terça-feira, 30 de junho de 2020



30 DE JUNHO DE 2020
DAVID COIMBRA

Quanto custa uma consciência

Um dos tesouros da história do Brasil é a gravação da reunião em que foi decidida a instauração do AI-5, em dezembro de 1968, no Palácio das Laranjeiras, sede do governo do Rio.

É uma preciosidade. Pode-se ouvir com clareza a manifestação de cada um dos ministros presentes. Como se sabe, o único que se opôs ao ato foi o vice-presidente Pedro Aleixo. Alguém perguntou se ele não concordava com o AI-5 por não confiar "nas mãos honradas do presidente Costa e Silva". Aleixo respondeu:

"No presidente eu confio, eu não confio é no guarda da esquina".

Um visionário.

Os outros presentes, todos, chamaram o ato pelo que era: a instituição da ditadura. Mas não a lamentaram. Ao contrário, aplaudiram-na. Delfim Netto, da Fazenda, chegou a dizer que as medidas não eram suficientemente duras. E o ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, pronunciou a grande frase do encontro, uma espécie de resumo do Brasil. Ele disse:

"Às favas, neste momento, todos os escrúpulos de consciência!".

Se a reunião ministerial fosse do atual governo, os escrúpulos não seriam mandados "às favas"; seriam mandados para um lugar mais sujo. Aliás, eis algo interessante a fazer: uma comparação formal entre duas reuniões ministeriais gravadas, a de 13 de dezembro de 1968 e a de 22 de abril de 2020. Em ambas, os presidentes são militares, em ambas os temas debatidos são antidemocráticos, mas o nível da de 1968 é de general, e o da de 2020 é de capitão reformado.

"Às favas todos os escrúpulos de consciência!", gorjeou o Passarinho. Uma sentença perfeita não só para o momento como para o lugar. Essa máxima poderia ser a divisa da bandeira brasileira, em vez daquele tão pouco praticado lema positivista, "ordem e progresso".

Porque é isso que nós fazemos a todo instante, nós brasileiros: nós estamos sempre mandando os escrúpulos de consciência às favas. Muitos criticam Bolsonaro por incentivar aglomerações durante a pandemia, outros já criticaram Lula por aliar-se afetuosamente a Maluf, deputados são criticados por trocar votos por cargos, prefeitos, governadores, juízes, todas as autoridades são criticadas a todo momento, e quase sempre com razão, porque, volta e meia, elas estão mandando os escrúpulos às favas.

Mas a população brasileira, o povo trabalhador, o pagador de impostos, esse que protesta contra a corrupção e que pragueja contra as elites, o que ele faz, em meio à crise produzida pela peste? Ele não precisa, mas ele toma o auxílio emergencial que o Estado oferece para os necessitados. Não foram centenas de brasileiros que fizeram isso, não foram milhares; foram centenas de milhares. Pessoas perdendo empregos, empresas fechando, o país passando por dificuldades, e o que eles dizem?

"Às favas todos os escrúpulos de consciência!".

Veja como os preços caem a cada ano no Brasil: hoje, você compra uma consciência com R$ 600.

DAVID COIMBRA


30 DE JUNHO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

AUXÍLIO PARA QUEM PRECISA

São assustadoras as conclusões do relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) que apontam um enorme número de pessoas no Brasil que não teriam direito ao auxílio emergencial mas mesmo assim conseguiram o benefício de forma indevida. O recurso de R$ 600, que deveria ser uma ajuda destinada apenas aos mais necessitados, que perderam grande parte de sua pequena renda devido à pandemia, acabou no bolso de cidadãos que estão longe de passar qualquer dificuldade e, pelo contrário, em alguns casos até ostentam certos luxos inalcançáveis para a esmagadora maioria da população. Pelo levantamento do TCU, cerca de 620 mil benefícios foram concedidos de maneira irregular para empresários, familiares de políticos e até mortos, um desvio que, se não for interrompido, pode gerar prejuízo de R$ 1 bilhão aos cofres públicos.

O relatório que embasou a reportagem que foi ao ar no domingo à noite no programa Fantástico e publicada em GaúchaZH revela o descontrole na concessão do benefício. Uma lástima para uma iniciativa que, em si, é altamente meritória. As fraudes explicitam uma falta de controle gritante e liberalidade demasiada dos filtros que deveriam fazer a seleção de quem tem direito à verba e quem não tem. Compreende-se o desafio que foi colocar rapidamente para funcionar um programa que vem garantindo um amparo essencial a cerca de 50 milhões de brasileiros. Mas isso não significa que não seja necessário acelerar o aperfeiçoamento dos mecanismos de inspeção, uma vez que, infelizmente, ficou provado ser ingenuidade esperar que somente a consciência individual assegure que parte dos recursos deixe de ser canalizada para brasileiros que não necessitam do dinheiro, enquanto outros que estariam enquadrados como possíveis beneficiários relatam grande dificuldade para conseguir o auxílio emergencial.

A reportagem, apesar do comprovado interesse público, ainda foi alvo de censura prévia que postergou sua divulgação, mas que acabou revertida. Cabe agora às autoridades responsáveis pelo programa encontrar meios para que todos os recursos pagos indevidamente sejam devolvidos, enquanto também é imperioso trabalhar para aprimorar os crivos de definição dos benefi- ciários, uma forma de evitar um desperdício ainda maior de dinheiro do contribuinte que, por exemplo, chegou às mãos de mais de 230 mil empresários que não se encaixam nos critérios definidos e outras 15,8 mil pessoas com renda acima da mínima estabelecida para terem acesso à ajuda. Afinal, o auxílio será prorrogado, conforme anunciou o governo federal, o que impõe ter um controle mais rígido para evitar novas fraudes.

Apesar do grande avanço em algumas frentes ligadas à tecnologia, como a urna eletrônica, em que o país é vanguarda mundial, o Brasil ainda deixa a desejar em sistemas de identificação e cadastro da população. Enquanto na Índia, com 1,3 bilhão de residentes, quase todos os habitantes foram recadastrados de forma biométrica pela íris e pela face, criando uma espécie de carteira de identidade digital, o Brasil descobriu em 2020, com a chegada da crise sanitária, a existência de mais de 40 milhões de desvalidos invisíveis aos olhos do Estado por não terem CPF regular, conta em banco ou acesso à internet. É uma situação que escancara o quanto o país precisa conhecer melhor seus cidadãos.



30 DE JUNHO DE 2020
INCONSISTÊNCIAS NOS TÍTULOS

Currículo desgasta ministro da Educação

As revelações de que o novo ministro da Educação, Carlos Decotelli, incluiu informações equivocadas em seu currículo geraram incertezas sobre a permanência dele no Ministério da Educação (MEC).

A nomeação foi publicada em edição extra do Diário Oficial na quinta-feira, após anúncio feito pelo presidente Jair Bolsonaro. O governo planejava solenidade de posse para hoje, mas a realização do evento não estava confirmada até o fechamento desta edição.

"Em nenhum momento a Secom (Secretaria de Comunicação) confirmou o evento à imprensa e, até agora, não há previsão para essa cerimônia", informou ontem o Planalto sobre a posse.

Aliados de Bolsonaro relataram que o mais provável é que a cerimônia ocorra só na semana que vem, após pente-fino no currículo do novo ministro. Segundo relatos à agência de notícias Folhapress, Bolsonaro ficou incomodado com a repercussão negativa de erros no currículo de Decotelli e de acusações de plágio. A nova análise no histórico do ministro, ordenada pelo presidente, serve para apurar se há mais inconsistências. A ala militar também criticou os erros, uma vez que foi fiadora de sua indicação. O Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) entrou com representação pedindo apuração do órgão de possíveis prejuízos ao erário da nomeação do novo ministro.

Declaração

Constava no currículo de Decotelli um doutorado pela Universidade Nacional de Rosario, da Argentina, mas o próprio reitor da instituição, Franco Bartolacci, negou que ele tenha obtido o título. Há ainda sinais de plágio na sua dissertação de mestrado, e a Universidade de Wuppertal, na Alemanha, informou que o novo ministro não possui título da instituição, ao contrário do que constava em seu currículo.

À noite, Decotteli falou com a imprensa na porta do ministério e afirmou que se reuniu com Bolsonaro, ontem, e que, no encontro, foi questionado sobre o currículo. Perguntado se seguirá no cargo, respondeu que sim.

- Ele queria saber detalhes sobre a minha vida de 50 anos como professor em todas as entidades do Brasil - disse Decotelli à Globonews.

Segundo o ministro, o presidente quis saber o "lastro de vida" dele.

- Ele perguntou: Como é essa questão de detalhe acadêmico e doutorado, pós-doutorado, pesquisa de mestrado? Como é essa estrutura de inconsistência? Então, expliquei - acrescentou o ministro.

Segundo Decotelli, o assunto do doutorado está "resolvido". A respeito da denúncia de plágio no mestrado, o titular foi questionado:

- Não houve plágio, então, ministro?

E respondeu: - Não. O plágio é considerado quando o senhor faz control C, control V. E não foi isso.

Após a entrevista, Bolsonaro se manifestou em rede social: "Desde quando anunciei o nome do Professor Decotelli para o Ministério da Educação só recebi mensagens de trabalho e honradez. Por inadequações curriculares o professor vem enfrentando todas as formas de deslegitimação para o Ministério. O senhor Decotelli não pretende ser problema para a sua pasta (Governo), bem como está ciente de seu equívoco. Todos aqueles que conviveram com ele comprovam sua capacidade para construir Educação inclusiva e de oportunidades para todos", escreveu o presidente.

30 DE JUNHO DE 2020
NÍLSON SOUZA

Renascimento pós-pandemia


Sei que meu otimismo beira a ingenuidade, mas estou a cada dia mais convencido de que a pandemia, em paralelo ao sofrimento que causa, também está fazendo a Terra ficar redonda novamente e colocando o obscurantismo no seu devido lugar. Acuada pelo inimigo comum, parcela expressiva da humanidade volta-se para a ciência, para a colaboração e para a valorização da democracia - ainda que persistam no mundo preocupantes focos de negacionismo, autoritarismo e falta de compaixão.

É inquestionável que sairemos quebrados desta crise, pois a paralisação das atividades econômicas e o desemprego certamente condenarão milhões de indivíduos a um período prolongado de privações. Já há, porém, sinais visíveis de adaptação aos novos e desafiadores tempos que virão. Isoladas pelo medo do contágio, as pessoas estão se descobrindo menos egoístas e consumistas, e ao mesmo tempo mais cooperativas, criativas e fraternas.

Não me arrisco a dizer que sairemos dessa encrenca muito melhores como seres humanos, pois a história da nossa espécie mostra o quanto somos suscetíveis a recaídas. Mas creio firmemente que, depois da catástrofe, ingressaremos num período de renascimento moral e cultural, caracterizado pelo amor à vida e à natureza, pela busca do conhecimento e pelo respeito ao outro.

Como o vírus não faz distinção entre povos ricos e pobres, nem entre nacionalidades, raças e religiões, fica escancarado que somos todos parentes e que estamos no mesmo barco. Só nos resta, portanto, remar juntos (por enquanto, com o devido distanciamento social) para sairmos da tormenta e voltarmos a águas tranquilas.

Está bem, barco talvez seja uma imagem demasiado reducionista. Segundo o Woldometers, um site perturbador que atualiza dados mundiais em tempo real, éramos 7.794.469.895 humanos no exato momento em que digitei esta linha. Mesmo com a pandemia, os algoritmos mostravam mais do que o dobro de nascimentos por segundo em relação às mortes. Em breve seremos 8 bilhões de sobreviventes - a maioria conscientes de que a saúde é a nossa maior fortuna.

NÍLSON SOUZA

30 DE JUNHO DE 2020
CHAMOU ATENÇÃO

Menino salva a vida da bisavó

Passava das 8h do dia 21 deste mês, um domingo, quando Júnior Nunes Wagner, 13 anos, foi acordado pela movimentação atípica em casa. Desceu as escadas rapidamente e levou um susto ao encontrar a bisavó Carlina Haas Scharnberg, 91, deitada no chão da cozinha. Pensou que ela havia morrido ali, dentro da residência, localizada no município de Vale Verde, no Vale do Rio Pardo. Sem ter muita noção do tempo despendido naquele momento, o menino recorda que atendeu o pedido da mãe, a assistente social Juliana Lopes Nunes Scharnberg, para iniciar as manobras de massagem cardíaca na idosa.

- Fui lá, fiz, e ela começou a respirar - afirma o adolescente, acrescentando que levou poucos minutos até reanimar a bisavó, que foi encaminhada para um hospital de Venâncio Aires, onde recebeu o diagnóstico de infarto, segundo informação da família.

O procedimento de reanimação do qual Júnior lançou mão e que salvou a idosa foi aprendido durante o curso de bombeiro mirim oferecido pelos Bombeiros Voluntários do município vizinho de Passo do Sobrado. Iniciadas ainda em 2019, as aulas foram incentivadas por Juliana.

- No começo, ele não estava muito empolgado com o curso, mas o ato de ajudar a bisavó o fez perceber quão importante é ter conhecimento. Tive muito orgulho de ver a postura dele naquele momento - emociona-se a mãe.

Se, no início, o curso não empolgou muito Júnior, depois do ocorrido em casa o adolescente se animou. Agora, garante que, apesar da suspensão temporária dos encontros mensais do grupo mirim, por conta da pandemia, tudo o que aprendeu foi de grande valor:

- Aprendi uma pequena lição: ensinamentos certos na hora certa podem salvar vidas.

Um dia após a internação, Carlina passou por um cateterismo. No último fim de semana, a idosa retornou para casa e, ontem, foi ao hospital para uma revisão, de acordo com a família.

CAMILA KOSACHENCO

segunda-feira, 29 de junho de 2020


29 DE JUNHO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

BONS EXEMPLOS NA EDUCAÇÃO GAÚCHA

Encurtar a distância entre o discurso eleitoral, que invariavelmente coloca a educação como prioridade, e a realidade, que nos revela escolas degradadas, professores desmotivados e alunos despreparados, é um desafio constante. A presença de Carlos Barbosa, Farroupilha e Ijuí entre as 104 cidades brasileiras que receberam o selo Bom Percurso na pesquisa Educação que Faz a Diferença é um sinal de que existem soluções possíveis, especialmente no ensino público, ainda mais deprimido na comparação com o setor privado.

Iniciativa do Instituto Rui Barbosa, que congrega os tribunais de contas brasileiros, o reconhecimento ganha importância ainda maior no momento em que tanto se discute a relação entre educação, saúde e economia. Não há dúvida de que a educação, sempre integrada aos outros processos, é a base de tudo, meio insubstituível pelo qual o indivíduo e a sociedade conquistam o acesso à dignidade e ao bem-estar. Por isso, compartilhar referências de boas práticas é um serviço inestimável, pelas possibilidades de reprodução dos modelos vitoriosos e construídos, muitas vezes, sem recursos financeiros e humanos abundantes. Mesmo em contextos desafiadores e complexos, a evolução dos alunos e as boas práticas de gestão ajudaram a colocar os três municípios gaúchos na lista dos que têm lições a oferecer.

Se o reconhecimento da qualidade das escolas de Carlos Barbosa, Farroupilha e Ijuí é motivo para celebrar, por outro lado nos oferece a oportunidade de refletir sobre os gigantescos desafios de educar cidadãos em um mundo em acelerada transformação, no qual o saber se abre em frentes multidisciplinares, permeadas pela tecnologia e pela mudança radical no papel do professor, que deixa de ser propagador vertical de conhecimento para se transformar em moderador e organizador da avalanche de informações disponíveis aos estudantes.

A educação é um processo bem mais amplo do que a interação em sala de aula, seja ela física ou virtual. Mas não resta dúvida de que, justamente por isso, as definições contemporâneas do papel da escola necessitam de mais debate e de menos embate. Só uma visão construtiva, agregadora e focada no aluno e na sociedade garantirão a eficácia de uma vacina essencial, a que nos protege contra a desinformação e contra os arroubos autoritários que hoje, infelizmente, ocupam o vácuo deixado pela falta de educação, no sentido mais amplo possível da palavra. Também por isso, apontar os bons exemplos é um dever democrático e uma contribuição a ser aplaudida.



29 DE JUNHO DE 2020
DAVID COIMBRA

Prazeres adiados

Um dos textos de que mais gosto do Machado de Assis é O Alienista. É um conto. Tenho-o em um volume intitulado Papéis Avulsos. Não é bom nome de livro, mas, bem, o que interessa é o autor, o nosso "Bruxo do Cosme Velho".

Nesse conto, Machado está no auge da sua narrativa irônica. A história flui fácil desde o início, não dá vontade de parar de ler. O leitor é capturado já na abertura do primeiro capítulo, "De como Itaguaí ganhou uma casa de orates". "Orate" é um desusado sinônimo para louco. Casa de orates, portanto, é aquilo que depois se chamou de "hospício" ou "manicômio".

O alienista é o médico Simão Bacamarte, um homem para quem só a ciência importa. Confira esse trecho do qual a malícia machadiana escorre por entre as vogais:

"Aos 40 anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de 25 anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta a dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas - únicas dignas da preocupação de um sábio - D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte".

Não é uma delícia?

Queria indicar O Alienista como leitura de isolamento social, mas farei mais: indicarei não um, e sim DOIS alienistas. Porque há outro O Alienista que pede leitura. É o romance do americano Caleb Carr. Não se trata de um livro novo, é dos anos 1990. A novidade é que a Netflix lançou, tempos atrás, uma série sobre esse O Alienista. Assisti, agora, nos meus dias de confinamento, e gostei demais. É uma história de mistério, sombria e densa, que se passa na Nova York do  século 19.

Então, temos aqui três indicações: um conto, um romance e uma série, todos com alienistas oitocentistas.

No texto de Machado, seu alienista fica em Itaguaí. No de Carr, o alienista vai para Boston, onde morei, e de lá segue para uma cidade próxima, Newton, a fim de proceder a uma investigação.

"Enquanto passávamos pelas ruas de Newton, uma comunidade tão pitoresca e monótona quanto qualquer uma que se podia encontrar na Nova Inglaterra, comecei a experimentar a sensação desconcertante e familiar de estar acuado por ruas estreitas e mentes tacanhas, uma ansiedade que me consumira com frequência durante o tempo que passara em Harvard", relatou o narrador da história de Caleb Carr.

Conheci Newton. Fica perto de onde eu morava. É uma cidadezinha pitoresca, como descreveu Caleb Carr, mas não monótona. Pacífica, talvez. Monótona, eu não diria. As ruas são limpas e bonitas, as casas são elegantes. Os moradores, educados e sorridentes. Lá, no número 22 da Newton Center, ainda funciona o Tartufo, um dos meus restaurantes favoritos. É um italiano genuíno, que serve pratos que aproveitam os produtos típicos da região. O meu preferido era o ravióli de lagosta, que comia entre suspiros.

Eis, portanto, a quarta dica dessa crônica. Vá a Newton, conheça uma autêntica comunidade da Nova Inglaterra e jante no Tartufo. Mas esse, claro, é um prazer para depois da peste. Que estranho tempo, este nosso, de temores presentes e prazeres adiados.

DAVID COIMBRA

29 DE JUNHO DE 2020
ARTIGOS

UM "NOVO NORMAL" PARA NOS PROTEGER DE PANDEMIAS


Somos 7,8 bilhões de pessoas vivendo em um mundo globalizado. Apesar da desigualdade social abissal de nossas sociedades, somos todos iguais, compartilhamos e dependemos da mesma arca chamada Terra. Porém, o crescimento explosivo da nossa população nas últimas décadas tem provocado uma exploração insustentável da natureza. Entre as inúmeras agressões ambientais que cometemos, a degradação dos ecossistemas naturais e a caça, captura, aprisionamento, venda, uso como pets e consumo de animais selvagens nos põem em contato com vírus e bactérias que viviam em harmonia com seus hospedeiros silvestres. 

Como o nosso corpo não foi treinado para lidar com esses microrganismos estranhos, corremos o risco de que eles sejam bastante agressivos para nós. Vírus que atacam o aparelho respiratório e que são transmitidos de uma pessoa para outra podem ser espalhados rapidamente pelo globo terrestre por viajantes infectados. É exatamente isso que está acontecendo com o coronavírus causador da covid-19.

Assim como adoecemos ao entrarmos em contato com esses novos microrganismos, também levamos a morte para os animais silvestres quando deixamos os nossos patógenos nos ecossistemas naturais que invadimos. Esse é um sério problema, inclusive, dentro da nossa própria espécie. Indígenas que nunca tiveram contato com a maioria das nossas doenças são muito mais sensíveis do que as pessoas de nossa cultura. Infelizmente, a história da humanidade está repleta de exemplos de culturas tradicionais dizimadas ao redor do mundo por doenças levadas pelos "colonizadores".

A covid-19 nos ensina muitas lições. Uma delas é que a única maneira de reduzirmos o risco de novas pandemias é a construção de uma sociedade que respeite a natureza acima de tudo e na qual todo ser humano tenha uma vida digna. Como quase sempre somos os únicos responsáveis pelos nossos problemas de saúde, está na hora de vivermos um "novo normal" e escrevermos uma história que, finalmente, faça jus ao Homo sapiens ("homens sábios"). 

JÚLIO CÉSAR BICCA-MARQUES, PROFESSOR DA ESCOLA DE CIÊNCIAS DA SAÚDE E DA VIDA DA PUCRS


29 DE JUNHO DE 2020
POLÊMICA

Ministro da Educação nega plágio

Titular do MEC disse que revisará dissertação e explicou os motivos de não ter defendido doutorado em universidade argentina
O Ministério da Educação (MEC) divulgou nota na noite de sábado nota na qual afirma que o novo ministro, Carlos Alberto Decotelli, nega as acusações de que teria cometido plágio em sua dissertação de mestrado e afirmou que revisará o trabalho. Ele também sustentou o curso de doutorado que fez na Argentina, com tese que não chegou a defender, de modo que não obteve o título de doutor.

Reportagem do site UOL publicada no sábado sugere que o ministro teria copiado ao menos quatro trechos de outras dissertações de mestrado e textos acadêmicos na introdução de seu trabalho de mestrado, apresentado em 2008 para a FGV Rio de Janeiro, com o título "Banrisul: do PROES ao IPO com governança corporativa".

Os trechos não são colocados entre aspas, o que é obrigatório em trabalhos acadêmicos quando há citações de outros textos. Também não há referência ao autor logo quando termina a frase. Ao final da o texto, Decotelli faz referência apenas a dois dos quatro trabalhos com trechos idênticos.

Na sexta-feira, o professor Thomas Conti, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), mostrou que a dissertação de Decotelli também tem trechos idênticos aos de um relatório da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) do mesmo ano. O relatório também não foi citado por Decotelli nem sequer consta da bibliografia. Na nota emitida pelo governo federal, o MEC chama de "ilações" as afirmações de que o ministro cometeu plágio, e diz que pode ter havido falha técnica ou metodológica.

"O ministro destaca que, caso tenha cometido quaisquer omissões, estas se deveram a falhas técnicas ou metodológicas. Informa também que, ainda assim, por respeito ao direito intelectual dos autores e pesquisadores citados, revisará seu trabalho e que, caso sejam identificadas omissões, procurará viabilizar junto à FGV uma solução para promover as devidas correções."

Título

Quando anunciado como novo titular da pasta da Educação, Decotelli foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro como doutor pela Universidade de Rosário (UNR), na Argentina. O reitor da instituição, no entanto, afirmou na sequência que Decotelli "cursou o doutorado, mas não finalizou, portanto não completou os requisitos exigidos para obter a titulação de doutor".

Em nota, o MEC ressalta que Decotelli foi aprovado em todas as disciplinas e que, por compromissos no Brasil e falta de recursos financeiros, o agora ministro precisou retornar ao país sem o título. "Ao final do curso, apresentou uma tese de doutorado que, após avaliação preliminar pela banca designada, não teve sua defesa autorizada. Seria necessário, então, alterar a tese e submetê-la novamente à banca. Contudo, fruto de compromissos no Brasil e, principalmente, do esgotamento dos recursos financeiros pessoais, o ministro viu-se compelido a tomar a difícil decisão de regressar ao país sem o título de Doutor em Administração", diz o MEC.

Pós

Sem o título de doutor, Decotelli não poderia cursar o pós- doutorado na Alemanha, conforme foi dito pelo presidente no momento do anúncio.

Em nota, o ministério afirmou que o ministro desenvolveu uma pesquisa sobre sustentabilidade na automação de máquinas agrícolas na instituição estrangeira, pela qual não recebeu títulos.

"A universidade alemã aceitou apoiar o projeto, considerando a relevância do tema, a conclusão e a aprovação em todos os créditos obtidos no curso de Doutorado em Administração na Universidade de Rosário e seus 30 anos de atuação como conceituado professor no Brasil", afirma o ministério. "Em abril de 2017, recebeu documento que atesta o registro de seu trabalho. O ministro ressalta que não recebeu títulos em decorrência desta pesquisa", completa o texto do MEC.

Depois das acusações, o ministro alterou seu currículo acadêmico, "de forma a dirimir quaisquer dúvidas", de acordo com o ministério.

29 DE JUNHO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO

Polifonia


Democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras. Nem mesmo o homem que tornou esse aforismo famoso, Sir Winston Churchill, escapou da recente onda iconoclasta. No início do mês, durante protestos em apoio ao movimento Black Lives Matter em Londres, a imponente estátua de Churchill instalada em frente ao Parlamento britânico foi vandalizada - e agora corre o risco de terminar seus dias guardada em um museu.

Churchill foi uma das figuras centrais na vitória dos Aliados durante a Segunda Guerra, mas, em quase 70 anos de vida pública, não se manteve imune a erros e contradições. Quando, no final da guerra, celebrou a vitória da democracia, certamente não estava pensando que todos os cidadãos do mundo eram iguais e desfrutavam dos mesmos direitos. Pelo menos não tão literalmente quanto é legítimo reivindicar em 2020. Qual seria sua posição em relação ao Brexit ou à crise migratória? Como enfrentaria os protestos contra o racismo?

Também não imagino como um político que nasceu no século 19 reagiria ao ver o avanço das teorias conspiratórias e dos "fatos alternativos" no espaço público. Uma cena que ilustra como a democracia tornou-se complexa - e penosa - aconteceu na semana passada, na Flórida, durante um debate em um conselho distrital a respeito do uso obrigatório de máscaras. Cidadãos que são contra a medida tiveram a chance de subir à tribuna para, democraticamente, exporem seus pontos de vista. O que se viu a seguir foi um desfile de teses delirantes, ora embasadas em inclinações políticas (o presidente americano, como o nosso, achou muito inteligente e razoável empurrar um problema de saúde pública para o terreno do embate ideológico), ora em fanatismo religioso.

O ataque às estátuas e a reivindicação do direito de negar a ciência estão entre os muitos desafios à democracia com os quais estamos tendo que aprender a lidar em tempos de "polifonia" (muitas vozes falando ao mesmo tempo) e "monologismo" (um lado negando a legitimidade do outro). Até onde vai o meu direito à liberdade quando ele ameaça o bem-estar coletivo? Como pontos de vista antagônicos podem conviver antes que se chegue a um consenso? Como ouvir alguém dizer ou fazer algo que você considera absurdo e continuar defendendo valores essenciais para a democracia?

Ninguém disse que era fácil. Ninguém avisou que seria tão difícil.

CLÁUDIA LAITANO

sábado, 27 de junho de 2020



27 DE JUNHO DE 2020
LYA LUFT

Difícil ser feliz

Nestes dias sombrios, nestes tempos escuros, confusos, politicamente insanos e quanto à saúde do mundo mais confusos ainda, perigosos, assustadores - ou somos todos uns bobos manipulados??? -, parece até coisa de Pollyanna falar em ser feliz.

Parece mais um insulto, como dizer ao quase enforcado no cadafalso que assobie um sambinha. Está difícil. Estamos nervosos, irritados, assustados, ou fingindo não ser nada de mais e saindo às ruas sem máscara nem cuidado, todo mundo se contaminando, a covid piorando por quase toda parte, e a gente fazendo de conta que não é nada.

Ando cansada dessa loucura. Cansada do nosso mau humor, irritação, medo e agressividade ou falsa alegria porque temos medo. Me faltam palavras boas, bonitas, tranquilizadoras, porque está tudo muito ruim mesmo, e nem bandeira vermelha ou preta ou dos infernos convence muita gente a se cuidar. A ficar em casa se puder, a usar máscara e álcool gel, a não se amontoar. A não encher a paciência alheia com medos, sustos, fragilidades e humores péssimos.

Está difícil, sim. Nem pensar em ser "feliz", ou alegrinho, ou dançar e cantar, porque ficar meio calminho já é muito.

Além do mais, a política no país está um lixo, uma confusão, uma brincadeira de maus palhaços que nos submetem a caprichos, mentiras, horrores mil, e nem sabemos como reagir ou a quem reclamar.

O que está acontecendo neste país? Neste mundo em que o presidente do dito maior país do mundo brinca de modo sinistro com a peste do século 21? Não sei o que dizer nem a quem reclamar, mas, por favor, vamos procurar um pouco de calma e bom senso.

Meu pai, velho e brilhante advogado, dizia que a lei tem pouco a ver com bom senso. Pode até ser, ele sabia das coisas. A lei não garante a justiça, ok. Mas alguma sensatez, alguma grandeza, alguma bondade (be kind), algum respeito podem nos ajudar a passar por este tempo infernal, no qual talvez não muitos sobrevivam, mas os que sobreviverem terão de ser fortes, justos, iluminados e capazes de levar adiante este mundo em pandemia de doença e de inteligência, de calma, de grandeza.

Sim, hoje não estou boazinha. Eu não sou boazinha. Hoje não estou calma, não quero estar calma, nem parecer madura, ou velha e experiente, ou superior, com todos esses atributos que colocam em cima da figura de alguém velho, maduro, experiente e tudo o mais.

Não sei o que estamos fazendo conosco, nem uns aos outros. Sei que precisamos de solidariedade, camaradagem, rigor nos cuidados e seriedade no modo de encarar essa Peste que assola a humanidade inteira e não está de brincadeira, ah não.

Para que, tudo passado, a gente seja uma humanidade razoável, não um bando de trogloditas agressivos, grosseiros e cruéis.

LYA LUFT


27 DE JUNHO DE 2020
ENTREVISTA - CAROLINA CIMENTI, Correspondente da Globo em Nova York

"É uma honra estar aqui para testemunhar e reportar tudo"

Repórter da Globo desde 2013, a porto-alegrense Carolina Cimenti, 41 anos, é correspondente internacional da emissora em Nova York desde 2016. Presente na cobertura de diversos acontecimentos importantes na América e na Europa, a jornalista estava cobrindo intensamente as eleições norte-americanas quando a pandemia e os protestos antirracistas começaram a se alastrar pelos Estados Unidos.

Neste bate-papo, Carol, que é mãe da pequena Frida e casada com o músico gaúcho Josué Caceres, conta como é estar na linha de frente da informação em um momento como esse.

Nova York já foi considerada o epicentro da pandemia de coronavírus e, nas últimas semanas, foi palco de inúmeros protestos contra o racismo. Como é estar na linha de frente da informação em um momento histórico e sem precedentes como o atual?

São dois sentimentos conflitantes. O repórter sempre quer estar onde as coisas estão acontecendo. Mas quando se trata de uma pandemia, também dá um arrepio na espinha. Estar na cidade onde morreram mais pessoas no mundo com covid-19 chegou a ser assustador. Dava a sensação de que nunca ia acabar. Mas, hoje, dois meses depois, dá para dizer: acreditem, vai passar. Em relação às passeatas e aos protestos antirracistas, depois de cobrir dezenas de assassinatos de homens e mulheres negros desarmados nos últimos anos pela polícia norte-americana, parece ser um momento de despertar. 

Protestos gigantescos, pacíficos e muito bem organizados tomaram conta da cidade. E para quem acha que protesto pacífico não leva a lugar nenhum, essas pessoas, milhares de pessoas, estão transformando a polícia. Há discussão e reforma em vários Estados e, em Minneapolis, onde George Floyd foi assassinado, a polícia vai dar lugar a um novo sistema de segurança público. É um alívio, um respiro, um despertar contra o racismo e contra a violência policial. É uma honra estar aqui para testemunhar e reportar tudo.

Como foi o início da sua trajetória profissional, ainda aqui no Estado?

Eu saí de Porto Alegre com 23 anos, recém-formada (cursou Jornalismo na UFRGS), rumo a Roma, na Itália, para aprender italiano. Era para ser uma viagem de três meses. Se transformou em 12 anos morando fora: em Roma, em Bruxelas, Londres e Nova York. Antes de ir para a Europa, eu tinha trabalhado na (extinta) Rádio Ipanema, na Gazeta Mercantil e no portal Terra. Mas a maior parte da minha formação profissional foi como jornalista freelancer pela Europa e, depois, como correspondente do canal de economia e finanças norteamericano CNBC. Trabalhar como repórter de TV em inglês, aos 20 e poucos anos, me fez abrir os olhos para o seguinte: a gente se impõe muitos limites que não existem formalmente. Nada é fácil, mas nada é impossível também.

Qual é a maior dificuldade de estar longe da sua terra natal?

Neste momento, estar longe da minha família em meio à pandemia. Eu estou fazendo o que amo e onde quero estar. Mas o medo de não estar em Porto Alegre se a minha mãe precisar de mim é aterrador. Eu tento nem pensar muito nisso.

Estando em um país diferente, como o público local lhe recebe para uma entrevista?

Às vezes, com curiosidade e abertura. Outras vezes, com desconfiança. Depende muito da pauta, do momento e da pessoa.

E como é quando os brasileiros lhe reconhecem?

É uma delícia, uma alegria. Mas acontece muito pouco (risos). Esses tempos, uma senhora me reconheceu e me cobrou: "Carolina Cimenti, mas você parece alta na TV!". Eu me desculpei por ser baixinha (risos). Mas olha só, entrevistei a Lady Gaga, em março, e ela tem exatamente a minha altura (1m55cm). Nós temos potencial, apesar de tudo.

Como correspondente, qual reportagem foi a mais difícil de fazer? E qual marcou mais?

Os ataques a tiros, infelizmente muito comuns nos Estados Unidos, são sempre muito difíceis. Agora que sou mãe, então, fico muito mal. Mas acho que a cobertura mais difícil foram os ataques terroristas simultâneos em Paris, em 2015, quando eu estava lá de férias. Só eu, meu telefone e uma história gigante. Deu certo, por isso, estou aqui. As cinco vezes que cobri o Fórum Econômico Mundial foram muito marcantes. É um fórum muito curioso, onde estão os mais ricos e mais poderosos do mundo. Parece outro planeta. Lembro que, no mesmo mês, eu cobri o Fórum, na Suíça, e uma manifestação popular no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. O mundo seria um lugar bem melhor se esses dois grupos tivessem mais contato.

Já trabalhou na Europa e, atualmente, está nos Estados Unidos. Tem o sonho de atuar em outro lugar?

Adoraria trabalhar na África do Sul ou na Índia, países que eu gostaria de conhecer e onde poderia aprender. Mas também adoraria voltar para a Itália um dia.

Como concilia a rotina jornalística com a maternidade?

A Frida (que nasceu em Nova York e está com um ano e meio) é uma menina muito paciente.

Ainda mantém laços com o Rio Grande do Sul? Tem algum familiar aqui ainda?

Muitos laços. Minha mãe, meu irmão e toda a minha família moram aí. Somos três gaúchos no Brooklyn, em Nova York.

AMANDA KHAL DE SOUZA


27 DE JUNHO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

E se não passar?

Estamos há quase quatro meses mergulhados numa pandemia que mudou nossos hábitos, nos impôs restrições, nos distanciou fisicamente e nos colocou frente a frente com nossas fragilidades. Vai ficar por isso mesmo?

Quando iniciou, parecia apenas uma onda gigante e repentina. Se soubéssemos nos manter à tona, boiando sobre ela, obedientes e respeitosos diante do seu tamanho, nada de muito ruim iria nos acontecer e logo reencontraríamos a calmaria.

É o que vem acontecendo nos países europeus, que estão retomando as atividades cotidianas, dando um passo de cada vez. O Brasil, caótico por natureza, vai levar mais tempo, nenhuma novidade. Três, seis, 10 meses? Quando teremos nossa vida de volta?

Talvez nunca, não como era antes. É provável que tenhamos que assimilar que a nossa atual precariedade determinará novos modelos de conduta daqui para frente.

Lavar as mãos, usar máscaras e evitar aglomerações: já estamos nos acostumando. Poderíamos nos acostumar agora com o desprestígio da ostentação e do consumismo delirante. Continuaremos comprando comida, roupas e remédios, precisaremos de um bom teto como sempre precisamos, mas nossos luxos talvez mudem - tomara que mudem. Hora de privilegiar as questões humanas, se soubermos aproveitar a oportunidade.

Não chego a falar de um renascimento espiritual, que soaria pomposo, mas acredito, sim, que a tendência é reavaliarmos nosso estilo de vida. As grandes metrópoles se tornaram zonas de contágio, e um êxodo urbano não seria má ideia: sair em busca de desintoxicação, mais atividades ao ar livre, cidades menores, menos concentração populacional.

A arte também se beneficiará desta pandemia. Não só por sua valorização evidente (o que teria sido de nós sem livros, música e filmes nesse longo confinamento?), mas também pelo surgimento de talentos até então desconhecidos: as pessoas foram obrigadas a descobrir em si algum dom - artes manuais, gastronomia, desenho digital, colagens, fotografia, vá saber quantos outros. A expressão artística poderá ser nossa grande contribuição à humanidade: não voltaremos a ser apenas consumidores de cultura, mas fornecedores também.

Não é se apegando a símbolos de status que prestaremos homenagem à nossa sobrevivência, e sim expandindo nossa criatividade, encontrando os amigos, bebendo e comendo com eles, namorando, celebrando as sensações, não as aquisições. Utilidades práticas seguirão bem-vindas, mas as utilidades emocionais é que definirão nosso bem-estar: meditação para dormir melhor, leitura para mais autoconhecimento, empatia a fim de reduzir desigualdades etc.

Já que esta crise é inevitável, que a gente ao menos transforme nosso espanto em sabedoria.

MARTHA MEDEIROS


27 DE JUNHO DE 2020
CLAUDIA TAJES

Que saudade do Brasil da Tieta

Se tem coisa que todo mundo concorda é que não há como sofrer de tédio no Brasil de hoje. E isso em tempos de se fechar em casa por conta da pandemia. Bem verdade que, se as pessoas saíssem menos, os números da contaminação não teriam subido tanto. Só para reforçar: fique em casa. E, se precisar sair, não se esqueça da máscara. Incrível a quantidade de criaturas que andam por aí com a cara ao vento, como se estivesse tudo normal.

Não está. E vai doer menos se a gente se resignar a aceitar esse novo anormal.

Voltando ao Brasil e à completa ausência de tédio que vivemos. Em um dia desentocam o Queiroz, escondido há mais de um ano na casa do advogado de você-sabe-quem. No outro, o ex-ministro da educação, com caixa baixa mesmo, que xingava e ameaçava geral, sai covardemente fugido do país. Resta esperar que não assuma o cargo no Banco Mundial com um salário de US$ 250 mil ao ano. Incompetência premiada em dólares, os brasileiros não merecem isso. Até a entrega desta coluna, a senhora Queiroz não havia sido localizada. Talento para se esconder é com o clã. E segue o baile. Tem muita coisa para acontecer nos próximos capítulos.

Em uma das zapeadas de um noticiário para outro, que o vício em notícias é outra marca desta época, acabei parando em uma cena de Tieta, a novela de 1989 que está bombando no streaming. É incrível como o Brasil de ontem era bem mais avançado do que o de agora. Se a Globo ou qualquer emissora exibissem no horário nobre de 2020 um programa com os temas tratados em Tieta, o mínimo que a gente veria era a fúria das redes sociais. Tudo em defesa dos valores da família, defendidos na novela por Perpétua, a irmã tão moralista quanto hipócrita da protagonista. Tieta, a novela, assim como o romance de Jorge Amado que a inspirou, fala de aceitação, solidariedade, generosidade, empatia, essas coisas todas que muitos pararam de praticar e, não contentes, passaram a condenar. Tudo em defesa dos valores da família.

Por coincidência, no final de semana passado, a atriz Betty Faria, hoje com 79 anos, deu uma entrevista falando sobre a reprise da novela que estrelou e sobre esse nosso momento de pouca humanidade, para dizer o mínimo. "Penso muito nesse Brasil que estou desconhecendo, com as pessoas divididas, se xingando. O Brasil da dona de casa que botou o filho da empregada no elevador para se livrar dele. O Brasil de um ?homem de bem? que não respeita a dor de um pobre homenageando o filho morto pela peste e derruba cruzes com raiva. O país andou para trás, as pessoas estão doentes para além da pandemia, inseguras, com medo. Por que tanto ódio? Esse Brasil atual me assusta".

Betty Faria foi uma mulher livre, que fez da sua história o que bem quis. Então, aos 72 anos, de biquíni na praia, sofreu um linchamento virtual nas redes. "Quem fez isso é atrasado, sem noção! Todo mundo envelhece. Falaram: ?Olha a velha?. São uns babacas, tenho até pena de quem pensa assim." Coerente com a própria biografia, e muito a propósito desse mês de junho que promove o orgulho da diversidade para tentar arejar certas cabeças, falou do papel que gostaria de interpretar: "A mãe de uma travesti ou transexual. Como são, psicologicamente e emocionalmente, as mães de filhos que passam por tanto sofrimento, preconceito e violência?".

Betty, que continua Tieta na forma de ver o mundo, disse que "a sociedade precisa gostar mais das mulheres". Fato. E também precisa gostar mais das bichas, das sapatonas, dos meninos que preferem balé a futebol, das meninas que preferem futebol a balé. De quem não é branco, de quem é índio, de quem tem deficiência, de quem não nasceu no centro. Das pessoas mais velhas, das pessoas doentes. Será que a gente consegue voltar a 1989?

Uma coisa é certa. No Brasil de 2020, o nome da novela não seria Tieta. Seria Perpétua.

CLAUDIA TAJES



27 DE JUNHO DE 2020
CAPA

Amor maior do que os medos

No final de semana em que se celebra o Orgulho LGBT+, mães contam como enfrentam lado a lado com seus filhos o preconceito e se dão as mãos em uma rede de afeto

A primeira vez que o Mães pela Diversidade abriu a Parada Livre de Porto Alegre foi em 2015. Eram apenas três mulheres, que enchiam os pulmões para gritar por seus filhos: Tire seu preconceito do caminho, porque vamos passar com nosso amor. O ano também marcou o nascimento do grupo no Estado, inspirado no mesmo movimento que vinha fazendo barulho no centro do país.

Uma daquelas mães era Renata dos Anjos, que segue à frente da vertente gaúcha da organização até hoje. Com orgulho, ela contabiliza, neste final de semana em que é comemorado o Dia do Orgulho LGBT+, o crescimento do projeto cinco anos depois. São mais de 150 mulheres participantes por todo o Rio Grande do Sul:

- Costumo dizer que somos uma enorme rede de afeto. Estamos dispostas a mudar a sociedade e avançamos, mas temos muito trabalho ainda. Somos ambiciosas.

O grupo reúne mães com filhos LGBT+ e opera como apoio e conexão para aproximar quem tem histórias semelhantes e acolhe famílias que precisam de suporte emocional. No caso de Renata, a sexualidade da filha nunca foi tabu dentro de casa. Aos 14 anos, Flora, hoje com 25, contou que estava apaixonada por uma menina. E nada mudou entre elas. Mas a geógrafa se deu conta de que esse tipo de relação estava longe de ser regra - e o choque veio quando viu amigas da filha serem expulsas de casa por se assumirem lésbicas.

Renata sentiu-se impelida a fazer algo para ajudar as famílias. Em uma busca na internet, deparou com o movimento Mães pela Diversidade de São Paulo. Estreitou laços com as paulistas e, na sequência, foi desafiada a trazer a iniciativa para o Rio Grande do Sul.

- Para a sociedade, a culpa sempre é da mãe. Há mulheres que chegam para nós sangrando, com filhos sofrendo, a família destruída. O marido costuma fazer muita pressão, não aceita. Por isso, há muitas separações de casais. Seguimos a linha de que a informação vai quebrar o preconceito, inclusive, usando termos corretos. É orientação sexual, não opção. Não é uma opção deles - explica Renata.

Pelo menos uma vez por mês, o grupo promove encontros presenciais - devido à pandemia, toda a programação está online. Elas também se mantêm conectadas diariamente via grupos no WhatsApp e no Facebook. Como uma grande família, compartilham anseios e medos, principalmente com a segurança de seus filhos. Com razão: o Brasil registra uma morte por LGBTfobia a cada 26 horas, segundo dados do Grupo Gay da Bahia, uma das maiores entidades pelos direitos LGBT do país. E há também a violência que não está nas estatísticas: as piadas, o preconceito dentro e fora de casa e o bullying. Por isso, a rede conta também com os serviços de psicólogos que atendem a baixo custo e estão disponíveis para emergências.

- Todo mundo chama de viadinho, disso, daquilo, e ninguém pensa que afeta a vida da criança e da família. Depois que a Flora me contou que gostava de uma menina, eu chorei no banheiro não porque ela era lésbica, mas porque a vida dela seria mais difícil. Sabia que ela sofreria mais, e eu precisava estar preparada para acolher - diz Renata.

O amor dessas mães se transforma em ação. Elas trabalham para ocupar espaços e impactar diferentes públicos. Fazem palestras em universidades, escolas, empresas, para profissionais de saúde e pressionam o poder público pela igualdade de direitos. Um dos maiores desafios, avalia Renata, é transformar o sistema de ensino para acolher crianças e adolescentes LGBT+:

- Escola é um lugar opressor para as minorias de uma forma geral. Estamos abrindo linhas de frente para a informação chegar a pedagogas, psicólogas e professores desde a formação. Diversidade é inclusão, não é favor.

A seguir, conheça a história de duas mulheres que encontraram no Mães pela Diversidade o apoio para abraçar seus filhos com ainda mais afeto e recobrar as energias para seguir lutando por eles.

NATHÁLIA CARAPEÇOS


27 DE JUNHO DE 2020
LEANDRO KARNAL

A TRINCHEIRA DO FAROL

As grandes corporações possuem departamentos de marketing, gestores de estratégia, pensadores sofisticados que acompanham as mais recentes Ted Talks sobre tendências estudadas em Harvard e Yale. Por vezes, imagino, deveriam abrir mais o vidro do carro parado em um sinal na esquina das grandes cidades do Brasil. Nonsense?

O vendedor dos cruzamentos é um termômetro rápido que causaria inveja a muitos especialistas. Ele mede com precisão o "humor" do mercado e do consumidor. O tempo nublou? Nuvens pesadas anunciam tormenta? Capas de plástico e guarda-chuvas surgem nas mãos laboriosas do ambulante. Choveu e os mosquitos se multiplicaram? Raquetes elétricas serpenteiam entre os espelhos retrovisores. Joga o Corinthians? Preto e branco se espalham entre bandeiras, camisetas e bolas customizadas. O homem talvez tenha time em casa, o vendedor da rua tem público e mercado: pode estar de verde no dia seguinte.

O dia termina e os carros voltam da sua jornada. O ágil mercador identifica veículos dirigidos por homens. Chega e oferece um buquê de rosas pronto e bonito. Sugere levar algo para a esposa. O empresário pensa na boa ideia e, por amor ou culpa, compra em rápida negociação. O tempo é curto. Não é a barganha elaborada e ritualística de um tapete no Grande Bazar de Istambul. A leitura do rosto e da intenção do comprador deve ser mais ágil do que o diligente turco com o kilim nas mãos. Tudo deve ser resolvido no prazo máximo de um minuto. Terminado o tempo, o sinal abre e o cliente foge.

Horários de fome do meio da tarde? "Larica" espalhando sua influência na metrópole? Surgem frutas em bandejas e até casquinhas crocantes acompanhadas de um sorriso. Cajus enfileirados causam impacto visual. O notável é que as comidas são oferecidas pelo mesmo ambulante que, uma hora antes, empunhava mapas. Sim, vendem-se peças cartográficas nas esquinas! Enrolados ou abertos, apelam a pessoas mais velhas que os usaram na escola. Talvez aquele senhor septuagenário compre para dar ao neto. Também provável que o adolescente presenteado agradeça com educação e pense que tem um aplicativo mais prático no seu celular para aprender geografia.

Quando é seguro, deixo o vidro aberto nas esquinas. Escuto e aprendo. Sou chamado de "doutor", "campeão", "grande", "bacana" e recebo um sorriso embebido em treino de palco urbano. Vender é esbanjar simpatia. Frases de impacto, gestos marcados e eficazes: tudo ajuda naquela luta instantânea. Um autônomo de farol poderia dar cursos muito instrutivos para uma pós-graduação em técnicas de venda.

Há espaço para a criatividade empreendedora. As pessoas comuns vendem garrafas plásticas de água. O empreendedor original se veste de garçom. Por quê? A camisa branca, a calça preta, a gravata-borboleta e a pochete com dinheiro trocado (ok, ninguém é perfeito) agregam rápida identificação com uma personagem confiável. Quem faz propaganda na televisão ou foto publicitária sabe que o consumidor necessita identificar uma enfermeira ou professora em segundos rápidos. O estereótipo é eficaz. O público precisa conhecer em um olhar quem é e o que vende. A personagem vende muito mais.

Todo trabalho honesto é digno. Eu substituí meu azedume de outrora pela tentativa de ver e aprender. Ali andam, rápidos, seres humanos lutando para sobreviver, como eu. Apenas algumas coisas me irritam muito: crianças usadas para esse fim. Sabendo que somos mais simpáticos ao vendedor mirim, constato, em pleno horário escolar, os pequenos passando entre os carros. Em geral, mais adiante, gordos progenitores descansam sob uma sombra. Nunca compro de menores e ainda reafirmo forte: "Você deveria estar na escola". Uma única vez parei o carro e fui vociferar contra um senhor (pai?) que colocava três meninas a vender. É perigoso fazer o que fiz, mas o fato me tira do cercadinho da razão.

Há mais ambiguidades no comércio que estou tratando além da exploração do mundo infantil. Há produtos sem nota fiscal, contrabando frequente, controle de qualidade inexistente, condições sanitárias claudicantes com a comida oferecida, falta de licenças ou alvarás e uma concorrência com aquele comerciante que, na sua loja, paga impostos altos para ter o direito que o da rua obteve gratuitamente. A concorrência é real e marcada pela desigualdade. A informalidade é um imperativo que deve crescer ainda mais na crise atual.

Aprendi algo novo conversando com vendedores. Nem sempre, ao lado do seu carro, está um autônomo que vende seus produtos. Por vezes, há um chefe por detrás dele. Alguém que tem capital para comprar mais, organizar, trazer o vendedor e constituir um novo tipo de empresário. Assim, sem nenhum amparo trabalhista, surgem formas de ocupação que geram recursos para alguém bem distante daquele sorridente ser humano ali presente.

Por fim, com suas genialidades e ambiguidades, temos algo a aprender observando mais e conversando mais. Independentemente de tudo, um ser humano merece sempre nossa simpatia por estar ali, de pé, lutando. Para mim ou para você, muitas vezes, chama-se importunação. Para ele, sempre, intitula-se sobrevivência. Compro pouco, mas tento ver que existe alguém. Ser invisível é um castigo enorme para quem tem pressa em comer. O farol é a trincheira de uma guerra difícil e sorridente. É preciso ter esperança e um pouco de empatia em momentos bicudos como o atual.



27 DE JUNHO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

SEQUELAS DA DEPRESSÃO E DA ANSIEDADE PESARÃO MAIS DO QUE O CORONAVÍRUS

O que explica o crescimento desses transtornos na sociedade?

Depressão é transtorno traiçoeiro que transforma a vida num fardo difícil de suportar. Mesmo antes do coronavírus, já era considerada "o mal do século". Segundo a Organização Mundial da Saúde, a partir desta década será a principal causa de absenteísmo, isto é, faltas no trabalho. Já o é, entre os que trabalham no mercado financeiro de São Paulo.

Parece paradoxal, porque a partir da Segunda Guerra centenas de milhões de pessoas tiveram acesso a alimentos de qualidade, serviços de saúde e níveis de conforto com os quais nossos antepassados não ousavam sonhar. Embora a pobreza possa aumentar a prevalência de pessoas deprimidas nas sociedades, por que razões tantos que desfrutam de melhores condições financeiras desenvolvem um transtorno que lhes subtrai o prazer de viver?

Nas últimas décadas, a ênfase foi dada à biologia dos neurotransmissores, os sinais químicos que os neurônios trocam nas sinapses. A descrição das alterações na produção, na concentração e nas atividades desses mediadores envolvidos na fisiopatologia da doença levaram às sínteses de medicamentos antidepressivos para corrigir os desequilíbrios neuroquímicos associados a ela.

A despeito desses avanços, desarranjos na "química cerebral" não são suficientes para explicar o crescimento dessa prevalência na sociedade moderna. Sem invadir a seara dos especialistas, tomo a liberdade de enumerar dois dos fatores que talvez nos ajudem a entender.

O primeiro tem raízes evolutivas. Nossos antepassados mais remotos desceram das árvores, nas savanas da África, há cerca de 6 milhões de anos. Naqueles tempos, tínhamos perto de um metro de altura e quase nenhuma gordura no corpo, dada a dificuldade de obter alimentos. Qual a chance de sobrevivência de um primata tão franzino, no meio das feras que o espreitavam dia e noite?

A solução foi formar bandos. O agrupamento foi essencial à sobrevivência dos ancestrais do Homo sapiens, aqueles incapazes de organizar coalizões não deixaram descendentes. Desde então, a sensação de isolamento nos torna tão frágeis, que mal conseguimos suportar um sábado à noite, sozinhos, em casa.

Até a metade do século passado - um milionésimo de segundo em 6 milhões de anos - vivíamos em famílias numerosas que nasciam e se mantinham nos mesmos grupos, nas mesmas tribos ou em casas próximas, pelo resto da vida. De uma hora para outra, o progresso e a complexidade dos centros urbanos nos afastou uns dos outros. A solidão se tornou endêmica.

O segundo é a busca incessante da felicidade em ações, ambientes e relacionamentos que nos distanciam dela. Desperdiçamos energia para adquirir status, bens, galgar posições sociais e exibir no Instagram e no Facebook fotos e comentários fúteis, para mostrar aos nossos seguidores como somos inteligentes, espirituosos, importantes e, sobretudo, felizes.

Superação, palavra insuportavelmente na moda, virou o mandamento supremo. Nada mais justifica a tristeza e o fracasso, a ordem é triunfar o tempo todo, para não sermos acusados de fracos, deprimidos e perdedores, portanto desprezíveis. A expectativa de uma existência cor-de-rosa não estava no horizonte dos nossos antepassados, ocupados com o ganha-pão, as doenças, as guerras e as epidemias de fome.

A tecnologia que nos trouxe computadores, celulares e a internet foi a pá de cal. Entretidos com as telas dos telefones, perdemos contato com os familiares e os amigos. O trabalho derrubou as fronteiras entre o escritório e a privacidade de nossas casas. Onde quer que estejamos, seremos bombardeados por mensagens de email, WhatsApp, Instagram, Twitter e o diabo que nos carregue.

A seleção natural não preparou o cérebro para lidar com tamanha variedade de estímulos e solicitações concomitantes. A incapacidade de atender à demanda gera sensação de incompetência, frustração e estresse. A vida moderna se transformou numa engrenagem impiedosa que nos afasta dos valores essenciais à condição humana.

A dificuldade de lidar com a solidão é um enorme desafio nestes dias de distanciamento social. Manter o equilíbrio psicológico dentro de limites razoáveis, trancados em casa, amedrontados pelo vírus, longe das pessoas de quem gostamos, é privilégio de poucos. A depressão e os transtornos de ansiedade deixarão sequelas mais duradouras do que a passagem do vírus.

DRAUZIO VARELLA


27 DE JUNHO DE 2020
BRUNA LOMBARDI

VOCÊ ACREDITA NA PAZ?

Já existiram muitas formas de dinheiro através dos tempos. Começou com trocas de bens, serviços, mercadorias, sem equiparar valores. Cacau, chocolate, tabaco e até sal, que deu origem à palavra salário, foram algumas das coisas usadas como dinheiro, até que foi descoberto o metal e surgiram as moedas.

O papel só apareceu na Idade Média, como recibo dos metais penhorados e assim as cédulas valiam dinheiro. E aí está a origem do nosso sistema financeiro. Hoje somos regidos por números digitais armazenados nas nuvens que determinam nossas vidas.

O sistema econômico mundial foi inventado por um pequeno grupo, que se sucede na regência do mundo. Riquezas incomensuráveis são controladas por poucos. A manutenção desse sistema exige a criação constante de novos produtos de valor: bonds, papéis de crédito, debêntures, títulos, LCI, LCA, RDB, ações, letras, certificados, fundos, uma parafernália de coisas que sobe e desce numa montanha russa acelerada e perigosa, capaz de arrebentar o coração dos jogadores da bolsa e criar crises terríveis e pânico coletivo.

Essa macroeconomia reflete nos nossos pequenos microcosmos. Somos vítimas de dívidas, salários, boletos, aflições, preocupações, desespero. Dizem que dinheiro não traz felicidade, mas a falta dele também não ajuda ninguém. E a gente precisa aprender a gerenciar dinheiro.

Participei de uma palestra com alguns grandes investidores mundiais e ouvi um deles dizer que a dívida dos gigantes está paga e que o mundo caminha para um período de paz. A cúpula agora quer paz. O encontro dos EUA e Coreia do Norte é prova disso.

Mudou o foco. A luta agora é contra o grande abismo das desigualdades.

Se a proposta for conquistar a paz, superar guerras e violência, vamos ver surgir um novo pensamento, uma nova consciência. Não é o sistema que está em jogo, é a vida no planeta.

O acúmulo de lixo indestrutível formando gigantes ilhas de plástico nos oceanos. A camada de ozônio, o degelo, as drásticas temperaturas da mudança climática, o aumento de nível das águas dos mares e ao mesmo tempo a seca, aridez e a escassez de água.

A extrema ganância, o desmatamento e a distorção do que acreditamos riqueza, está trazendo a extinção de incontáveis espécies e colocando tantos biomas em risco exponencial.

Sem mudança teremos inevitáveis desastres ecológicos, dramáticos cataclismos e muitas outras pandemias como essa que estamos enfrentando.

Parece ficção ver o mundo parado e tão vulnerável, com todas as suas duras realidades vindo à tona. O sistema econômico, para sobreviver, precisa de mais igualdade social, de um planeta saudável e do despertar de uma conscientização espiritual. A busca espiritual hoje se tornou necessária e imprescindível.

Há uma junção da espiritualidade e da tecnologia na busca da cura das pessoas e da paz no planeta. Cada uma, a seu modo, visualiza um mundo melhor e quer descobrir a menor partícula, a mais leve e poderosa: a partícula divina.

Como disse Einstein, um cientista que estudava a espiritualidade: "Eu quero entender a mente de Deus".

BRUNA LOMBARDI