, como seguro- saúde, vale-transporte e vale- alimentação, o desempregado acaba aumentando a demanda por esses serviços públicos. As empresas também são afetadas nesse processo porque, pressionadas pela recessão e queda na atividade, são forçadas à demissão de pessoal qualificado.

Empregos não são criados num estalar de dedos! Cabe ao governo, com urgência, adotar medidas para estimular o desenvolvimento e ativar o crescimento econômico, com novos empreendedores que possam garantir a oferta de emprego e renda para os trabalhadores e o resgate da dignidade daqueles que foram demitidos. 

É preciso recolocar o Brasil nos trilhos, sem partidarismos ou ideologias, com o esforço das lideranças das nossas instituições. O governo não pode ignorar a gravidade da situação. Está faltando coragem, credibilidade e competência para medidas ousadas que possam garantir fôlego à economia sucateada e sem perspectivas!

Senadora (PP-RS)*


29 de janeiro de 2016 | N° 18429 
DAVID COIMBRA

Quando surgem os grandes


Você conhece o episódio mezzo lendário mezzo verídico de Alexandre e o nó górdio? Ainda que conheça, contarei, porque os bidus do MEC estão tentando acabar com o ensino da História Antiga, então não custa repisar fatos que têm a ver conosco, antes que os esqueçamos.

A expressão “desatar um nó górdio” é usada quando você resolve, de forma prática e veloz, uma questão complicada. Você já sabia. O MEC, não.

Ocorre que, centenas de anos antes de Cristo, na Frígia, reino da Ásia Menor que não desperta o menor interesse nos sábios do MEC, ocorre que essa Frígia estava sem rei. Aflitos, os frígios foram consultar o Oráculo para saber quem seria seu próximo soberano. Esperavam, talvez, que seu novo governante fosse a vivalma mais honesta do país. O Oráculo respondeu que seria um homem que entraria na cidade num carro puxado por bois. Eis que, de uma hora para outra, uma carroça puxada por bois apareceu, e ela era conduzida por um sortudo chamado Górdias.

Esse Górdias virou rei e, em homenagem ao carro que lhe rendeu a coroa, amarrou-o no templo de Zeus com um nó tão benfeito, que era impossível de desamarrar. O reinado de Górdias foi bom, sem haver qualquer envolvimento escuso com empreiteiras. Seu filho e sucessor não era um político insignificante, sem experiência alguma, que falava disparates. Ele jamais faria, por exemplo, um discurso de ode a, sei lá, pense em algum absurdo, como uma planta tuberosa, digamos, a mandioca. Pois ele jamais faria isso. Ele não era outro senão o famoso Rei Midas, tão bem-sucedido, que originou a lenda de transformar em ouro tudo o que tocasse com sua mão santa.

Midas, porém, não teve filhos e, assim, os frígios ficaram de novo sem rei. Voltaram ao Oráculo, e a resposta foi que o conquistador de toda a Ásia Menor seria aquele que conseguisse desatar o nó de Górdias.

Muito tempo se passou, e ninguém conseguia desamarrar o tal nó. Um dia, Alexandre Magno, rei dos macedônios, que também não interessam ao MEC, resolveu enfrentar o desafio. Foi à Frígia, onde lhe apresentaram o nó górdio. Alexandre olhou de um lado, olhou de outro, olhou de cima, ponderou e, em um átimo, sacou da espada afiada e, com um único golpe, cortou o nó górdio ao meio.

Como todos sabem, menos o pessoal do MEC, Alexandre tornou-se rei de toda a Ásia Menor.

Uma decisão dessas, sábia e impetuosa ao mesmo tempo, só quem tem autoridade, ousadia e inteligência é capaz de tomar. Na solução dos grandes impasses é que nascem os grandes. Não é por acaso que ele era “Magno”. Isto é: Alexandre, o Grande.

Alexandre foi centroavante na vida. Admiro os centroavantes, homens que, em meio às explosões do front que é a grande área, cercados de inimigos ferozes, tendo apenas uma fração de segundo para tomar uma decisão, tomam-na, e a tomam corretamente. O centroavante é dotado de calma e agressividade ao mesmo tempo, o centroavante sabe o que faz e o faz no momento exato, nunca antes, nunca depois. Quem, na vida, é centroavante, é vencedor.

Digo tudo isso em homenagem a Romário, que hoje completa 50 anos. Vi Romário jogar dezenas de vezes, e cada vez foi uma lição. De paciência. De serenidade. E de ação fulminante no momento da definição. Romário. Rei dos centroavantes. Um homem que sabia o que fazer diante de qualquer nó górdio.



29 de janeiro de 2016 | N° 18429 
MOISÉS MENDES

O pôr do sol


Um programa de fim de semana dos paulistanos é ver o sol se pôr numa praça de Alto de Pinheiros, na zona oeste da capital. Li, em reportagem sobre o aniversário de São Paulo, que a Praça Coronel Custódio Fernandes é agora a Praça Pôr do Sol, por causa da beleza do que se vê.

E onde se põe o sol em São Paulo? O sol desaparece entre os edifícios. Os paulistanos correm aos domingos para a praça e se emocionam vendo o sol cair sobre os arranha-céus. Consolam-se com o que têm. Nem todos podem ver o sol se esparramar sobre as águas do Guaíba.

Tem gente que se contenta com qualquer coisa. Até com a queda do preço do petróleo. Até ontem, a grande confraternização da direita era sustentada pela tese de que o petróleo não vale mais nada. Mesmo sabendo que o fenômeno conspira até contra os investimentos em energias limpas, eles comemoram.

É a comemoração possível a quem se lambuza até com os discursos do Bolsonaro. O governo teria investido no pré-sal como a redenção nacional e agora não tem nada. Prometeu o que não existe. A direita festeja uma crueldade. Não haveria o dinheiro farto do pré-sal para a educação. Ontem, o preço do petróleo reagiu, o que frustra essa torcida. A perda de expressão econômica do pré-sal é o pôr do sol de muita gente. Como a direita ficou pueril.

Responda rápido: você acredita mesmo que o Mercado (sim, leitor, com maiúscula mesmo) está preocupado com você e com a inflação? O Mercado queria aumento dos juros e ficou beiçudo quando o Banco Central deixou tudo como está.

O Mercado é viciado em jurões, como aqueles de mais de 40% do tempo do governo tucano. Desde aquela época, o Mercado sempre quer tudo pra ele. Mas ainda há quem acredite que o Mercado é nosso aliado e está apreensivo com a carestia e os pobres e seus carnês do Split e das roupas das crianças.

Enquanto isso, saiu ontem que o lucro do Bradesco cresceu 13,9% no ano passado. Quanto cresceu o seu?

Lula deveria convocar a imprensa e anunciar que não concorre em 2018. Dilma estaria ao seu lado na coletiva para avisar que renuncia e entrega o governo ao Paulinho da Força (não é possível entregar ao Cunha ou ao Renan, que podem cair logo).

Paulinho assumiria a Presidência como força pacificadora e, numa imitação do que ocorreu em 1961, Zé Agripino seria aclamado primeiro-ministro. Ou isso ou a coisa não para mais. Entreguem logo o poder ao Paulinho da Força, antes que encontrem um quadríplex em Cidreira ou Marrakech.

29 de janeiro de 2016 | N° 18429 
MARCOS PIANGERS

Voto de riqueza


Meu carro favorito foi, com certeza, aquele Clio vermelho duas portas que comprei assim que minha primeira filha nasceu. Paguei em 48 vezes e lembro do dia em que atrasei uma prestação e ela quase dobrou de valor. Foi um dia triste. Mas o carro era maravilhoso, sem vidro elétrico, sem trava, sem alarme. Não tinha ar-condicionado e, no verão, eu dava graças a Deus porque a borracha da porta estava estragada e entrava um ventinho pela fresta. Um vento quente, mas era um vento.

Eu gostava do carro porque ele era confortável e a manutenção era quase desnecessária e porque foi o carro que comprei quando minha primeira filha nasceu, esse momento cheio de alegria e esperança. Comprei pra que ela tivesse mais conforto e segurança, percebam que meu carro anterior era muito pior. 

Com o tempo, ficou óbvio que meu conceito de conforto e segurança era equivocado, e me lembro de quando, aos três anos, minha filha viu uma propaganda de um carro grande, aquelas propagandas em que os carros grandes estão subindo montanhas e andando em ruas vazias pelo centro da cidade. A menina viu aquilo e disse “Gosteeeei” e eu percebi que tinha que trocar de carro, por outro com mais espaço e menos afeto.

E este terceiro carro (a quem eu quero enganar?) foi a minha mulher que escolheu, um carro mais alto e mais fácil de estacionar, e acho que pode ser considerado um desses carros que os homens chamam de “carro de mulher”. Fico tranquilo com relação a isso. Sinto falta, apenas, daquele meu carro velho, daquele câmbio de marcha descascado, as manivelas da porta quebradas, o banco de trás com bala e Fandangos jogados. 

Me dá uma saudade da reação das pessoas quando me viam dentro daquele carro velho. Os que não vão com a minha cara comemoravam a dificuldade financeira. Os que gostam de mim identificavam-se com a batalha. Acredito que era um carro que melhorava o dia de todo mundo.

Acima de tudo era uma lembrança diária de humildade. Era uma prova de que eu poderia viver com muito pouco, de que as coisas materiais não são importantes, de que só precisávamos uns dos outros para ficar bem. 

Em um mundo em que os carros ficam cada vez maiores, ocupando cada vez mais espaço em avenidas já lotadas, aquele carro velho me lembrava das coisas que realmente importam na vida, todas elas mais baratas do que um carro novo. Não era um voto de pobreza, era um voto de riqueza. Uma riqueza de espírito que quero me lembrar pra sempre de ter, independente do tamanho do meu carro.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016



28 de janeiro de 2016 | N° 18428 
CARLOS GERBASE

SOBRE FILMES E VIADUTOS

Na semana passada, terminei de dirigir um longa-metragem. O plano inicial era filmar em 24 dias, mas, como os recursos eram limitados frente aos desafios da produção – trazer atores e atrizes do centro do país, construir 30 cenários em estúdio, gerenciar uma equipe técnica de qualidade –, fizemos um esforço e reduzimos para 23. Numa produção cinematográfica, cada dia a mais (ou a menos) significa muito dinheiro. 

Trabalhamos 10 horas por dia, não temos sábados nem domingos de folga (neste filme, descansamos nas segundas-feiras) e comemorávamos a cada final de tarde que o cronograma estava sendo cumprido. Tudo isso é normal. Quem já fez um filme sabe que atrasos ou paralisações aumentam tanto os custos que podem inviabilizar o projeto.

Vendo a quantidade de obras da nossa cidade que estão atrasadas, paralisadas ou sendo refeitas poucos meses depois de “prontas” – e aquele trecho da Protásio Alves perto da Lucas de Oliveira é o mais irritante deles, pelos engarrafamentos absurdos que provoca em janeiro –, só posso chegar a uma conclusão: o município tem dinheiro a rodo, garantido por contratos bilionários que permitem a manutenção de centenas de trabalhadores e máquinas nos canteiros por prazos a perder de vista. 

Se cada obra de Porto Alegre – túnel, viaduto ou corredor de ônibus – fosse gerenciada por um produtor executivo cinematográfico, todos esses produtores já teriam sido demitidos sumariamente e exortados a procurar outra atividade profissional. Incompetência tem limite.

Sei que as obras viárias têm suas particularidades, que elas demandam relações judiciais complicadas entre o poder público e as empreiteiras, mas filmes também são muito complexos e envolvem ferramentas e processos sofisticados. A comparação não é absurda. E faço pelo menos uma proposta: que as licitações não sejam mais pelo “menor preço”. 

É melhor pagar mais caro para um profissional (ou uma empresa) que tenha competência e entregue o serviço no prazo, que continuar jogando fora dinheiro público em obras intermináveis, que já esgotaram a paciência da população. Cada dia a mais numa obra é, inevitavelmente, mais custo, mesmo que isso seja maquiado de alguma maneira nos contratos. A conta sempre chega, em filmes ou viadutos.


28 de janeiro de 2016 | N° 18428
EDITORIAL

O RANKING DA CORRUPÇÃO

A queda do Brasil no ranking de percepção da corrupção, elaborado anualmente pela ONG Transparência Internacional, merece uma interpretação mais criteriosa do que o simples estarrecimento. Quanto mais para baixo no ranking estiver o país, pior é a sua situação em relação a desmandos, fragilidade de controles e outros aspectos que favorecem atividades corruptas. Pois, em meio aos desdobramentos da maior investigação sobre corrupção no país, o Brasil caiu do 69º lugar em 2014 para o 76º em 2015. É a pior posição desde 2008 e a maior queda entre todas as 168 nações pesquisadas.

Parece paradoxal, mas os próprios analistas do estudo informam que foi exatamente a Operação Lava-Jato que levou o país a cair sete posições. Não cabe discutir os critérios da organização que faz o levantamento, mas os brasileiros devem considerar, ao lado do constrangimento de ver o país tão mal colocado neste ranking de integridade, que a investigação sobre o escândalo da Petrobras aponta para um futuro mais saudável. A queda no ranking acaba por expor, ao mesmo tempo, a dimensão da corrupção no Brasil e a capacidade de mobilização das instituições para combatê-la.

Seria uma ilusão aspirar a melhorias significativas no posicionamento brasileiro, a ponto de nos colocarmos ao lado de nações como Dinamarca, Finlândia, Suécia, Nova Zelândia e Holanda, as cinco menos corruptas do mundo. Mas é razoável que se deseje que o Brasil deixe de estar muito abaixo de vizinhos como o Uruguai, na 21ª colocação, e o Chile, na 23ª. 

Os resultados da guerra aos que corrompem e aos que são corrompidos podem levar à concretização desse desejo. Pela primeira vez, em grande escala, o país identifica corruptores organizados em quadrilhas, muitos dos quais já julgados, condenados e presos. Além disso, é preciso fazer com que, a partir de providências concretas, o Brasil evite que esquemas delituosos se repitam, especialmente os que se alimentam da promiscuidade entre os políticos e os fornecedores de serviços para os governos.


28 de janeiro de 2016 | N° 18428 
DAVID COIMBRA

Nunca houve tanta igualdade no mundo

Alguns ex-guerrilheiros brasileiros escreveram ótimos livros, quando voltaram do exílio. Vou citar dois dos melhores, dentre tantos que li: Os Carbonários, de Alfredo Sirkis, e O Que é Isso, Companheiro?, de Fernando Gabeira.

São tão bem escritos, tão interessantes, que tenho vontade de reler.

Em um desses dois, não lembro em qual, o autor contou que, num “aparelho”, como eram chamados os apartamentos ou casas em que se escondiam os guerrilheiros, uma “companheira” foi severamente censurada por ter fritado ovos na manteiga. Tratava-se, segundo os que a repreenderam, de um óbvio desperdício burguês, totalmente incompatível com os propósitos da Revolução. Óleo era proletário; manteiga, burguesa.

Naquele tempo, manteiga era mesmo artigo de luxo. Lá em casa, às vezes a gente comia pão com banha e sal, a fim de substituí-la. Você haverá de gemer um “argh” de repulsa ao pensar em pão com banha e sal, mas sabe que era bom? Experimente. Se bem que, hoje, ninguém mais usa banha para cozinhar. Uma lástima, não há feijão melhor do que o preparado com banha. E batata frita, então! Lá no Rio tem um bar que serve batata frita na banha, e é uma delícia. É o Manoel & Juaquim. Experimente.

Aliás, a batata frita era igualmente proibitiva, nos anos 1970, porque gastava muito azeite. Era um evento, quando a mãe fazia batata frita. Outra coisa: camarão, bacalhau, peixes em geral. Para mim, essas criaturas do mar eram opulências de barões. Comida ostentação.

Jantar fora. Isso era algo que nunca fazíamos. Conta o Ivan Pinheiro Machado que o Millôr sempre dizia, diante de uma conta pesada:

– Não é um jantar que vai me quebrar. Pois a nós quebrava.

Imagina viajar de avião. O Lula vive dizendo que, no seu governo, o pobre começou a andar de avião. Na verdade, esse processo começou um pouco antes, nos anos 1990, quando as pessoas “normais”, por assim dizer, passaram a viajar. Foi fruto do Plano Real, que emparelhou nosso dinheiro com o dólar, e do barateamento mundial das passagens aéreas. Até os anos 1980, aeroporto era lugar de gente fina. 

As pessoas se arrumavam para ir ao Salgado Filho. As mulheres subiam naqueles saltos e passeavam empinadas pelo saguão luminoso. Tratava-se de algo requintado, até um pouco sensual. Quando um casal ia passar as férias no Rio, a coluna social do jornal noticiava. A gente ficava pensando: “Eles foram ao Rio...”.

Estou falando de pessoas da classe média, de trabalhadores, não de miseráveis: minha mãe era professora de escola pública, meu avô era sapateiro. Hoje, pessoas nas mesmas condições têm mais acesso a quase todos os bens, de eletrodomésticos a serviços. Isso em todo o mundo. Ser pobre, na segunda década do século 21, é mais fácil do que era há 40 anos.

Por quê?

Porque o capitalismo se modernizou. Tornou-se mais ágil, mais flexível. O capitalismo é inclusivo. Pesquisas apontam que aumentou a desigualdade. São falácias. Aumentou a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, isso sim. Só que nunca houve tão poucos miseráveis no mundo. Nunca pessoas de baixa renda puderam adquirir tanto como agora. Nunca houve tanta igualdade no planeta. Graças ao capital. O capital está fazendo a sua parte. O Estado, nem sempre. O pobre sofre quando o Estado tira os impostos devidos do capital e não faz a sua parte. Caso do Brasil.

O Brasil é um exemplo clássico de tentativa de produção de igualdade desequilibrada. Quando o Estado produz igualdade? Quando presta, a todos, serviços de alta qualidade. Saneamento básico a todos garante saúde a todos; escolas primárias e secundárias de ótima qualidade dispensam cotas e ingresso facilitado em universidades; segurança pública evita o uso do automóvel, valoriza o transporte público, dispensa o shopping, favorece o pequeno comércio, entrega a cidade ao cidadão.

Comprar “coisas”, hoje, é mais fácil do que jamais foi. Mas não é só de coisas que se pode comprar que um homem precisa para viver bem.



28 de janeiro de 2016 | N° 18428 
L. F. VERISSIMO

Analogias

Cem advogados brasileiros assinaram um manifesto comparando aspectos da Operação Lava-Jato em curso com métodos da Inquisição. A palavra “neoinquisição” é usada, entendendo-se que a clara referência é à ação do Santo Ofício contra inimigos da Igreja e possuídos pelo demônio, na Idade Média. Descontando-se tudo que cerca o manifesto publicado – as razões de cada signatário e a procedência ou não do seu protesto, e até os exageros da retórica –, é curioso que a analogia escolhida para os excessos da Lava-Jato tenha sido a Inquisição. 

O manifesto deu um pulo no tempo, para trás, por cima de todas as outras comparações cabíveis, como regimes de exceção recentes, e preferiu chamar o juiz Moro e seus comandados de caçadores de hereges e bruxas. Desconfio de que não usaram a analogia mais óbvia, com métodos fascistas, porque “fascista” foi vulgarizado como xingamento político entre nós. 

Esquerda e direita acusam-se mutuamente de fascismo, tanto que a palavra perdeu todo o sentido. De qualquer maneira, o manifesto dos advogados não precisava ir tão longe para buscar um exemplo de arbitrariedade e descaso por direitos legais. Tinham exemplos bem mais próximos, no tempo e no espaço.

CARNAVAL

Eu ia começar este parágrafo com a frase “No meu tempo...”, mas me contive: nada espanta leitores como começar um parágrafo com “no meu tempo”. Mas a proximidade do Carnaval me fez pensar no tempo em que todos os anos, por esta época, já se conheciam as músicas “de Carnaval” novas. A maioria das músicas tinha vida efêmera, eram cantadas no Carnaval do ano e depois esquecidas, mas algumas ficavam e se tornavam clássicas. 

E me lembro de quando as músicas de Carnaval começaram a perder sua inocência. Até então, nenhuma letra “de Carnaval” tinha duplo sentido, a não ser que você descobrisse alguma alusão escondida no “Pirata da perna de pau”. E então, não me lembro se no mesmo ano – me acuda, Ruy Castro –, apareceram duas marchinhas seminais, que mudaram tudo. 

Uma era a “Índio quer apito”, baseada numa anedota safada. E a outra tinha o seguinte refrão: “Não importa que a mula manque, o que eu quero é rosetar”. Não entendi o que a letra significava, mas não tive a menor dúvida de que era bandalheira. Ainda não sei bem o que é rosetar, mas sei que cada vez se roseta mais no Carnaval.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016



27 de janeiro de 2016 | N° 18427 
MARTHA MEDEIROS

Um tanque paz e amor


Acompanhei pelas redes sociais uma convocação para que artistas e psicodélicos em geral se reunissem junto ao tanque que esteve exposto na Avenida Ipiranga, em Porto Alegre, a fim de dar a ele um aspecto mais lúdico: pintá-lo, colori-lo, forrá-lo de flores. Gostei. Seria uma manifestação crítica, porém pacífica, e de quebra enfeitaria a cidade.

Mas nem todos aprovaram a iniciativa. Alguns consideraram que o ato seria desrespeitoso com o Exército Brasileiro e muitos reclamaram de que há coisas mais urgentes às quais se dedicar.

Quanto ao Exército Brasileiro, não vi razão para que a instituição se sentisse agredida pela pintura de um blindado inoperante. Tanque é um veículo bélico. Mesmo quando em missão de defesa, não deixa de ser uma arma. Colori-lo não significaria extingui-lo. Seria apenas uma maneira divertida de lembrar que o espírito da cidade deveria combinar mais com paz do que com guerra.

Quanto ao fato de haver coisas mais importantes a serem focadas, nem se discute. Ou melhor: se discute à exaustão, como estamos fazendo em relação à segurança do Estado. É fundamental essa pressão para que o governo reverta o quadro de criminalidade, mas apenas se queixar não adianta. Já que segue massiva a resistência à legalização das drogas, que talvez contribuísse para a diminuição da violência, que tal se os consumidores parassem de usá-las a fim de enfraquecer o tráfico, que tem influência determinante no assunto? Utopia, eu sei, mas, quando não há recursos, é preciso investir em ideias, mesmo que delirantes.

Voltando às prioridades: colorir muros, por exemplo, é mais importante do que colorir um tanque, ok. Consertar calçadas, sinalizar ruas, pavimentar rodovias, mais ainda. Equipar postos de saúde, construir escolas, alimentar crianças, muito mais, muito mais. Na escala hierárquica dos problemas, um tanque na esquina é fichinha. Mas essa tendência de desprestigiar uma determinada mobilização só porque deveríamos canalizar nossa energia para outra de maior relevância é um convite à paralisação – acaba que ninguém faz nada.

Lutar pela despoluição do Guaíba é mais grandioso do que organizar um mutirão entre amigos para limpar a areia da praia, assim como inaugurar uma biblioteca é mais eficaz do que deixar um livro num banco de praça para que outra pessoa o leia, mas importante mesmo é deixarmos de ser tão patrulheiros e pararmos de depreciar a boa vontade de quem escolheu um gesto, mesmo que pequeno, para fazer a sua parte por um mundo menos ordinário.