sábado, 30 de maio de 2020



30 DE MAIO DE 2020
LYA LUFT

Esperanças

(Aqui respondo ao pedido especial de alguém que ainda não conseguiu meu livro As Coisas Humanas, que aguarda livrarias abertas, portanto sendo comprado online.)

Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta.

Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente - e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada. (Ou uma trágica pandemia destruindo boa parte do mundo que conhecíamos.)

Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz. Como quando abro a janela e diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as outras árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança).Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!", e isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.

Ou num aeroporto estrangeiro, uma brasileira toque meu ombro para perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.

Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.

Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido e vizinhas e amigas -, e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas e acho que me protegem.

Enfim, o jeito é bancar o guerreiro e não entregar os pontos, pensando que não há só desgraça e discórdia, e quem sabe vamos todos nos abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. (Grande ilusão da minha infância.)

Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, desejos, trabalhos, conquistas e mesmo fracassos, mas estando aqui, estando vivos - ah, e, apesar de tudo, curtindo as esperanças.

LYA LUFT


30 DE MAIO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Boletim de ocorrência

22 de maio de 2020, 17h06min. Estava desde o início da manhã em frente ao computador tentando escrever um novo texto, mas não conseguia digitar uma única palavra. Alegar falta de assunto, impossível. Não dá para dizer que o mundo anda um tédio, tudo indica que o apocalipse se avizinha, e os terrores são sortidos, basta conferir os sites de notícias, jornais, telejornais. Então o que estaria acontecendo que eu não conseguia me manifestar sobre nada? Foi quando me dei conta de que havia sido vítima de estelionato: a inspiração foi apenas a primeira falta que percebi, mas o butim era bem maior.

Levaram também minha inocência. Fico envergonhada de admitir, mas eu ainda tinha alguma. Não dá para se entregar às evidências o tempo inteiro, a gente acaba ficando cínica em relação à vida. Eu tinha um restinho de inocência no bolso, para alguma emergência. Ela me fazia pensar: vá que não sejam tão dementes, vá que prestem para alguma coisa. Naquela tarde, vi que meu bolso estava vazio.

Além da inspiração e da inocência, passaram a mão no meu discernimento. Já não sei o que é bom ou ruim pra mim. Cheguei a fantasiar uma ruptura. Abandonar as redes sociais, vender meu apartamento e meu carro, desistir de ser colunista, me mudar para um local distante e viver para a leitura, as caminhadas e as visitas dos amigos. Aí concluí: seria uma involução. Sei que já não sou garota, mas desistir desse jeito? 

Ainda há projetos a realizar e é importante me manter ativa na profissão que escolhi. No segundo seguinte, concluí o oposto: seria uma evolução. Cultivar a paz de espírito longe do caos urbano, se distanciar da toxidez da política, me alimentar melhor, ouvir música, falar menos: é preciso ficar velha pra isso? Continuo sem resposta.

Eis a razão deste B.O. que discrimina minhas perdas. Não sei bem a quem acusar. O capitalismo? O fascismo? O comunismo?

Gostaria que um inquérito fosse aberto e, se possível, reaver o que me foi tirado. Não é pouco. Eu vivia melhor. Eu era mais alegre. Reconhecia os problemas do Brasil, mas ainda gostava de morar aqui. E também achava que seria feliz morando em certas cidades do mundo. Agora nenhum lugar me parece ideal - a não ser a tal casa isolada em algum ponto distante: fantasias resistem a qualquer vírus.

A idiotice e a ignorância assumiram a chefia e ninguém parece interessado em me ressarcir da ausência de algo belo em que continuar acreditando. Meus olhos estão secando com a luz azul dos celulares. As pessoas andam desiludidas e com medo de apertarem-se as mãos. Os teatros estão vazios. E ninguém mais conversa sobre o amor. Faltava mais nada, roubarem também meu romantismo.

MARTHA MEDEIROS



30 DE MAIO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Pequenas narrativas para a graça. E a desgraça

Além de ler, assistir a lives, garimpar podcasts, grudar na TV, trabalhar de casa e em casa, muitos andam se encontrando com seus talentos adormecidos nesses dias - e noites - de reclusão. O que tem de gente postando fotos de suas obras, sejam desenhos, pinturas, vestidos, um canteiro novo para as plantas, uma música, um jeito diferente de arrumar a sala, um bolo, um bordado, um corte novo de cabelo. É como se, finalmente, o "eu" que nunca pôde se mostrar ganhasse uma chance para existir. Ou procuramos as boas coisas, ou estamos fritos.

Campeã no quesito botar para fora, a escrita acaba sendo não só a arte mais exercitada, como a mais maltratada. Anos e anos da linguagem tosca e cheia de abreviações da internet deixaram sequelas em bilhetes de amor, redações escolares e e-mails de apresentação. Haja leitura para reverter isso. E salve as oficinas de escrita, refúgio para a alma e as ideias de amadores - nos dois sentidos, de quem não é profissional e de quem ama escrever.

Sempre no espírito das boas recomendações para aproveitar em casa, hoje a coluna indica a recém-criada Oficina de Pequeníssimas Narrativas de um dos maiores talentos da literatura, Cíntia Moscovich. Escritora, jornalista, patrona da Feira do Livro, colunista aqui da Zero Hora. Sete livros publicados e muitos prêmios na estante, entre eles um Portugal Telecom e um Jabuti. Mais não digo porque os parágrafos são poucos.

Até a pandemia, as oficinas da Cíntia aconteciam na casa azul cheia de lembranças e plantas dividida com o marido Luiz Paulo Faccioli, também escritor, a cusca Esperança e os gatos. A Oficina de Pequeníssimas Narrativas é, como ela define, "Um laboratório online que promete levar os alunos ao universo do micro e do miniconto: formas breves, superbreves e megabreves que voltaram a ter apelo máximo com a pandemia e a necessidade urgente de comunicação enxuta, diversão saudável e humor inteligente." Sem exigir mais que a vontade de seus pupilos, Cíntia terá a participação de autores representativos do miniconto em suas novas aulas online. Entre eles, estão Marcelino Freire e José Roberto Torero.

Experiência não falta para a autora que teve no escritor Luís Antônio de Assis Brasil seu grande exemplo. "Eu comecei com o Assis em 95, na Oficina de Criação. Ele me incentivou a fazer o pós e o mestrado na área de criação literária e me incentivou, acima de tudo, a seguir carreira como escritora. Quando eu me dei conta de que era uma loucura trabalhar com ideias num meio retrógrado e reacionário, o Assis me colocou nos eixos. Ele sempre acreditou mais em mim do que eu."

Como se sabe, não se vive de literatura no Brasil. Aliás, na nossa atual situação, apenas viver já está de bom tamanho. Foi quando o Assis deu o segundo grande conselho para Cíntia: que ela ensinasse a escrever. "Dar aula significa também refletir sobre a escrita, é uma possibilidade de estar junto do que a gente ama. Dar aula é estar perto do material do meu trabalho. Eu preciso e gosto. Gente é coisa muito boa."

Desde então, a Oficina do Subtexto da Cíntia já formou várias turmas e publicou quatro coletâneas com os textos produzidos em aula. "O que eu mais gosto é quando os alunos ganham o mundo e lançam livros individuais. E uma coisa: não vivo sem rir. Oficineiro meu tem que rir e se acostumar com barbaridades!".

Nos momentos de graça e quando a vida pesar: escreva. Não passa, mas alivia de um jeito que vou te contar.

Serviço: Oficina de Pequeníssimas Narrativas com Cíntia Moscovich. A partir do dia 17 de junho, todas as quartas, às 18h30min. Informações: oficinasubtexto@gmail.com.

CLAUDIA TAJES

30 DE MAIO DE 2020
LEANDRO KARNAL


A metáfora, belíssima, é do padre Antônio Vieira, e não é a primeira vez que me valho dela em meus textos. No seu sermão do Espírito Santo, o jesuíta escreveu que alguns povos são difíceis de ser mudados ou convertidos a uma nova ideia.

Necessitam de muito esforço e larga catequese. Seriam feitos de mármore, ou seja, duríssimos. Uma vez adquirida a forma árdua com cinzel persistente, tornam-se permanentes. Em oposição, outros povos seriam dóceis à pregação, como o arbusto chamado de murta. Nessa planta, o jardineiro pode produzir formas graciosas em poucos minutos com sua tesoura de poda. O vegetal não resiste à vontade daquele que o corta. 

Porém, mal o cultivador esculpiu nova forma na maleável planta, galhos rebeldes brotam. O padre Vieira achava que os indígenas do Brasil seriam como a murta. Na pena do "imperador da língua portuguesa": "Há outras nações, pelo contrário - e estas são as do Brasil -, que recebem tudo o que lhes ensinam, com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a nova figura, e tornam a bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. 

É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não veem; outra vez, que lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não deem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés, para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só dessa maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos ramos".

A partir das figuras de linguagem do inaciano, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro fez um artigo belíssimo e conhecido de todos na área sobre a "inconstância da alma selvagem".

Não tenho a pretensão de analisar nem o padre Vieira nem Viveiros de Castro. Apenas quero falar da dificuldade em lecionar atualmente. Nossos alunos adolescentes hoje não são nem mármore nem murta: não são fáceis de ser convencidos pela fala e não são permanentes na nova forma. Os jovens questionam muito (o que seria bom em si) e sempre acham que aquilo que eles sabem já é suficiente. Muitos são resistentes a quaisquer novas ideias. Instala-se o mármore no ouvido e não floresce a murta no coração.

Lecionar é um exercício cada vez mais desafiador à medida que reunimos o pior dos dois mundos. O professor se vê diante do duplo desafio. O primeiro deles é o de comprovar permanentemente que aquilo que ele estuda é significativo e que pode levar a uma mudança interna que transforma para melhor. Ao mesmo tempo, com sua tesoura na mão e trabalhando em uma murta fértil, vê que a forma muda logo após o corte. Nunca foi tão difícil dar aula. Nós não temos a aparente docilidade do indígena que tudo ouve nem a suposta segurança dos outros povos que escutam com dificuldade, porém edificam de forma duradoura.

Todo professor, em algum momento, já se sentiu inútil ou falando para ouvidos de "marmurta" ou "murtármore". Em outras palavras, temos o pior dos dois mundos: a dureza de um e a inconstância do outro. Cada aula é uma conquista, um esforço diário de sedução e de convencimento. Demanda densa retórica e muitos exemplos concretos para estimular a mudança de visão ou aquisição de um novo hábito.

Para piorar, muitos pais (não todos) imaginam o filho de puro e bem lavrado ouro. Quando na infância o pimpolho entregou aquele desenho sem forma, garatujas mal acabadas, o olhar afetivo começou a insuflar: "Que lindo!". Sim, nada mais bonito do que algo feito com afeto e vindo da pessoa que você mais ama. Será que, em algum momento, existirá a reflexão de que é lindo para mim porque é do meu rebento, porém, é menos bonito fora desse quadrado cordial? De tanto elogiar coisas assim, não acabaríamos convencendo nossos filhos e a nós de que o infante tem o talento de Leonardo da Vinci e a agudeza lógica de Isaac Newton? Quem dá aulas sabe que eu não estou inventando ou exagerando.

Crianças e jovens devem ser estimulados sempre. Excesso de senso crítico produz efeitos devastadores na confiança e no empenho. Dosar elogios justos pelo progresso em algum campo sempre indicando que deu um passo decisivo, porém, aquela redação não é o próximo prêmio Nobel de literatura e aquela resposta foi divertida e proporcional a alguém de 13 anos. Vieira analisou o material vegetal ou pétreo das almas discentes. Eu incluo o jardineiro na reflexão.

Educar é um desafio. Respeitar cada fase e saber que alguém que começou a estudar formas literárias ainda tem um longo caminho; e que as perguntas originais de um pré-adolescente em geometria nascem do desconhecimento e não do brilho genial e precoce de um novo Pitágoras. Elogiar quando existe um progresso, indicar que pode crescer mais, que houve imperfeições aqui e ali, dar perspectivas e comparações e que, acima de tudo, o erro é o mais sólido instrumento de aprendizado da espécie humana: eis alguns caminhos para andar entre mármores e murtas.

Para nós, professores, uma rota: criticar sem destruir, indicar onde existiu conhecimento, mostrar um caminho de aprendizado. Para todos os pais: seu filho é inteligente, porém, há outros na sala, igualmente ou mais brilhantes. Mantenha a esperança no mármore clássico e na murta ecológica.

LEANDRO KARNAL



30 DE MAIO DE 2020
ARTE

"O grito" pede distanciamento

O Grito, quadro do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), também precisa de distanciamento como o imposto pela pandemia do novo coronavírus. É o que indicam cientistas que passaram três anos investigando a perda de brilho e intensidade da tinta amarela usada na versão do Museu Munch, em Oslo (Noruega), pintada em 1910.

Uma das hipóteses é que a luz estivesse desbotando o quadro. Mas, após rastreá-lo com equipamentos especiais, analisar as tintas do pintor norueguês e submeter simulações de suas misturas a diferentes condições de luz e umidade, 18 pesquisadores de sete países (Noruega, Itália, EUA, Bélgica, França, Alemanha e Brasil) descobriram outro fator: nas faixas amarelas do pôr do sol, no pescoço do homem que grita e na massa espessa do lago, Munch usou uma tinta com pigmentos impuros, que, sob umidade, como a exalada pela respiração humana, sofre transformações químicas e descama.

- Ter multidões na mesma sala da pintura não é bom - diz a especialista norte-americana Jennifer Mass, que participou da investigação.

Além de umidade, as pessoas exalam cloretos quando respiram, segundo o professor de Física da Universidade de Antuérpia Koen Janssens, outro integrante do grupo:

- Para pinturas em geral, não é saudável estar muito perto da respiração humana.

Pelo Museu Munch passam 250 mil visitantes por ano, mas O Grito foi raramente exposto desde 2006, quando voltou para casa depois de ter sido roubado por dois mascarados em 2004. A pintura recuperada voltou com manchas de água no canto inferior esquerdo e, para evitar mais desgastes, ficou armazenada sob baixa iluminação, a 18ºC e umidade relativa de 50%. Após o resultado das pesquisas, deve ganhar instalações ainda mais secas, de no máximo 45% de umidade, segundo Irina Sandu, cientista de conservação do museu.

Tintas instáveis como a usada por Munch eram comuns no fim do século 19 e no começo do 20, porque sua durabilidade não havia sido testada. A fabricação era experimental, impulsionada pela descoberta de pigmentos sintéticos que permitiam paletas mais vibrantes do que as das tintas de então - feitas à base de minerais moídos ou corantes extraídos de plantas e insetos. Populares entre artistas modernistas, pós-impressionistas e expressionistas, as cores contrastantes, saturadas e com variações de brilho na superfície, eram perfeitas para a cena que o pintor norueguês queria representar.

"Andava de noite numa estrada. Estava cansado e doente. Fiquei olhando para o outro lado do fiorde; o sol estava se pondo; as nuvens estavam vermelhas - como sangue -, senti como se um grito passasse pela natureza. Pensei ter ouvido um grito. Eu pintei essa imagem. Pintei as nuvens como sangue real. As cores estavam gritando", descreveu Munch, segundo o historiador Arne Kristian Eggum, que estuda sua obra.

Entre 1893 e 1916, o pintor fez várias versões de O Grito, em tinta e pastel, desenhos, esboços e litogravuras, além dos quadros que estão Museu Nacional da Noruega (de 1893) e no Museu Munch (1910).

Na procura pelas cores gritantes, experimentou diversos pigmentos até chegar no amarelo de cádmio que desvaneceu. Os cientistas descobriram o problema exato: havia cloretos na tinta usada por Munch. Sob umidade, essa impureza acelera a deterioração. As pinceladas no céu nublado do pôr do sol e na figura central ficaram esbranquiçadas. No lago, a massa de tinta descamou.

A descoberta envolveu várias estratégias de pesquisa em diferentes laboratórios europeus e visitas a Oslo. Numa delas, o físico nuclear brasileiro Renato Pereira de Freitas, 37 anos, e uma equipe do italiano Molab, referência na análise de obras de arte, pegaram um avião em Perúgia (Itália) em um domingo à noite de 2017, levando desmontado numa mala um sofisticado equipamento de mapeamento molecular. Como em um raio X, ele detecta os elementos químicos da obra sem danificá-la, diz Freitas, que ajudou a mapear o cádmio e o cloro no quadro de 83,5cm por 66cm, de têmpera sobre cartão.

Para Janssens, Munch deve ter usado por acidente uma tinta de menor qualidade. O sulfeto de cádmio amarelo é obtido pela reação entre cloreto de cádmio e sulfeto de sódio; numa indústria ainda incipiente, pode ter sido incompleta ou feita de forma negligente.

Descoloração e descamação do mesmo pigmento também foram documentadas em obras de Matisse, Ensor e Van Gogh. Nesses casos, a luz era o principal fator. A degradação não pode ser revertida, mas o conhecimento dos processos que levaram a ela permite uma volta digital ao passado, reconstruindo as cores originais, diz Janssens.

No Brasil, a investigação também terá consequências. De volta ao país após terminar o pós-doutorado, Freitas comprou um equipamento de mapeamento para o Instituto Federal do Rio de Janeiro, o que permitirá estudar obras brasileiras com a mesma técnica. 

ANA ESTELA DE SOUSA PINTO


30 DE MAIO DE 2020
COMPORTAMENTO

NEM TODOS APRENDERÃO COM A ATUAL EXPERIÊNCIA

Luciano Marques de Jesus, Filósofo e professor, coordenador do curso de Filosofia da PUCRS

A MORTE PARECE MAIS PRÓXIMA EM UMA PANDEMIA. COMO ESSA EXPERIÊNCIA PODE NOS INFLUENCIAR?

Nossa sociedade nega a morte. Por um lado, a morte é tabu. Por outro, é banalizada e espetacularizada. Se há uma pessoa doente na família, a palavra morte é proibida, nos programas policiais vespertinos é vulgarizada e, não raro, comemorada. Na área da saúde a palavra não existe. As pessoas não morrem, evoluem a óbito. Tudo isso talvez porque, para muitos, a morte represente a derrota última. Mas a pandemia nos confronta com a morte! 

Deveríamos aprender com Rubem Alves que a consciência da morte nos torna mais libertos, preocupados com aquilo que efetivamente importa, que vale a pena dar valor. Se morrêssemos hoje, qual o significado de toda a preocupação de ontem? Vale a pena dar a importância a tantas inquietações? Talvez pouca coisa nos seja necessária, talvez uma só! Curioso ser humano! O único animal que sabe que vai morrer e vive como se nunca fosse morrer. Tomara que saiamos dessa experiência dando maior valor à vida. Essa é uma oportunidade que temos. Infelizmente, nem todos vão aproveitá-la.

O SENHOR É UM ESTUDIOSO DA LOGOTERAPIA, QUE PRECONIZA QUE A CHAVE INTERPRETATIVA DO SER HUMANO É A VONTADE DE SENTIDO, E NÃO DE PRAZER OU PODER. A LOGOTERAPIA SURGIU QUANDO SEU FUNDADOR, VIKTOR FRANKL (1905-1992), REFLETIU SOBRE SUA EXPERIÊNCIA NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO NAZISTAS. O QUANTO EXPERIÊNCIAS DRAMÁTICAS (COMO UMA PANDEMIA) PODEM NOS MOSTRAR O SENTIDO DA VIDA?

A logoterapia propõe que o motor da vida humana, a verdade que sempre volta é a vontade de sentido. A questão do sentido persegue o fundador da logoterapia desde sua juventude, quando, numa aula de história natural, o professor ensinava que a vida pode ser reduzida a dois processos, oxidação e combustão. O jovem Frankl questiona: se é assim, que sentido tem a vida? O campo de concentração foi o terrível laboratório que validou as intuições de Frankl, mostrou que as chaves interpretativas de Freud (prazer) e Adler (poder) são insuficientes para mostrar o motivo por que as pessoas continuariam a dizer sim à vida, não obstante todo o horror que as circunvizinhava. A teimosa vontade de fazer que a vida faça sentido, essa é a chave interpretativa do ser humano segundo a logoterapia. Freud tinha a ideia que, se todos fossem submetidos aos seus instintos, por exemplo, se todos passassem fome, seriam iguais. O campo de concentração e outras situações de extrema crise, como essa pandemia, mostram o contrário: trazem a lume a emergência do que há de mais elevado, nobre e sublime no ser humano e, também, o que há de mais baixo, asqueroso e abjeto; ou, na dura expressão de Frankl, a emergência do porco e do santo.

MUITO SE TEM DITO QUE TODOS SAIREMOS DA PANDEMIA TRANSFORMADOS EM ALGUM SENTIDO. HÁ QUEM DIGA QUE SEREMOS MENOS INDIVIDUALISTAS. O SENHOR CONCORDA COM ESSA IDEIA?

Mais do que concordar, eu torço para que isso aconteça! No entanto, não podemos nos iludir, já durante a epidemia temos visto emergir o que há de melhor e de pior no ser humano. Muita solidariedade e voluntariado, mas também oportunismo, golpes e manifestações de interesses egoístas. Penso que a vida pós-coronavírus tem tudo para ser melhor, mas nem todos aprenderão com a experiência. Mario Sergio Cortella afirma que a ocasião não faz o ladrão, ela apenas o revela! Vamos aguardar para ver quais revelações o futuro nos revelará.

TEMOS VISTO ALGUMA VIRULÊNCIA NO DEBATE PÚBLICO, E NÃO SÓ NO CAMPO POLÍTICO. O NEGACIONISMO À PANDEMIA SE ALINHA A ISSO À MEDIDA QUE SUGERE INTERPRETAÇÕES RASAS E PRÉ-CONCEBIDAS DO MUNDO. O QUANTO ESSA SITUAÇÃO DE CONFLITO PODE SER AFETADA POR ESTE MOMENTO DE CRISE E ISOLAMENTO DAS PESSOAS?

O cientista e professor Marcelo Gleiser, perguntado por um aluno da Especialização em Filosofia e Autoconhecimento da PUCRS sobre o que ele pensava a respeito da volta do terraplanismo, respondeu com uma palavra: triste! É uma tristeza ver menosprezo pela ciência, negacionismo, movimento contra as vacinas. De um lado, essas visões equivocadas - não gosto do adjetivo "medievais", ele é ofensivo, mas para a Idade Média! - podem prejudicar o combate ao vírus, mas também torço para que sejam desmascaradas. É impressionante a capacidade brasileira de politizar e ideologizar uma pandemia! Sobre a defesa do uso de medicações específicas por pessoas que passam longe da área da saúde, só resta o meu estarrecimento. De uma velha canção portuguesa, citada pelo saudoso senador Jefferson Peres: "Tudo isto existe; tudo isto é triste; tudo isto é fado!".

 DANIEL FEIX

30 DE MAIO DE 2020
JULIA DANTAS

A REALIDADE INVEROSSÍMIL

Certa vez, numa oficina de escrita criativa, uma professora propôs à turma um exercício que consistia em criar um mundo distópico. Um dos alunos entregou o seguinte texto: "Era uma vez um país de proporções continentais que, de uma semana para outra, se viu na rota de um vírus mortal. Não havia vacina nem tratamento, o líder da nação contava apenas com a vantagem de que outros países já tinham sido tomados pela doença antes, podendo oferecer bons e maus exemplos do controle das contaminações. 

Mas o líder não gostava de ciência. Sua estratégia consistia em divulgar um elixir encantado, dizer às pessoas que estava tudo bem e ignorar os mortos acumulados. Questionado sobre suas decisões, a resposta foi simples: debochar dos questionadores. Ninguém entendia quais eram seus objetivos, até que uma reunião a portas fechadas foi tornada pública, e ali o povo soube os projetos para o futuro do grande país. Assim que o vírus passasse, eles chamariam os jovens da nação para que construíssem estradas, chamariam esses jovens de aprendizes, pagariam a eles uma esmola e ensinariam a todos o hino nacional".

A professora disse ao aluno que entendia a proposta do texto, o objetivo de mostrar a desconexão de um líder com a realidade. Mas advertiu que os personagens estavam pouco convincentes. Mesmo os vilões de uma história precisam de complexidade, não podem ser assim tão planos ou o leitor não acreditará neles. Até mesmo Hitler tinha contradições em sua personalidade, vide o desejo, na juventude, de se tornar artista.

A professora perguntou ao aluno qual era a história prévia do personagem líder. Ele disse que era um sujeito que tinha sido expulso da organização militar de seu país, que tinha sido um político irrelevante que se aproveitava de sua irrelevância para exaltar bandidos, empregar bandidos, homenagear bandidos com medalhas, e que depois se tornou famoso por fazer piada com estupro. A professora observou o aluno e tentou ser gentil: "Assim não vai funcionar", ela disse, "fica muito caricato e, além disso, inverossímil, um sujeito desses nunca chegaria à Presidência de lugar nenhum".

Esse causo de oficina é fictício, claro. Nada mais que um exercício de imaginação, coisa que falta a esse governo: a capacidade de imaginar um projeto de país que vá além da exploração da pobreza e do medo. Em vez de desenhar planos para colocar jovens em trabalhos pesados com remuneração irrisória, nossos líderes deveriam imaginar um futuro no qual as pessoas que constroem estradas e realizam serviços essenciais poderiam - sei lá, vou sonhar alto - receber treinamento adequado, salários suficientes para sustento de uma família e garantias de segurança. A gente podia até inventar um nome para essa relação de trabalho, talvez uma palavra assim tipo emprego. Mas acho que agora já entrei no terreno das utopias.

JULIA DANTAS


30 DE MAIO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

CORONAVÍRUS, OS OLHOS E O SÊMEN

O que dizem duas pesquisas sobre a transmissão do vírus. Os olhos servem de porta de entrada para o novo coronavírus. Os estudos mostram que ele se instala nas células que revestem as vias respiratórias altas e as da conjuntiva, com mais facilidade do que os outros coronavírus causadores das epidemias de sars e da mers, de anos atrás.

Em artigo publicado na revista The Lancet Respiratory Medicine, pesquisadores da escola de saúde pública da Universidade de Hong Kong foram os primeiros a documentar a facilidade com que o novo coronavírus conseguia infectar seres humanos ao penetrar os olhos, além das vias aéreas.

Eles cultivaram em laboratório tecidos das vias respiratórias e da conjuntiva de pacientes com covid-9, para compará-los com os mesmos tecidos daqueles infectados pelo vírus da sars e da gripe H5N1. Os resultados mostraram que o vírus da covid-19 é capaz de atingir concentrações celulares 80 a 100 vezes mais altas do que os da sars e da gripe H5N1. Segundo os autores: "Os resultados explicam a transmissibilidade mais elevada do vírus da covid-19, além da importância dos olhos como via da transmissão humana".

Achados como esses justificam a insistência nas recomendações de lavar as mãos com água e sabão, com regularidade, de não levar as mãos ao rosto e de não coçar os olhos, uma vez que pesquisadores da mesma universidade já haviam demonstrado que o vírus pode permanecer viável por vários dias em superfícies de aço ou de plástico.

No início da epidemia, imaginava-se que aos profissionais de saúde que trabalham em contato direto com os pacientes bastaria usar roupas protetoras e as máscaras N95. Esse, e outros estudos, demonstraram que havia necessidade de uma barreira de plástico para evitar o contato de secreções com os olhos (óculos ou "face shield").

O vírus da covid-19 já foi isolado na saliva, no trato gastrointestinal, nas fezes e na urina dos pacientes. Agora, pesquisadores do Hospital Municipal de Shangiu, na China, publicaram no JAMA Network um pequeno estudo realizado para detectar a presença de partículas virais no sêmen de 38 homens internados com a doença. O vírus foi encontrado em seis deles.

O coronavírus poderia ser sexualmente transmissível? O número de pacientes avaliados é tão pequeno que não permite conclusões definitivas. No ambiente científico, pesquisas desse tipo são consideradas apenas "geradoras de hipótese", isto é, requerem estudos mais completos, com maior número de pacientes.

Além do mais, não sabemos se partículas virais presentes no esperma estão íntegras, mantêm a viabilidade e a capacidade de infectar outras células, requisitos fundamentais para a transmissão.

Enquanto aguardamos a chegada da vacina salvadora e de medicamentos dotados de atividade antiviral, cabe a nós lavar as mãos com frequência, usar máscara ao sair de casa, além de manter o rigor do isolamento, é claro.

DRAUZIO VARELLA


30 DE MAIO DE 2020
BRUNA LOMBARDI

ANO DA LIMPEZA

Sou daquelas que adoram limpar gavetas, esfregar prateleiras, armários, arrumar, organizar, rever, doar, jogar fora. Sou ótima numa faxina e limpo com tamanho empenho e obsessão que dá para lamber onde eu limpei. E faço tudo com muito prazer.

Vivo como todos na correria e na pressa do cotidiano, nesse acúmulo do mundo contemporâneo, onde se junta mais do que se precisa. Manter essa ordem e organização é um desafio constante. Ando, por exemplo, soterrada de livros que compro constantemente, na certeza absoluta que um dia vou ler todos. E vou, porque não sou de desistir, mas eles andam tomando conta do meu escritório e me empurrando para um canto cada vez menor.

O planeta regente do ano passado foi Marte. Na mitologia romana, Marte era o deus da guerra. Com sua regência, passamos um ano de combate, de confrontos, de energias antagônicas, mas também de força interior e iniciativa para tomada de grandes decisões.

E foi um ano de limpeza, de renovação, de lidar com desordem externa e interna e conseguir se livrar de tudo que não precisamos mais carregar.

A limpeza começa pelas coisas materiais que nos cercam. A busca da ordem e harmonia do que temos ao redor. Eu não consigo ser produtiva se as coisas não estiverem organizadas e arrumadas em volta de mim. A desordem drena minha energia. As coisas nos lugares certos trazem beleza e serenidade. Dá trabalho, mas faz bem para o espírito.

Arrumar o exterior é uma tarefa bem mais simples do que adentrar nossas cavernas interiores. O desafio maior é sempre mergulhar dentro de nós.

Somos seres complexos e aos poucos vamos descobrir pesos que carregamos sem perceber, sem sequer enxergar que arrastamos certas correntes. Tantas coisas invisíveis, cargas emocionais que suportamos, lixos que se acumulam pesados em algum lugar do nosso espírito e que foram largados, escondidos, esquecidos, deixados sem solução.

Raiva, ódio, frustrações, ressentimentos são os nós dessas correntes atadas aos nossos pés, que impedem nossos movimentos. Mágoa é uma má água, uma água parada, que suja nosso sistema, nos intoxica.

Nos armamos de gatilhos e nos tornamos um campo minado onde já não se pode andar despreocupado e nem correr livremente.

É preciso muita coragem para entrar nesses porões da alma e acender a luz. Podemos ver o que não queremos. Podemos apagar a luz, fechar a porta e fugir.

Mas também temos em nós a capacidade de encarar de frente o que existe, calcular bem todo esse acúmulo da vida e tomar uma decisão.

Já não importa mais a razão, nem o porquê aquilo está lá. Coisas passadas, sujeiras antigas, desnecessárias. Reminiscências que juntas se compactam e formam um bloco escuro sólido, que impede a nossa leveza.

Hora de limpar. Hora de usar a nossa luz para iluminar e enxergar a nossa sombra. Hora de definir quem somos e quem seremos a partir de agora.

Podemos entrar nessa caverna sem medo, nada ali é permanente e tudo pode ter um novo significado.

Nenhuma escuridão dura para sempre. Lembrei do verso de um poema meu que diz: "Depois de toda noite vem a aurora. É hora de ver a sua brilhar".

BRUNA LOMBARDI


30 DE MAIO DE 2020
J.J. CAMARGO

FELICIDADE: O TRABALHO QUE DÁ

O caminho mais seguro é ajudar o outro, despertando o mais nobre dos sentimentos
Só o amor despertou mais debatedores animados. Se considerarmos que a busca da felicidade é a essência da nossa passagem pelo mundo, todo o aparente exagero se justifica. O resultado de tantas cabeças pensantes trabalhando em dissintonia explica a variedade infinita de conceitos, uma característica dos temas que não entendemos bem.

Como somos completamente diferentes, a ponto de que coisas que deslumbrem alguns provoquem bocejos em outros, não se pretenda copiar modelos de felicidade. Tente construir a sua, do seu jeito. E trate de aceitar que, se pretender pôr a cabeça de fora, a ponto de ser profissionalmente respeitado, sempre terá maior chance o espírito acelerado, em comparação com aquele que sai da cama toda manhã com o desânimo de quem vai terminar o dia numa reunião do condomínio.

Para que não pareça implicância, e em prol dos menos ambiciosos, é preciso admitir que as pessoas pouco exigentes têm mais chance de alcançar uma condição de equilíbrio emocional, que se confunde tanto com felicidade, que talvez seja ela mesma. Por outro lado, uma fonte segura de infelicidade é a comparação, descrita por Mark Twain, como a morte da alegria, porque à nossa volta sempre haverá alguém que sabemos melhor do que nós.

Quem consulta a literatura fica impressionado com o rosário de recomendações, com uma unanimidade: o caminho mais seguro é ajudar o outro, que além de ser um exercício de humanismo, ainda desperta nos beneficiados o mais nobre dos sentimentos, a gratidão. No desespero desta pandemia, este sentimento ficou evidente, como raramente tinha acontecido. A onda de manifestações coletivas de aplauso aos profissionais da saúde só precisa permanecer, para que ninguém a considere um reles fruto do pânico transitório. Qualquer medo contamina a gratidão.

Enquanto isso, seguimos encantados com a descoberta de que ser médico, de verdade, é dar a alguém que nos procura uma alegria que ele não teria se não fôssemos capazes de fazer o que fazemos. E sem nenhuma soberba, até porque estamos sempre assombrados com nossos erros, dos quais, muitas vezes, nunca nos recuperamos completamente.

Apesar da diversidade de vicissitudes e ambições, consagrou-se a observação de que agrupados somos mais, e que em geral a solidão flagela, reduz a expectativa de vida, aumenta o risco de adoecer, e quando isso ocorre, o solitário sofre mais.

Ainda que essa observação seja consensual, não se pode negar a possibilidade, real e menos exigente, de sermos felizes sozinhos. Sempre me impressionou a capacidade de certas pessoas de estarem contentes com coisas que os outros consideram menores, em contraste com os que exigem a felicidade global, geralmente tendo fracassado com a sua.

Um dos depoimentos mais pungentes, recebi de um leitor fiel que confessou ter chorado enquanto assava uma costelinha no seu solitário churrasco de domingo, e se deu conta que era sim, uma pessoa feliz, e se sentia grato por isso.

Um exemplo de autodidata inteligente, ao entender que a pretensão de fazer todo o mecanismo funcionar harmonicamente é um impeditivo de felicidade, esta coisa que não existe e, um dia, acaba.

J.J. CAMARGO






30 DE MAIO DE 2020
DAVID COIMBRA

Como tirar um hipopótamo do pântano

Uma vez, o Mago de Riga viu-se metido em uma séria dificuldade. Então, ele pensou no hipopótamo.

Engraçado alguém pensar em um hipopótamo quando está com problemas, mas foi o que aconteceu.

O Mago de Riga era Mikhail Tal, Grande Mestre de xadrez da Letônia, na época da União Soviética. Um gênio. Coisa assim de Michelangelo, de Leonardo. Aprendeu a ler sozinho aos três anos de idade. Aos oito, já humilhava marmanjões nos tabuleiros. E o melhor: ao contrário de outro gigante do xadrez, Bobby Fischer, era afável e gentil com as pessoas.

Mas não quando mexia os peões. Ao contrário, Mikhail Tal tinha um estilo de jogo surpreendente e agressivo. Fazia sacrifícios de peças importantes, que desorientavam seus adversários e levavam as partidas para finais inesperados, em que ele sempre vencia.

Se você já jogou xadrez sabe como esse jogo pode ser violento. Nos tempos do IAPI, isso já contei, mas conto de novo, pois, naquele tempo, a Biblioteca Romano Reif trouxe para jogar na vila um guri que era campeão de xadrez de algum lugar. Inscrevi-me para enfrentá-lo. Era um gordinho de aparência inofensiva, daqueles que pegam no gol na peladinha e levam cascudo no recreio. Isso até avançar o peão do rei para a casa quatro. A partir daí, ele se transformou. Silencioso, concentrado, olhar assassino, começou a movimentar aqueles cavalos, aqueles bispos, aquelas torres de um jeito feroz, que me deixou aturdido e acuado. Derrotou-me com a naturalidade de um Tyson surrando o Batatinha.

Tal fazia isso também, só que com Grandes Mestres. Foi invencível durante uma temporada e só não continuou amassando todos porque sua saúde era frágil. Tal sofria de problemas renais crônicos. E, na mão direita, faltavam-lhe dois dedos.

Muitos não sabem, mas é preciso condição física para jogar um bom xadrez. A concentração, o foco e o esforço mental são tão intensos que, às vezes, um jogador chega a perder cinco quilos durante um match decisivo. Tal, enfraquecido fisicamente, viu seu jogo enfraquecer também, e só por isso foi superado.

Mas, no dia em que pensou no hipopótamo, desfrutava o auge da carreira. O que se deu foi que, em meio a uma partida, o adversário colocou o Mago de Riga em uma posição complicada. Se fizesse o movimento errado, Tal perderia o jogo. Aí, sem motivo aparente, veio-lhe à memória uma antiga canção infantil soviética que dizia algo do tipo "como é difícil tirar um hipopótamo do pântano". Assim, em vez de pensar em adiantar a dama ou recuar o bispo, Tal começou a pensar em maneiras de tirar um hipopótamo de um pântano. Com um sistema de apoios? Com cordas? Com um helicóptero? O adversário esperando, a plateia esperando, todos achando que ele estava calculando os próximos lances, e Tal obcecado com o hipopótamo.

Até que ele chegou a uma conclusão. "Quer saber?", disse para si mesmo. "Deixa o hipopótamo se afogar. Se não há como salvá-lo, paciência. Que a natureza siga seu curso!"

Encontrada a resposta, o hipopótamo, puf, desapareceu da mente de Mikhail Tal e ele tomou uma decisão: "Vou sacrificar o cavalo". Foi o que fez. E ganhou o jogo.

Gosto dessa história, porque mostra que, às vezes, temos de fazer o que os chineses recomendam: seguir a favor da maré. Se um problema não tem solução, deixou de ser um problema. Já foi resolvido, não é preciso mais pensar nele. Isso, de certa forma, é um alívio. Libera o cérebro para se ocupar com outras pendências.

Agora, por exemplo, não adianta se afligir com um governo negacionista, que acredita que a pandemia é uma trama do comunismo internacional. Melhor esquecer as bizarrices que saem do Palácio do Planalto e se empenhar no combate ao vírus em cada Estado, em cada cidade, em cada casa. Melhor lidar com o corona como se fosse o cavalo de Mikhail Tal. E deixar que o hipopótamo de Brasília se afogue no pântano.

DAVID COIMBRA


30 DE MAIO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

A BOIADA

É comum confundir estupidez com rudeza ou grosseria, quando, de fato, é muito mais do que isto. É imensa teia que aprisiona e afoga a todos, incluído o estúpido.

Em As Leis Fundamentais da Estupidez Humana, o pensador italiano Carlo Cipolla apontou cinco situações: 1) subestimamos o número de estúpidos; 2) o estúpido nunca é só estúpido e tem outras torpezas; 3) o estúpido nem sequer tira proveito da estupidez e pode, até, prejudicar-se com ela; 4) os não estúpidos desvalorizam o potencial nocivo dos estúpidos; 5) em suma, o estúpido é a pessoa mais perigosa e destrutiva que existe.

No vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, os cinco monstros da estupidez apareceram de uma só vez, capitaneados pelo presidente da República. E não como crítica à estupidez em si, mas como se fosse a disputa de um grotesco torneio do absurdo. A pandemia da covid-19 já estava no apogeu, mas não surgiu sequer uma simples ideia para combatê-la.

A única menção (apenas menção) à pandemia foi feita pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ao sugerir que (já que a imprensa está dedicada à covid-19) o governo deveria aproveitar a situação "para passar a boiada" e, assim, simplificar as leis de proteção à natureza.

Num evidente "ato falho", impossível de ocultar, Salles chamou de "boiada" o conjunto de medidas que preparou para se autotransformar, cada vez mais, no "ministro do desmatamento". Citou como "modelo" as medidas que facilitam arrasar o que ainda resta da Mata Atlântica, seus córregos e cachoeiras.

Não só a natureza e o meio ambiente foram alvo do tiroteio. Quase todos imitaram o palavreado chulo (ou obsceno) do presidente da República. Até o ministro da Economia, Paulo Guedes, usou o verbo predileto de Bolsonaro e, ao defender a liberação de cassinos e jogos de azar, pediu à ministra Damares, dos Direitos Humanos: "Deixa cada um se f.... do jeito que quiser, principalmente se o cara é maior, vacinado e bilionário".

Parecia, até, uma desatinada conversa gerada por litros de cachaça em estômago vazio, em que só se fale em passar a boiada?

Pela segunda vez, Rio Pardo se torna "cidade histórica", mas, agora, pelo horror do roubo (mais de R$ 15 milhões) organizado pelo prefeito sob o torpe simulacro de enfrentar a pandemia. A prisão do prefeito e seus asseclas mostra que o Rio Grande já não é uma ilhota isolada no mar da corrupção que assola o país.

Aqui, também, fomos carcomido$ pelo víru$ ance$tral que, no Rio de Janeiro, leva a Polícia Federal a investigar até o governador estadual, além de um filho do presidente da República. E de imediato, antes que a boiada passe, pois, aí, a avalanche destruirá o essencial, legalizando o crime maior.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

30 DE MAIO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

A REPETIÇÃO DO HORROR

Mesmo cercados pelas preocupações que emergem com a pandemia do novo coronavírus no Estado, os gaúchos acompanham consternados os desdobramentos das investigações sobre a morte de Rafael Mateus Winques, 11 anos, de Planalto, no norte do Rio Grande do Sul. A mãe do menino, Alexandra Dougokenski, 32 anos, confessou o crime, mas ainda sustenta que teria sido acidental, devido a uma dose exagerada de medicamentos que teria dado ao garoto, por estar muito agitado. A versão, entretanto, apresenta fragilidades, uma vez que a perícia inicial apontou estrangulamento.

Assim como teve a competência de desvendar rapidamente uma das principais perguntas sobre o crime ao confirmar a participação confessa da mãe, a Polícia Civil agora se debruça sobre uma série de pontos que ainda aguardam esclarecimento, como se ela agiu sozinha, a possível motivação de Alexandra, como era o relacionamento entre os dois e se o garoto foi realmente dopado.

Os novos depoimentos e o resultado dos laudos periciais certamente levarão as autoridades a elucidar as demais circunstâncias que precisam ser aclaradas em mais este caso perturbador. O crime de Planalto, mesmo com suas particularidades, guarda dolorosas semelhanças com o episódio do menino Bernardo Uglione Boldrini, de Três Passos, morto em 2014 também aos 11 anos. Como agora, o desaparecimento da vítima foi forjado e, da mesma forma, alegou-se depois o uso de medicamentos como causa da fatalidade. No caso Bernardo, a madrasta e o pai, entre outras pessoas, acabaram condenados.

A morte de uma criança pelas mãos de alguém muito próximo, ainda mais por uma mãe, perturba, intriga e une os gaúchos na repulsa a mais este crime bárbaro. A incredulidade e o choque não se resumem aos moradores do pacato município de 10 mil habitantes, uma comunidade como a maioria das cidades de menor porte do Estado, em que grande parte dos moradores se conhece e cultiva algum tipo de relação. Não há antídoto contra a perversidade humana e suas mais inconfessáveis motivações, mas o cultivo de valores salutares, da compaixão e das relações familiares sadias deve ser algo a ser perseguido por todos, incluindo a rede pública de proteção à infância e à adolescência, para que se possa evitar novas tragédias do gênero.

O menino tímido, que tinha facilidade com a matemática na escola, que sonhava em ser policial e vivia com a mãe e o irmão mais velho teve a vida precocemente interrompida por uma razão que ainda não se conhece. As peças que faltam para completar este trágico quebra-cabeças devem em breve ser encontradas e encaixadas pelos investigadores da Polícia Civil gaúcha, instituição que, mais uma vez, comprova a sua eficiência mesmo diante das limitações que enfrenta devido à crise do setor público do Estado.

OPINIÃO DA RBS



30 DE MAIO DE 2020
+ ECONOMIA

Cultura home office | "A história vai julgar os líderes"

Presidente do conselho de administração da Évora, William Ling foi um dos fundadores do Instituto de Estudos Empresariais (IEE). Em 19 de março, perdeu o pai, Sheun Ming Ling, pioneiro no plantio de soja no Estado. Na mesma data, entrou em isolamento e concluiu que há, sim, uma certeza nesta crise:

- Continuaremos a ser humanos, desejosos de proximidade física.

Isolamento

"Não foi difícil. Começou no mesmo dia da morte do meu pai. Sou muito caseiro, e essa coincidência ajudou no recolhimento. Saí poucas vezes para encontros presenciais. A primeira coisa que fiz foi pensar como poderia ajudar. Apoiamos hospitais e pessoas vulneráveis."

Rotina

"A Évora estava muito bem posicionada e não enfrenta grandes problemas. Nossa maior empresa, a Fitesa, produz não tecidos, usados na confecção de máscaras e material hospitalar. Tivemos demanda ainda maior, e o desafio tem sido organizar a produção para atender aos pedidos e avaliar investimentos."

Leituras e vídeos

"Não sou muito fã de séries e vídeos. A novidade são os inúmeros webinars. Mas continuo me informando primordialmente por meio de veículos da grande mídia nacional e internacional e de jornalistas que considero independentes. Também estou lendo livros sobre história e geopolítica."

Lazer e atividade física

"Sinto falta das aulas de dança (fazia dança de salão), viagens, ir ao estádio. Sou colorado, com direito a camarote no Beira-Rio. Mas organizei melhor as aulas de italiano, que agora faço por vídeo duas vezes por semana. Tenho passaporte italiano. Io sono sposato (?sou casado?) com uma descendente de italianos, e o mínimo que posso fazer é tentar falar a língua. Tenho esteira e faço exercício diariamente."

Aprendizado

"Apesar de participar de muitas reuniões em vídeo, não acho que o novo normal será dominado por esses instrumentos. Uma das poucas coisas que posso afirmar sobre o pós-pandemia é que continuaremos a ser humanos, desejosos de proximidade física. As pessoas não vão a estádios e a shows para ver futebol e ouvir música. Vão para partilhar uma experiência humana."

Reflexões

"Uma das coisas que mais me fizeram pensar foi a importância da liderança em tempos de crise. Como empresário, acho desafiador ter de decidir sobre negócios com um nível limitado, mas suficiente, de informações. Alguns líderes, neste momento, têm de tomar decisões que impactam milhões de vidas, no contexto desconhecido da covid-19. Fico pensando em como deve ser esse processo, como deve ser difícil, inclusive enfrentando fortes pressões. Procuro não julgar. A história vai julgar como os líderes se comportaram nesta crise."

MARTA SFREDO

30 DE MAIO DE 2020
RODRIGO CONSTANTINO

Supremo arbítrio


Um grande debate político dividiu os dois filósofos gigantes gregos. Platão defendeu o conceito de rei-filósofo, enquanto Aristóteles, talvez mais cético com a natureza humana, preferia um governo de leis, não de homens. O estagirita desejava, assim, impedir o arbítrio e a sedução dos homens pelo poder ilimitado. Quando o Ocidente abraça a ideia de império das leis e limites constitucionais está dando razão ao tutor de Alexandre, o Grande.

Infelizmente, é mais fácil defender essa ideia na teoria do que na prática. As instituições, afinal, são formadas por seres humanos imperfeitos. O mecanismo de pesos e contrapesos surgiu para tentar impor freios aos poderosos, de todas as esferas de poder. Pretendia-se, assim, minar a ambição desmedida de uns por meio da paixão de outros, reduzindo o risco de um soberano absolutista.

O vigia maior, sem dúvida, deve ser a Suprema Corte, responsável por fazer valer a Carta Magna de uma nação. A missão precípua do STF é a de guardião da Constituição. Mas, como o poeta romano Juvenal já questionava, quem vigia o vigia? O que acontece quando esses "ungidos", apontados por políticos, excedem suas funções, rasgam as leis que deveriam preservar, sentem-se intocáveis?

Na teoria, cabe ao Senado tanto o filtro da escolha, por meio da sabatina, quanto a possibilidade de retirar os frutos podres, pelo impeachment. Mas é um poder demasiado concentrado no presidente da casa, e cabe perguntar: quando a sabatina é realizada por um Congresso sob mensalão, o que ocorre? Sabemos a resposta na prática: apaniguados petistas e advogados de bandidos tornam-se ministros da mais poderosa instância jurídica no país.

E o risco de abuso se torna crescente. Até vermos, estarrecidos, um inquérito ilegal ser aberto sem objeto definido, transformando seu relator, apontado de forma direta, em vítima, procurador e juiz ao mesmo tempo. É muito poder a quem não merece, e o resultado está aí: um Estado policialesco que invade a casa de cidadãos por críticas aos ministros do STF. É o supremo arbítrio de um STF que virou, certamente, uma vergonha nacional.

RODRIGO CONSTANTINO


30 DE MAIO DE 2020
INFORME ESPECIAL

Um texto do #@%@&*$

"O meu sobrenome, sem uma letra, já é um palavrão", disse a jornalista Tânia Carvalho, às gargalhadas, enquanto relembrava uma história do começo da década de 1970. Ela foi convidada a comparecer à Polícia Federal, em Porto Alegre, depois de dizer ao vivo, no Jornal do Almoço, que os cachinhos de Dom Pedro I eram "um desbunde". Tânia ouviu, entre outras acusações, a de que havia atentado contra um dos símbolos da pátria.

A língua é viva. Hoje, "bunda" e seus derivados não são mais considerados termos ofensivos. Na recente reunião ministerial que virou o assunto do mês, foram pronunciados 37 - esses sim - palavrões, 29 deles pelo presidente da República. Se essa polêmica é nova, estudos sobre o tema não são. Mais do que julgar, me proponho aqui a analisar a origem, a função e os dogmas que cercam o uso de palavras tidas como vulgares.

Uma pesquisa publicada no European Journal of Social Psychology em 2017 concluiu que xingar ajuda a aliviar dores emocionais. Médico e diretor do Instituto do Cérebro da PUCRS, o professor Jaderson Costa da Costa concorda que, em algumas circunstâncias, pronunciar palavras mais fortes gera "um certo prazer e um certo alívio", mas pondera que este não é o melhor jeito de resolver tensões.

Trazendo para o contexto da reunião ministerial, é legítimo considerar a quantidade de impropérios vocalizados por Jair Bolsonaro como sintoma de um nível alarmante de estresse. Apenas como registro, porque não parece ser o caso do presidente, o uso exagerado de palavrões pode estar associado à Síndrome de Tourette - distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado por uma série de tiques motores ou vocais. Um deles, pronunciar incontrolavelmente palavras obscenas ou insultos, está presente em boa parte dos casos. A expressão verbal extrema tem outras e mais amplas conotações.

Para o psicólogo e linguista canadense Steven Pinker, xingar leva nossas faculdades de expressão ao máximo, porque recruta "o poder da combinação da sintaxe, a força evocativa da metáfora e a carga das atitudes, pensadas ou impensadas". Talvez por isso os apoiadores do presidente aplaudam a sua truculência verbal, reconhecendo nela atributos positivos como sinceridade, transparência e coragem. Pinker acredita que a origem do palavrão está ligada à religião e ao mandamento que veda o uso do nome de Deus em vão. Transgredi-lo era a maior das blasfêmias. Mais tarde, o conceito se estendeu a expressões ligadas ao corpo humano e à sexualidade, os vieses mais explorados por Bolsonaro.

O professor do Insper Pedro Burgos buscou outras explicações. Em um artigo publicado em 2008, nos conta que as palavras comuns e suas primas sujas nascem em locais diferentes do cérebro. Enquanto a linguagem "limpa" é da alçada da parte mais sofisticada da massa cinzenta, o neocórtex, os palavrões habitam os porões da cabeça, mais exatamente o sistema límbico, que controla nossas emoções. Quanto mais comum é o uso de palavrões, mais ativa é a parte primitiva do cérebro de quem os diz.

Além disso, o peso das palavras está diretamente ligado ao ambiente nas quais são inseridas. No futebol, não causa choque ou mesmo reação o canto uníssono de 50 mil vozes a adjetivar a mãe de um árbitro. Só recentemente a FIFA começou a fechar o cerco sobre expressões racistas e homofóbicas. Acostumado ao calor dos estádios, o narrador Pedro Ernesto Denardin avalia que o xingamento é uma forma de protesto contra a autoridade, quando uma decisão, ainda que justa, prejudica o time do torcedor.

De certa forma, Pedro Ernesto joga luz sobre a realidade que explica - sem tentar justificar - a postura do presidente na malfadada reunião e as reações polarizadas que se sucederam. Não é de hoje que a dinâmica da política, no Brasil, se aproximou da lógica do futebol, onde a paixão descontrolada alimenta o excesso, enquanto a torcida entoa seus gritos de glória e de guerra.

TULIO MILMAN

sexta-feira, 29 de maio de 2020

O gol de Oldorelino

Oldorelino caminhava lentamente com suas pernas arqueadas. Eram arqueadas não por ele ter sido bom jogador de futebol na juventude. As pernas eram tortas como as de Garrincha por obra dos 75 anos de idade, das doenças dos joelhos e pelos trilhões de passos dados naqueles novecentos meses de vida.
Oldorelino, a princípio, não queria ingressar na grande cancha de futebol de campo, com seus cinquenta metros de largura e cem de comprimento. O campo estava vazio e solitário e fez Oldorelino pensar na frase de García Márquez que lera há pouco: "uma velhice feliz é um honroso pacto com a solidão".
Mas algo misterioso fez Oldorelino entrar em campo, mesmo sem uniforme, chuteiras, companheiros de time ou torcida. Ele lembrou que nunca fora bom jogador. Menino, aguardava, humilhado, ser dos últimos a serem escolhidos para a pelada na calçada. Muitas vezes era mandado para o gol ou para o banco de reservas. Perna-de-pau, ficava quieto, sabendo que de nada adiantaria reclamar.
No fundo o que fez Oldorelino entrar em campo foi uma velha bola, algo murcha, que estava perto da bandeirinha de escanteio. Ele foi até ela e conseguiu dar-lhe um chute. A bola ainda rolava. Meio devagar, mas rolava. Ele foi atrás dela e, com outro chute, aproximou a bola da goleira vazia. Antes de chutar a gol, resolveu ir chutando a bola até próximo da outra goleira.
Chutava e ia atrás, dando passes para si mesmo e gostando de ver que ainda podia bater uma bolinha. Num determinado momento resolveu fazer um longo lançamento para si próprio, em direção ao gol. Lembrou dos lançamentos de quarenta metros do tricampeão Gerson, aquele que levava vantagem em tudo e que depois ficou em desvantagem absoluta, quando foi promulgada a infeliz Lei de Gerson, que incrimina milhões de brasileiros até hoje.
Oldorelino foi caminhando até onde estava o balão meio murcho e chegou, animado, a apressar um pouco o passo. Nem achou estranho ter feito um lançamento para si. No gramado vazio, até podia. Lembrou do amigo Ruivo, que lançava a bola para si mesmo quando jogava futebol no Campo dos Cadetes, no Parque da Redenção. Lançar para si próprio, por que não? Quando os outros não dão a assistência ou quando o campo está vazio?
Ao chegar próximo da bola Oldorelino concentrou-se, colocou as mãos nos quadris, olhou fixo para ela e depois para a goleira deserta. Não podia errar. Queria chutar a gol e marcar. Foi o que fez, depois de alguns passos rápidos. Um chute certeiro mandou a bola para o fundo da rede, como deve ser.
Feito o antigo goleador Quarentinha, Oldorelino não comemorou o gol. Ficou impassível, diante do campo vazio e das arquibancadas solitárias como escolas nos domingos.
Mas ele sentiu-se feliz por dentro. Sorriu para dentro, pensou que ainda podia fazer gols, mesmo com bola meio murcha, especialmente em campos vazios, com invisíveis goleiros e zero jogadores e torcida. Ele não precisava de mais nada além daquilo.

Lançamentos

cult - livro entrevista com o vampiro, de anne rice
cult - livro entrevista com o vampiro, de anne rice

REPRODUÇÃO/DIVULGAÇÃO/JC
  • Entrevista com o vampiro (Rocco, 320 páginas, R$ 54,90, tradução de Clarice Lispector)(acima), da consagrada escritora norte-americana Anne Rice, traz em nova edição, em capa dura, o melhor livro da autora, a rainha dos vampiros. Críticos consideram o livro a mais voluptuosa e sedutora história de horror de nosso tempo.
  • Ana e o Mundo do Avesso (Paulus, 32 páginas, R$ 25,00), da psicóloga, artererapeuta, educadora e escritora Mônica Guttmann, mostra Ana, uma menina esperta e sensível, que tenta descobrir qual seu lugar no mundo. Viaja até o Mundo do Avesso em busca de respostas, nem sempre fáceis de encontrar.
  • Migração e tolerância (Record, 96 páginas, R$ 29,90, tradução de Eliana Aguiar e Alessandra Bonrruquer), do genial italiano Umberto Eco, reúne quatro ensaios sobre temas atuais: "Eliminar o racismo não significa demonstrar e se convencer de que os outros não são diferentes de nós, mas compreendê-los e aceitá-los em sua diversidade".

A propósito...

Oldorelino pensou que nem todos na vida, só pouquíssimos, nascem com os dons divinos e reais de um Pelé. Mas pensou que não existiria Pelé jogando sozinho, sem os Coalhadas, os pernas-de-pau e os medianos que completam os times. O que seria do azul se todos gostassem do vermelho, pensou, lembrando a velha propaganda de tinta. Pensou que tem mais gente, no futebol, que gosta de vermelho do que de azul, mas que isto é normal. Os azuis são rivais e coirmãos simpáticos e, normalmente, valorizam as árduas vitórias dos vermelhos. Isso ao menos no passado. Oldorelino saiu do gramado feliz, pensando que ainda estava no jogo. No jogo da vida real, pelo menos. E nos jogos da imaginação e dos sonhos.
Jaime Cimenti