segunda-feira, 29 de abril de 2024


29 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

A flexibilização trágica da Lei Kiss

A tragédia da Pousada Garoa, que resultou em 10 mortes na sexta-feira, em Porto Alegre, é um dos efeitos colaterais da flexibilização da Lei Kiss.

Criada em 2013, a Lei Kiss, nº 14.376/2013, era uma resposta contundente e rigorosa ao incêndio que vitimou 242 pessoas na Boate Kiss, em Santa Maria, no dia 27 de janeiro daquele ano. Assegurava normas de prevenção e combate a incêndios a todos os imóveis não considerados como unifamiliares exclusivamente residenciais.

Infelizmente, para liberar alvarás com maior rapidez, diante da falta de efetivo no Corpo de Bombeiros, abriu-se precedente com mudanças constantes do texto original, em duas novas redações (Leis Complementares Estaduais nº 14.555/2014 e nº 14.924/2016), até que a Assembleia Legislativa aprovou, no fim de 2022, o total enfraquecimento da Lei Kiss. O somatório Frankenstein de legislações complementares deixou buracos para que pequenos imóveis fizessem uma autodeclaração de que estavam em ordem, sem a necessidade da vistoria.

Escolheu-se preservar patrimônio e empresas em vez de preservar vidas. Ali, naquele ato político inflamado, naquele acordo de pragmatismo, está o início das chamas que acabaram com o futuro de uma dezena de inocentes no centro porto-alegrense, não lhes dando chance de escapar de uma ratoeira.

A pousada foi uma das empresas beneficiadas pela medida. Por quê? Ela se apresentou com a natureza de escritório, não como hospedaria com mais de 200m², e não existiu nenhuma auditoria. Tal discrepância não passaria batido pela lei original.

Se antes ela teria que ser avaliada de acordo com sua ocupação, lotação máxima, capacidade de controle de fumaça e cumprir exigências mínimas de segurança para receber um alvará dos bombeiros, agora, as alterações da lei facilitaram as irregularidades.

Hoje, basta o empresário autodeclarar pela internet o perfil do negócio, suas características e informações de segurança. Os bombeiros apenas checam os documentos. Confia-se na palavra, não nos olhos da fiscalização. O processo dura cinco dias úteis e não requer visita presencial.

A teoria passou a se divorciar perigosamente da prática. Restou apenas a obrigação dos extintores de incêndio e da sinalização de emergência, que de nada adiantaram no caso do albergue de três pavimentos, com quartos minúsculos, um do lado do outro, sem a devida e adequada ventilação. A inalação da fumaça foi suficiente para assassinar os hóspedes.

Houve uma precarização do documento de excelência, que unia engenharia, arquitetura e responsabilidade técnica e blindava contra a possibilidade de riscos. Houve uma relativização danosa na perícia de parte dos imóveis, desconsiderando relevantes questões estruturais como compartimentação vertical e horizontal, controle de materiais de acabamento e revestimento.

A Lei Kiss nem contou com tempo de adaptação e já foi simplificada. Sequer conseguimos dar amparo às famílias das vítimas do caso Kiss, e a lei que o tomou como base não subsistiu. Tampouco a condenação aconteceu e ela não assusta mais.

Eu compreendo que devemos compatibilizar os interesses privados com os propósitos públicos e incentivar o surgimento de microempresas, desde que não se prejudique a natureza ilibada da coexistência social, muito menos que seja ameaçada a integridade dos contribuintes.

A calamidade desse recente incêndio - o segundo mais letal na história da capital gaúcha - nos obrigará a revisar a atual lei, visivelmente inepta. No fim das contas, temos que voltar para a Lei Kiss. A desburocratização pode matar ao pressupor relaxamento imprevidente das normas.

CARPINEJAR

29 DE ABRIL DE 202
OPINIÃO DA RBS

AÇÕES PELA EDUCAÇÃO

A celebração de mais um Dia Mundial da Educação, ontem, motiva os brasileiros a uma reflexão profunda sobre esta área da atividade humana tão essencial para o desenvolvimento do país e para o futuro das próximas gerações. O Brasil ainda ocupa posições subalternas nos rankings internacionais de aproveitamento escolar, mas as insuficiências do poder público - que vão das tradicionais promessas de prioridade administrativa a políticas públicas equivocadas, passando também por compreensíveis dificuldades econômicas - têm sido atenuadas por ações espontâneas de organizações sociais privadas que se dedicam à nobre causa.

Entre as inúmeras entidades dedicadas a ampliar as ações do Estado em atividades dirigidas ao ensino, à inovação e ao desenvolvimento tecnológico, destacam-se o Movimento Todos pela Educação, em âmbito nacional, e o Instituto Caldeira, no cenário regional. Essas duas instituições, em suas respectivas áreas de atuação, vêm contribuindo significativamente para transformar a realidade educacional do país.

Criado em 2006, em São Paulo, o Movimento Todos pela Educação é uma organização da sociedade civil centrada na melhoria de qualidade da educação básica na rede pública de ensino. Sem vínculos com governos e partidos políticos, empenha-se em colocar a educação na pauta da sociedade brasileira e em monitorar o poder público, mas também em elaborar propostas e articular com autoridades e instituições para que sejam levadas à prática. 

Para ficarmos com um exemplo recente, o movimento divulgou na última quinta-feira um estudo que mostra a preocupante redução de professores concursados nas redes estaduais de ensino nos últimos 10 anos e o correspondente aumento de professores temporários. A consequência, segundo alertam os especialistas da instituição, é uma rotatividade maior, com descontinuidade de planejamento e prejuízos para a qualidade do ensino.

Sob o enfoque regional, cabe destacar o lançamento da terceira edição do programa Geração Caldeira, pelo instituto de mesmo nome, criado em 2019 por empresários e executivos gaúchos para promover a inovação e capacitar jovens para o mercado de trabalho na nova economia. Trata-se não apenas de uma complementação da educação formal, mas também da abertura de oportunidades reais de trabalho e futuro para estudantes que habitualmente encontram barreiras por causa das carências do ensino público.

São iniciativas como essas, empreendidas igualmente por muitas outras organizações não governamentais e privadas pelo país, que justificam a existência de um Dia Mundial da Educação, data instituída no ano de 2000 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Evidentemente, a celebração comporta prioritariamente o reconhecimento ao trabalho de professores, diretores e servidores de escolas públicas e particulares que se dedicam diariamente à árdua tarefa de ensinar.



29 DE ABRIL DE 2024
POLÍTICA +

Alckmin vai onde Lula não pode ir

Apesar de a relação com o agronegócio ter serenado na comparação com 2023, o presidente Lula achou por bem mandar o vice-presidente Geraldo Alckmin em seu lugar na abertura oficial (e sem público) da Agrishow, de Ribeirão Preto (SP). Com Alckmin foram também os ministros da Agricultura, Carlos Fávaro, com bom trânsito no setor, por ser produtor rural, e o ministro do Desenvolvimento Rural, Paulo Teixeira.

Alckmin, que é uma espécie de quebra-gelo na relação com empresários em geral, chegou à feira acompanhado da esposa, Lu. Os dois não hesitaram em colocar um chapéu na cabeça e andaram de mãos dadas entre os estandes.

A presença do vice, que também é ministro do Desenvolvimento, indica uma inflexão na relação com o agronegócio, depois do episódio de 2023, quando a abertura foi cancelada porque o ministro da Agricultura foi "desconvidado" pelos organizadores. Como o ex-presidente Jair Bolsonaro havia confirmado presença, a organização recomendou que Fávaro transferisse a participação para outro dia. O ministro da Agricultura estrilou e a abertura foi suspensa.

Desta vez, a abertura oficial ocorreu sem a presença do público, que participa a partir de hoje. E o governo foi elogiado pelo presidente da Agrishow, João Carlos Marchezan.

Prefeitura faz agora o que não fez antes da tragédia

A prefeitura de Porto Alegre poderia adotar como lema o adágio "porta arrombada, tranca de ferro". Só agora, depois que 10 pessoas morreram e 15 ficaram feridas no pior incêndio deste milênio na Capital, é que os técnicos vão fazer o que deveriam ter feito quando foram assinados os convênios para abrigar pessoas em situação de vulnerabilidade: visitar as pousadas e verificar se oferecem condições de segurança.

Por que isso não foi feito antes? Porque em nome da liberdade econômica, adotou-se o princípio da boa-fé. O empreendedor declara que seu negócio é de baixo risco, ganha uma autorização para funcionar sem necessidade de alvará e se compromete a encaminhar o plano de prevenção e combate a incêndios (PPCI).

A pousada que se incendiou era uma arapuca, segundo a descrição dos bombeiros. Podia ser tudo, menos um empreendimento de baixo risco. Mesmo assim, a prefeitura firmou convênios com a rede em 2020 e os renovou sucessivamente, a última vez em dezembro de 2023, por mais um ano, sem verificar se havia PPCI.

Essas pousadas não fazem nenhum favor. A prefeitura paga bem para que acolham moradores de rua, o que é correto em uma cidade com tanta gente sem teto, sem emprego e sem condições de retornar para a cidade de onde veio em busca de uma vida melhor.

Alguém sabia qual era o estado das camas e das divisórias? Sabia dos riscos de um sinistro? Conferiu se havia extintores? Pelo que se ouviu até aqui, não. A prefeitura confiou no que o proprietário pôs no papel.

Por que os abrigados não reclamaram? Ora, não estamos falando de Airbnb. Essas pessoas são quase invisíveis. Pobres, sujos e famintos, dão graças a Deus por encontrar um teto e não precisar dormir ao relento.

ROSANE DE OLIVEIRA

Maio de 24

O posto menos invejado nos EUA atualmente deve ser o de reitor. Se a guerra Israel-Hamas inflamou (ainda mais) o debate público e abriu uma cratera ideológica até entre pessoas que antes pareciam concordar, em poucos lugares os embates têm sido mais acalorados do que nas universidades americanas.

Se o reitor tentar proteger a liberdade de expressão de uns, pode ser visto como alguém que é leniente com o discurso de ódio contra outros. Se defender a independência para lidar com assuntos internos, será lembrado do volume estratosférico de dinheiro que a iniciativa privada e o governo federal despejam em centros de excelência acadêmica. Se tolerar manifestações, será visto como fraco por um Congresso de maioria republicana. Se reprimir, perderá a legitimidade junto a alunos e professores, majoritariamente democratas ou de esquerda.

Nos últimos dias, os protestos de estudantes tomaram uma dimensão como há décadas não se via no país - com Columbia, que concentra o maior número de alunos judeus e muçulmanos, como epicentro. O movimento rapidamente tornou-se nacional, e os alunos agora protestam não apenas contra o massacre em Gaza, mas também contra a repressão das manifestações e a prisão de dezenas de estudantes.

Vamos voltar algumas casas nesse tabuleiro. No início do ano, a reitora de Harvard foi levada a renunciar depois de um depoimento no Congresso em que titubeou na hora de classificar o antissemitismo como um tipo de discurso de ódio. Chamada a depor no mesmo comitê há duas semanas, Minouche Shafik, de Columbia, decidiu mostrar-se mais dinâmica e eficiente - além de determinada a manter o emprego e os investimentos. 

Prometeu aos congressistas que garantiria a ordem no campus de qualquer jeito e que discursos considerados antissemitas não seriam tolerados. A fala de Shafik no Congresso e a decisão posterior de chamar a polícia para dispersar os alunos que acampavam no campus acabaram esquentando ainda mais a fervura. Em questão de horas, deputados republicanos, ativistas pró-Palestina e pessoas que são a favor da liberdade de manifestação, mesmo quando não concordam com as opiniões defendidas, estavam pedindo a cabeça da reitora.

Para que serve uma universidade? Que valores deveria defender? Como administrar diferentes tipos de demandas, internas e externas, que contrariam esses valores? Quem ganha quando a independência de uma universidade é ameaçada? Como as manifestações de estudantes, que prometem se estender pelo mês de maio, serão narradas pelos historiadores no futuro? Essas são algumas das questões que estão postas sobre a mesa. Maio de 24 começa daqui a dois dias, mas sabe-se lá quando e como vai terminar.

CLÁUDIA LAITANO 

sábado, 27 de abril de 2024


26/04/2024 - 09h00min
Martha Medeiros

O amor é uma elegância em nossas vidas

Não pode virar um sacrifício sustentado por filmes e livros que contam histórias românticas tendenciosas. Ninguém é sozinho, há um povaréu dentro de cada um. “Mas o que eu vou fazer se ficar sozinha?” me perguntou ela, enfurnada num casamento que já tinha virado outra coisa, coisa nenhuma, um esconderijo.

Comecei dando sugestões práticas: criar várias playlists no celular, mergulhar nos livros e viver todas as vidas que de outra forma ela não viverá, viajar para algum lugar que ela sempre quis conhecer, chamar cada uma das amigas para uma conversa íntima sem hora para acabar, fazer uma oficina de literatura e transformar em prosa a sua história, visitar as exposições que a cidade inteira comenta, começar a se exercitar a sério. Mas será que esta lista prosaica, nada original, seria suficiente para ela entender que a solidão pode ser repleta de acontecimentos?

Acrescentei, claro, que nada impedia que ela iniciasse uma nova relação, menos algemada a contas conjuntas, rotinas familiares e planos a longo prazo, um engate sem tornozeleira eletrônica, um namorado para as próximas 24 horas, com renovação automática a cada manhã, se fosse bom para os dois. Mas confiança não era o forte dela. Não acreditava quando eu dizia que pessoas maduras têm tanta ou mais facilidade para namorar do que os jovens. A neura dela era ficar solteira em uma sociedade machista, em que os pares ainda valem mais do que os ímpares.

É uma cilada acreditar nisso. Porque a mulher vai se acomodando e perdendo oportunidades de renascer a cada novo desejo, que não precisa ser o desejo por outra pessoa, mas o desejo de ser mais livre, mais ela mesma. Até os índices de feminicídio poderiam cair se a gente entendesse que não é obrigatório formar um casal. Ninguém é sozinho, há um povaréu dentro de cada um. Que se pense bem antes de render-se ao casamento apenas por uma exigência social que interessa ao status quo (casados são ordeiros, formam família, consomem por quatro).

O amor é uma elegância em nossas vidas, não pode virar um sacrifício sustentado por filmes e livros que contam histórias românticas tendenciosas. Até a bossa nova nos deu um hino que mais parece uma sina: “é impossível ser feliz sozinho”. O marketing pró-acasalamento é milionário, glamouroso e distribui prêmios. Porém, a agenda da solidão não traz páginas vazias. Há também jantares, shows, viagens, cursos, beijos, trabalho – e descanso, dorme-se melhor. Mais que isso, há tempo para o silêncio, para a paz das leituras demoradas, para a música que toca noite adentro, para o convívio com nossa alma em estado puro.

Eu consegui um feito: levei minha solidão para dentro do meu namoro e ela foi recebida de braços abertos. Mas não é assim que funciona com a maioria dos casais, onde a solidão de um extermina a solidão do outro. Depois se perguntam como é que pôde ter dado errado.


27/04/2024 - 09h00min
Claudia Tajes

Independentemente da tecnologia, vida longa ao PS

Que ele continue colorindo as nossas cartas. Um amigo disse que, em tempos de comunicação digital, o PS perdeu a sua razão de ser.

PS, o post scriptum, aquela informaçãozinha que complementa uma carta, às vezes com objetividade, às vezes com graça, às vezes com poesia. Também pode ser com graça poética objetiva, depende de quem escreve.

Para o meu amigo, o PS fazia sentido quando, após escrever uma carta caprichosamente à mão, com caneta tinteiro ou Bic mesmo, o missivista percebia ter se esquecido de alguma coisa. Óbvio que, nessa situação, a pessoa jamais reescreveria tudo para acrescentar o que ficou para trás.

Uma professora do ensino primário, a Irmã Urbana, veio transferida para dar aulas em Porto Alegre. Ela tentou fazer com que eu, com uns 10 anos de idade, mantivesse correspondência com uma aluna dela do Pará. Podia ter sido uma boa experiência, mas tanto eu quanto a outra menina éramos pequenas demais para achar graça naquilo. Minha mãe sentava comigo para escrever e eu quase dormia, de tão chata que era a minha vida de criança de apartamento para contar. Quando chegava a resposta da menina, tão desinteressante quanto a minha, eu ia direto para o PS, que em geral dizia: um abraço para a Irmã Urbana.

O PS tinha essa função. Estando o assunto da carta enfadonho, ia-se direto para ele, para ver o que realmente importava daquelas páginas todas. O suco da carta. Isso, claro, se as cartas não fossem de amor. Se fossem, até as maiores banalidades mereciam a mais atenta das leituras.

Com as cartas na máquina de escrever, mesma coisa. O Errorex era ótimo para consertos em textos de trabalho, mas ficava feio mandar uma carta toda remendada. Fora a desconfiança: uma linha inteira apagada, o que será que ela se arrependeu de escrever? O PS continuou não apenas útil, mas indispensável. Parecia uma instituição eterna, como a própria carta. E mais, a gente podia se valer de vários PSs, se necessário fosse. PS2, PS3, PS4. Hoje em dia, os desavisados ficariam boiando: que que tem o PlayStation a ver com isso?

Então veio o computador. O ponto do meu amigo é: ninguém precisa mais recorrer ao PS se basta voltar atrás e acrescentar o que faltou e onde der. Como se escrever fosse isso, achar um lugar qualquer e enfiar uma informação à moda Miguelão. Não é assim que funciona. Independentemente da tecnologia, vida longa ao PS. Que ele continue colorindo as nossas cartas.

PS: Um abraço para a Irmã Urbana.


27 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Inexplicável!

Um incêndio estendeu o escuro da noite e cobriu a capital gaúcha de trevas e mortes durante a manhã de sexta-feira. Dez pessoas morreram, 15 ficaram feridas, num dos focos de fogo mais incompreensíveis dos últimos tempos, que atingiu uma pousada na Avenida Farrapos, entre as ruas Garibaldi e Doutor Barros Cassal, próximo a um posto de combustíveis. Os bombeiros chegaram por volta das 2h20 da madrugada.

Trata-se do segundo mais letal incêndio de Porto Alegre, apenas atrás da tragédia no emblemático prédio da Lojas Renner, na tarde de 27 de abril de 1976 (quase a mesma data), que matou 41 pessoas e deixou dezenas de feridos.

Não há como disfarçar a indignação. É sempre um luto carregado de raiva, bílis e injustiça. Será que são necessários 10 falecimentos, 10 famílias enlutadas para agora investigarmos se o hotelzinho realmente precisava do Plano de Prevenção e Proteção Contra Incêndio (PPCI)?

Se a burocracia está em ordem, se a documentação está em dia, de quem é a culpa? Como uma estrutura de tantos riscos evidentes é aprovada para operar como pousada, na condição de alojamento de baixo risco, com a dispensa de alvará e autorização de funcionamento?

Será consequência da brandura da lei, engessando a fiscalização a ponto de esta só atestar falhas de monitoria depois de um desastre, quando já é tarde demais, quando existe uma fileira de covas abertas e caixões em procissão?

No albergue de três pavimentos, os modestos quartos eram colados uns nos outros, revestidos de madeira, sem a devida e adequada ventilação. Não tinha como fugir. Não tinha como escapar. Quem se via exausto, em sono profundo, jamais despertou.

Era uma ratoeira, um labirinto com único acesso pelas escadas, desprovido de plano e sinalização para evacuação rápida. Pela vista aérea dos destroços da edificação, da qual permaneceu somente o esqueleto carbonizado, percebe-se que se resumia a uma panela de pressão, com condições propícias ao alastramento das chamas e a sucessivas explosões.

Não aprendemos nada com as centenas de óbitos de estudantes em Santa Maria, na Boate Kiss. A amnésia repete as dores. O esquecimento reutiliza os scripts de falta de segurança, comprometendo covardemente vidas inocentes, que pagaram um quarto para pernoite, a cinco minutos da Rodoviária, jurando que se achavam protegidas.

Já que o espaço vinha sendo usado pela Secretaria de Assistência Social como moradia para desabrigados e desassistidos, a gravidade da ocorrência aumenta. O contrato público com a rede de pousadas, que possui outros três endereços em Porto Alegre, recebeu renovação com a prefeitura em dezembro do ano passado.

Que licitação é essa que repassa R$ 2,7 milhões por 360 vagas naquilo que acabaria sendo um cemitério? Com certeza, diante da precariedade das instalações, os moradores de rua, em situação de vulnerabilidade, estariam mais resguardados dormindo ao relento, debaixo das marquises.

Quantos gritos de socorro terminaram afônicos pela toxicidade da fumaça? Quantos assentos de ônibus seguiram vagos, sem o seu passageiro regressando ao lar no Interior? Tudo está sendo apurado, tudo é recente, mas, pelos indícios até então, dá para concluir que o incêndio poderia ter sido facilmente evitado.

Se não foi alguém que o provocou de propósito, a prefeitura deve oferecer uma resposta, pois o incêndio ocorreu sob sua autorização, sob sua tutela, num acordo em vigor de albergamento, no centro da cidade, numa de nossas mais movimentadas avenidas.

Queremos saber. Não basta oferecer os pêsames a Marcelo Wagner Schelech, 56 anos, um dos sobreviventes, que não conseguiu socorrer sua irmã, que não teve chance de salvá-la, que carregará o trauma de ter saído dali sozinho. Ele carece de uma explicação.

CARPINEJAR

27 DE ABRIL DE 2024
FLÁVIO TAVARES

DATAS INESQUECÍVEIS

A data de 25 de abril, ocorrida dias atrás, é inesquecível. Festejamos agora os 50 anos da Revolução dos Cravos, que em 1974 derrubou em Portugal a ditadura mais longa da Europa, estabelecida em 1932. Aqui no Brasil, porém, sucedia o oposto: 10 anos depois, no mesmo dia, a Câmara dos Deputados rejeitava a Emenda Dante de Oliveira, que restabelecia a eleição direta do presidente da República, suprimida em 1964 pelo golpe militar direitista.

Em Portugal, pela primeira vez no mundo, um movimento militar instituía a democracia. Na ponta dos fuzis, os soldados levavam um cravo vermelho, símbolo da paz, sem opressão. O movimento das forças armadas nasceu para opor-se à cruenta repressão às guerras de libertação nas colônias portuguesas da África.

Naquele 1974, tudo foi diferente. Começou com a tomada da Rádio Nacional e a transmissão da canção Grândola, Vila Morena, proibida pela censura ditatorial. Era a senha que mobilizou os quartéis. O major Otelo Saraiva de Carvalho comandou o golpe, mas, vitorioso, não ocupou nenhum cargo no governo.

Já consolidada a democracia e a liberdade de expressão, morei dois anos em Portugal no século passado. Permaneciam, porém, alguns vestígios da longa ditadura. Parte das mulheres se vestia de preto, tal qual nos tempos idos, quando elas eram relegadas à condição de "seres inferiores", sem direito à cor sequer nos trajes.

Em compensação, havia uma explosão de liberdades, em que grupos de esquerda e direita disputavam território. Lembro-me da cena inimaginável em qualquer canto do mundo, mas lá habitual naquela época - transeuntes e automobilistas discutiam na rua com policiais de trânsito, sem que estes sequer esboçassem qualquer reação.

Entre nós, porém, 10 anos depois, outro 25 de abril tornou-se inesquecível pelo absurdo de a Câmara dos Deputados rejeitar emenda à Constituição que reinstituía o direito do voto direto na eleição do presidente da República, abolido pelo golpe militar de 1964.

Os tempos já são outros e podemos festejar.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

27 DE ABRIL DE 2024
OPINIÃO DA RBS

DESLEIXO FATAL

É muito fácil levantar suspeitas e apontar culpados quando uma tragédia abrevia vidas humanas de forma tão cruel como ocorreu na madrugada de ontem, no incêndio da Pousada Garoa, em Porto Alegre. A comoção causada pelas mortes exige respostas imediatas e tende a gerar precipitações. Porém, embora seja mais sensato aguardar os resultados das perícias e das investigações policiais, não há dúvidas de que autoridades públicas e administradores do estabelecimento falharam nos cuidados, na fiscalização e na prevenção - desleixo fatal e inadmissível num Estado com memória traumática de sinistros semelhantes.

A verdade inquestionável é que o hotel popular tinha convênio com a Fundação de Assistência Social e Cidadania, o órgão da prefeitura da Capital que trata do acolhimento de cidadãos, famílias e grupos de pessoas em situação de vulnerabilidade social. Além disso, segundo o Corpo de Bombeiros, o local não tinha alvará de funcionamento nem Plano de Proteção Contra Incêndios, o chamado PPCI. Mais: pelo testemunho de moradores e frequentadores, já se sabe que as instalações eram precárias e malcuidadas, tanto em relação à segurança quanto à higiene. Em resumo, mais uma armadilha construída pela imprevidência e pelo descaso, como nos célebres casos da boate de Santa Maria e da creche de Uruguaiana, que também causaram numerosas vítimas e chocaram a população gaúcha.

Há, portanto, culpados - e é imprescindível que essas pessoas sejam responsabilizadas na proporção exata de suas participações ou omissões na cadeia de incúrias que gerou a fatalidade. Porém, mais importante do que eventuais punições deve ser o trabalho de rescaldo voltado para a prevenção. Nesse âmbito, as falhas são mais amplas e coletivas, incluindo aspectos como o abrandamento da legislação protetora e a insuficiente fiscalização, que possibilitam o funcionamento de estabelecimentos comerciais, prédios residenciais e habitações sem as mínimas condições de segurança.

A população gaúcha, infelizmente, ainda não conseguiu adotar uma cultura de prevenção capaz de interromper o rastilho das tragédias antes do desfecho inexorável. Quando as autoridades não são suficientemente confiáveis e diligentes no exercício de suas obrigações, cabe ao cidadão fiscalizar, denunciar e exigir providências corretivas para não se tornar vítima do desmazelo.

Não podemos continuar convivendo com o perigo. E nem aceitando pacificamente que autoridades, representantes políticos e proprietários de estabelecimentos sinistrados fujam de suas responsabilidades. No caso recente, já é perceptível um certo jogo de empurra por parte de algumas pessoas ouvidas. Só falta tentarem culpar as vítimas que caíram na armadilha do desleixo porque não tinham outra alternativa de abrigo digno. O momento é de comoção e de compaixão pelos mortos, pelos feridos e por seus familiares e amigos, mas não se pode perder de vista a necessidade de investigação minuciosa que leve à responsabilização dos negligentes e à retomada de mecanismos eficientes de prevenção.


27 DE ABRIL DE 2024
+ ECONOMIA

Mundo do vinho quer conquistar jovens

Iniciativas isoladas já tentavam "puxar" o consumidor jovem para o vinho, mas agora haverá esforço de todo o segmento para atrair o público entre 25 a 35 anos.

Segundo Luciano Rebellatto, que preside o Instituto de Gestão, Planejamento e Desenvolvimento da Vitivinicultura do Estado (Consevitis-RS), haverá mudanças em produtos e processos para oferecer mais bebidas leves e com menor teor alcoólico, além de campanha que estreia nos próximos dias com o mote "Vai de vinho brasileiro" - em várias situações.

- Nosso clima não propicia que uvas amadureçam muito. O resultado é maior refrescância, que ajuda - observa.

Como aos jovens também é atribuída a característica de ter maiores exigências sociais e ambientais, a coluna quis saber se há alguma pendência relacionada ao caso de trabalho análogo à escravidão que envolveu empresas do setor.

Segundo Rebellatto, como a percepção predominante foi de que se tratava de caso isolado, não houve impacto no consumo. O de imagem, avalia, foi momentâneo. Houve aprendizado e correção de práticas do setor.

Por reoneração, Lula contrata crise com Congresso e setores

Ao insistir em reonerar a folha de pagamento pela via judicial, o governo Lula contratou nova crise com o Congresso e os setores econômicos contemplados justo no final de uma semana marcada por aparente pacificação. Houve reação forte do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e de líderes empresariais e municipais, já que prefeituras também foram contrariadas.

Por mais que tenha fortes argumentos - a despesa não está no orçamento e há vedação constitucional a benefícios com base nas receitas da Previdência -, o governo entra em batalha difícil de ganhar e, caso consiga, terá vitória amarga.

No setor privado, o impacto é profundo, uma vez que decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) têm efeito imediato. Ou seja, seria necessário adaptar o pagamento já na próxima folha. A Abicalçados considerou um "retrocesso" e um "desrespeito ao trâmite" do Congresso. Conforme a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), a decisão no STF "cria um cenário de total imprevisibilidade" e "abala a confiança dos setores produtivos". A Federação Nacional de Call Center, Instalação e Manutenção de Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e de Informática (Feninfra) argumentou que haverá "paralisação de investimentos essenciais".

Dado o perfil mais diplomático do presidente do Senado, chamou atenção a elevação de tom do discurso de Pacheco, que apontou "perplexidade e muita insatisfação". E, pior para o governo Lula, aderiu à pressão para que se corte gastos para alcançar equilíbrio fiscal:

- Vamos fazer um debate a respeito de como se aumenta a arrecadação sem sacrificar o contribuinte que produz e gera emprego e onde podemos cortar excessos de gastos.

É bom lembrar que Pacheco é padrinho de proposta de emenda constitucional dos quinquênios, que aumenta o gasto público, segundo o Ministério da Fazenda, em R$ 42 bilhões ao ano.

é o número de cooperados alcançado pela Unicred Central Geração, que atua no RS e em outros 10 Estados. Com mais de três décadas de atuação, a cooperativa financeira chega pela primeira vez a essa marca. Presente em todo o país, o Sistema Unicred, da qual a Central Geração faz parte, conta com 29 cooperativas, 370 agências e cerca de 310 mil cooperados.

MARTA SFREDO

27 DE ABRIL DE 2024
POLÍTICA +

Lições deixadas pelo incêndio que matou 10 em Porto Alegre

Tragédias como a que deixou 10 mortos e 15 feridos na pousada da Avenida Farrapos, em Porto Alegre, nos obrigam a olhar para o futuro escaneando o passado para identificar o conjunto de falhas que criou o cenário para o incêndio. Foi assim no caso da boate Kiss, com seus 242 mortos. Como nos acidentes com aviões, é um conjunto de erros ou omissões somados que explica o sinistro. A isso não se pode chamar de fatalidade.

No caso da pousada Garoa, que abrigava pessoas pobres, sem teto, acolhidas pela assistência social da prefeitura ou que procuravam um lugar barato para morar, é preciso começar do início. Como pode um prédio naquelas condições ter licença para funcionar como pousada/hotel/hostel sem ter um plano de prevenção e combate a incêndio (PPCI)?

Ora, essa é a realidade da maioria dos prédios de Porto Alegre, públicos e privados - um dos edifícios mais exclusivos do bairro Moinhos de Vento não tem. O PPCI, popularizado depois do incêndio da Kiss, é uma obra de ficção em boa parte da cidade.

Mas e o alvará? A lei da liberdade econômica, cantada em prosa e verso como a solução para atrair investidores e combater a burocracia, permite que o "empreendedor" abra uma pousada sem que se faça qualquer fiscalização. Basta declarar que se enquadra como atividade de baixo risco.

Em geral, os proprietários buscam maneiras de agilizar o licenciamento, baratear custos e escapar da burocracia e das fiscalizações. Mas será que uma pousada improvisada em um prédio antigo é mesmo uma atividade de baixo risco?

Quando essas leis são aprovadas, não se faz a necessária reflexão. A sociedade só questiona quando ocorre a tragédia. A Lei Kiss, que foi aprovada a duras penas, é flexibilizada o tempo todo. No Estado mesmo, em 2022, dezenas de atividades foram liberadas do licenciamento do Corpo de Bombeiros. Repetindo o que fizeram os antecessores, o governador Eduardo Leite adiou para 2026 a vigência plena da lei, mesmo alterada e descaracterizada.

ROSANE DE OLIVEIRA

27 DE ABRIL DE 2024
MARCELO RECH

Imprescindíveis

Empresário experiente, um amigo costuma definir carinhosamente como "gauchinhos metidos" aqueles que, como ele, não se conformam com limitações de um Estado no extremo de um país periférico e enxergam o mundo como uma extensão da querência. Os gauchinhos metidos fazem deste torrão a plataforma para ganhar o Brasil e o Exterior ou para ser uma vitrine de excelência que atrai olhares de admiração. São, por isso, decisivos para fazer do Rio Grande o que ele representa hoje e o que poderá alcançar no futuro.

Eram gauchinhos metidos os criadores da Varig e da Ipiranga e políticos que moldaram boa parte da história brasileira no século passado. E são gauchinhos metidos muitos dos fundadores e os que tocam hoje empresas como Randon, Gerdau, Évora, Tramontina e Marcopolo, entre tantas outras que visualizam em um mapa-múndi as suas operações. Na cultura, Erico Verissimo e Moacyr Scliar cantaram sua aldeia e seguem universais, assim como o é Yamandu Costa. E, com todo o respeito, há muitas mulheres tão ou mais lindas que Gisele Bündchen, mas foi principalmente sua atitude de gauchinha metida que a levou à glória e ao reconhecimento internacionais.

Na raiz da disposição de conquistar o mundo, está uma pergunta íntima: por que não? O que nos impede, tal e qual europeus ou norte-americanos, de sairmos do casulo que aprisiona potenciais e de amarrarmos pacificamente nossos cavalos simbólicos nos obeliscos das principais capitais do planeta? No fundo, o que nos limita é aceitar, passivamente, que a gaúchos e brasileiros resta nos contentarmos com papéis secundários na grande ópera universal.

Na seleção de gauchinhos metidos, um novo expoente é o empresário Fernando Goldsztein, que, movido inicialmente por uma luta familiar, tomou nas mãos o desafio de buscar a cura do meduloblastoma, o segundo tipo de câncer mais comum na infância. Em 2015, seu filho com então nove anos foi diagnosticado com a doença. Ao constatar que os protocolos de tratamento haviam evoluído quase nada desde os anos 1980, ele fundou e se dedica agora de corpo e alma à The Medulloblastoma Initiative, um consórcio mundial de cientistas que já produziu uma série de avanços no enfrentamento de um câncer de cérebro que acomete 30 mil crianças por ano.

Quando David Coimbra se tratou experimentalmente no Dana-Farber Cancer Institute, em Boston, ele teve a sorte de encontrar no grupo de pesquisadores outro gauchinho metido, o jovem oncologista André Fay. David contava: "O André e os outros caras dizem que estão ali pra achar a cura do câncer. Só isso. E eles vão achar".

Essa é a postura que muda destinos de pessoas, famílias, empresas, Estados e nações. Os imprescindíveis gauchinhos metidos não se gabam nem vivem a reclamar. Simplesmente vão lá e fazem.

MARCELO RECH

27 DE ABRIL DE 2024
INFORME ESPECIAL

O frio na barriga

No próximo dia 7 de junho, entre idas e vindas, vou bater uma marca pessoal: 25 anos desde que pisei pela primeira vez no prédio de Zero Hora, em Porto Alegre. Eu ainda era estudante de Jornalismo e acabava de ser contratada como auxiliar de redação. Detalhe: com o salário de R$ 269,05 (nunca esqueci) e um baita frio na barriga.

Lembrei-me disso nessa semana, quando ouvi o Nelson Sirotsky, nosso publisher (não me pergunte o que isso quer dizer, mas, resumindo, é quem manda na "lojinha"), contando o que sentiu quando teve de falar pela primeira vez na redação.

- Eu tive medo. Até minhas pernas tremiam - confidenciou Nelson, no mesmo local, três décadas depois, arrancando gargalhadas da turma, às vésperas dos 60 anos de nossa querida Zero Hora.

Jornalistas, você sabe, são seres questionadores, céticos e críticos por natureza (para não dizer chatos). Agora imagine isso multiplicado por 200, no mesmo lugar, com todos os olhos cravados em quem está falando - nesse caso, o chefe (nem ele escapa do escrutínio).

Nelson cresceu na Zero Hora, levado pelas mãos do pai, Maurício, e do tio Jayme Sirotsky. É praticamente um de nós. Tem jornalismo nas veias. E, veja bem, ele sentiu medo.

Costumo ouvir, de pessoas que me abordam para conversar, diferentes versões da mesma pergunta:

- Como é trabalhar lá?

No primeiro dia, eu também fiquei apavorada. Primeiro, porque não sabia se daria conta. Segundo, porque essa redação tem história - e prêmios, muitos prêmios, de dar orgulho em qualquer jornal do mundo. Em terceiro lugar, porque ali, diante de mim, estavam os melhores jornalistas do Rio Grande do Sul.

Quem não ficaria aflito?

Enquanto escrevo este texto, olho ao meu redor. Na minha frente, na mesa, está o Rodrigo Lopes, conversando com o Vitor Netto. Ao meu lado esquerdo, o Ticiano Osório finaliza uma página. Do direito, o PG, a Gisele Loeblein e a Carolina Pastl trabalham. Na outra ponta, a Amanda Souza dedilha no teclado, concentradíssima.

É um privilégio trabalhar ao lado de tanta gente interessante. O mais legal são as conversas. Uma hora, é o Rodrigo falando de geopolítica. Dali a pouco, o tema é o filme que o Ticiano indicou em ZH. Quer saber das perspectivas do La Niña? A Gisele fala (e sempre, de algum jeito, nos faz sorrir). E o que dizer da Amanda, que entrou ao vivo, em rede nacional, em pleno BBB, lá do Alegrete?

Trabalhar em um lugar assim é estar ao lado de profissionais que têm muito a dizer. E é ouvir histórias saborosas, hilárias e (às vezes) impublicáveis.

Já não há mais o tec tec contínuo das máquinas de escrever, da época em que a redação era majoritariamente masculina, onde se fumava e - reza a lenda - se bebia muita cachaça. Esse tempo passou.

Hoje, o salão cheio de computadores e telas de TV é um lugar marcado pela diversidade e por um jornalismo adaptado aos novos tempos, no papel, no site, nas redes sociais e no que mais aparecer. Se eu perdi o medo? Sim, perdi. Mas preciso te contar uma coisa: o frio na barriga continua. Como da primeira vez.

É a maior crise de Canoas de todos os tempos. Como o terceiro maior PIB do Estado chegou a esse caos?

SHIRLEY FERNANDES

Presidente da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Canoas, sobre as turbulências politicas, financeiras e de atendimento na saúde enfrentadas pelo município.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem que, em vez de ler um livro, perder algumas horas conversando no Senado e na Câmara.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Presidente da República, cobrando do ministro e de outros membros do primeiro escalação maior participação na articulação política.

Eu tenho erros e acertos, não tenho problema de reconhecer o erro quando eu faço.

ARTHUR LIRA

Presidente da Câmara, no programa Conversa com Bial, admitindo erro ao ter chamado o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, de "desafeto pessoal" e "incompetente".

A nossa bancada não tem como dar acordo. Não há possibilidade de votar favoravelmente.

LUIZ FERNANDO MAINARDI

Líder da bancada do PT na Assembleia, negando apoio ao projeto do governo Leite para elevar a alíquota geral de ICMS de 17% para 19%.

O que mais me dói é saber que ele sofreu lá dentro.

JOÃO FANTAZZINI JÚNIOR

Tutor do golden retriever Joca, cão morto durante transporte aéreo, após a Gol errar o destino e submeter o animal a um tempo de viagem muito superior ao que suportaria.

Fiquem tranquilos, não vamos a lugar algum.

SHOU ZI CHEW

Presidente-executivo do TikTok, após EUA aprovarem lei que pode banir a rede social chinesa do país, prometendo contestar no judiciário a legislação.

Temos que pagar os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso.

MARCELO REBELO DE SOUSA

Presidente de Portugal, que admitiu responsabilidade histórica do país no período colonial em relação a escravidão, massacre de indígenas e saque de bens em terras estrangeiras.

arte

Retrato de um Homem Lendo Jornal

Desde que um alemão chamado Johannes Gutenberg "inventou" a imprensa, com a criação da máquina de impressão tipográfica, no século 15, o hábito da leitura diária se multiplicou e ganhou espaço, também, nas artes visuais. Inúmeras são as obras que reproduzem a ação.

Ao lado, você vê um exemplo disso na tela Retrato de um Homem Lendo Jornal, pintada no início do século 20 pelo artista francês André Derain, um autodidata que começou a carreira aos 15 anos.

Originalmente, o periódico que vemos nas mãos do tal homem era real, colado diretamente na tela. Curioso, né? O quadro pertence ao acervo do Museu Hermitage, que fica em São Petersburgo, na Rússia.

INFORME ESPECIAL

quinta-feira, 25 de abril de 2024


25 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Alpinistas de cancelas

Existem os alpinistas das cancelas do shopping. Os que praticam rapel na hora de mostrar o comprovante de pagamento. Vou explicar. Já testemunhei infindáveis casos. Na saída do estacionamento, no momento de encostar o tíquete no visor eletrônico, o motorista faz a proeza de parar o carro longe do token. Falta braço. É um goleiro de braço curto.

Começa o constrangimento público, absolutamente evitável. Ele fica encalacrado no quase. Estica-se todo pela janela aberta, sem conseguir a validação. É possível escutar, mesmo a distância, os seus ossos estalarem em forçado alongamento.

Com o fracasso, com o engarrafamento aumentando atrás de si, com o medo da buzinada contagiosa dos colegas de ocasião, ele é tomado pela pressa, pela ansiedade, e se lança para uma missão impossível: tirar o cinto e abrir a porta do carro. Só que tampouco quer ter o trabalho de apagar o veículo e andar, recusa-se a empreender a tarefa calmamente do lado de fora.

Não aceita desligar o motor. Não admite desistências. Então, vira um Minotauro: metade gente, metade touro. Mantém incrivelmente o pé no pedal do freio e pisa no chão com o outro, jogando o seu corpo para frente, escalando o topo da montanha da cancela, tentando inutilmente levantar o código de barras do cartão para liberar o acesso.

Não é que seja um péssimo motorista, não é que não goste de balizas. É a crença afoita de que passará pela cancela, não precisará estacionar na cancela como se fosse uma vaga provisória. Ele executa uma decisão equivocada, intuitiva.

Pensa que será uma transição rápida, e não capricha. Encalha na passagem. Nem sempre tem um fiscal por perto para acudir. Nem sempre ocorre a leitura automática da placa por câmera. Além da coreografia cômica, não há como o espectador da confusão não temer um desastre.

Seria muito mais prudente aceitar a primeira falha para não vacilar tanto depois. Seria muito melhor dar uma ré quando havia espaço de retaguarda e alinhar as rodas para se colocar mais próximo.

A cena ilustra nossa resistência ao recuo. Temos uma noção de que recuar é covardia, é ausência de convicção, é derrota moral, e realizamos parvoíces em nossa vida. Avançamos mesmo estando errados, e apenas acentuamos nossa conduta desfavorável.

Uma grande mentira já foi pequena antes. O tempo que você levou para assumir a verdade é que aumenta a gravidade da situação. Um grande erro já foi ínfimo antes. O exaustivo adiamento até a reparação é que o torna irreversível.

O perigo mora nos detalhes. Retroceda no ato. Desculpe-se enquanto age.

CARPINEJAR

25 DE ABRIL DE 2024
OPINIÃO DA RBS

POTENCIAL SUBAPROVEITADO

O país tem um considerável espaço para aumentar a movimentação de cargas em suas águas internas, diminuindo custos e desafogando rodovias. Um estudo publicado em fevereiro pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) apontou a existência de 20,1 mil quilômetros de hidrovias economicamente viáveis no país. Ainda assim, seria menos da metade da real extensão aproveitável. 

Mas é um potencial que começou a ser mais bem explorado, como mostrou o Anuário Agrologístico da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), conhecido nesta semana. Nos últimos 13 anos, o escoamento de milho e soja por hidrovias no país cresceu de 3,4 milhões para 30 milhões de toneladas. Em 2010, o modal tinha uma participação de 8% no escoamento da safra. A fatia chegou a 19% no ano passado, após chegar a 23% em 2022.

O transporte hidroviário não é viável em todas as regiões. Depende da existência de rios e outros grandes corpos d´água navegáveis. O Rio Grande do Sul é um dos Estados privilegiados e pode avançar com hidrovias em trechos dos rios Gravataí, Jacuí, Taquari, Caí e Sinos, no Guaíba e nas lagoas dos Patos e Mirim. Os gaúchos, aliás, foram no século 19 pioneiros nesta alternativa no país.

Na década de 1970, eram aproximadamente 1,2 mil quilômetros de vias navegáveis no Estado. Hoje, seriam cerca de 770 quilômetros, indicam entidades e órgãos públicos vinculados ao setor. Três anos atrás estimava-se que apenas 3% do fluxo de mercadorias no Rio Grande do Sul ocorria por hidrovias. Especialistas avaliam que seria possível chegar a algo próximo de 12%. 

Dragagens insuficientes, sinalização precária e burocracia para a criação de terminais privados vinham sendo citadas ao longo do tempo como principais entraves. Talvez seja inviável retomar a extensão utilizável de meio século atrás, mas é possível ao menos viabilizar os trechos existentes para ampliar o transporte de granéis em grande volume. Existe espaço não apenas para grãos, mas para celulose, petroquímicos e fertilizantes, produtos exportados e importados pelo Estado.

Alguns movimentos trouxeram alento e outros podem contribuir para a recuperação do modal. A legislação portuária foi modernizada e permitiu o surgimento de mais terminais privados. Há processos de concessão em andamento. Uma hidrovia entre o Brasil e o Uruguai é considerada prioridade pelo governo federal e espera-se para este ano a dragagem da Lagoa Mirim. O Palácio Piratini, ao mesmo tempo, iniciou em fevereiro um processo de atualização do Plano Estadual de Logística e Transportes (Pelt), que também analisará a infraestrutura existente e as demandas do modal. O estudo deve estar concluído em 2025.

Cerca de 90% da matriz de transporte do Rio Grande do Sul é rodoviária. Há boa margem para elevar a participação dos modais ferroviário e hidroviário, desde que se solucionem gargalos. Ambos, para cargas de maior volume, são mais competitivos e ambientalmente vantajosos. Um maior aproveitamento também aliviaria as rodovias de veículos pesados, com ganhos para a segurança dos demais usuários e menor pressão relacionada aos custos de manutenção das estradas.


25 DE ABRIL DE 2024
SISTEMA FEDERAL

Invasão atingiu TSE; desvio soma R$ 14 mi

A invasão ao Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi) pode ter atingido mais órgãos federais e levado ao desvio de R$ 14 milhões.

A investigação da Polícia Federal (PF) apontou que, além do Ministério da Gestão e da Inovação, recursos públicos também podem ter sido desviados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo apurou que os recursos transferidos indevidamente estavam reservados para o Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), empresa de tecnologia do governo federal, e deveriam custear serviços de tecnologia da informação, suporte a sistemas eletrônicos e manutenção de bases de dados oficiais.

O dinheiro, no entanto, foi parar em diversas contas bancárias diferentes, algumas de empresas e outras de pessoas físicas que teriam sido usadas como laranjas pelos criminosos. Ao menos parte do valor desviado teria sido perdido.

Os desvios teriam ocorrido em dois ataques, um no fim de março e outro em abril (leia mais abaixo).

Suspeito

Na terça-feira, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, disse que um dos envolvidos no crime já foi identificado.

- Parece que um dos responsáveis já foi identificado, mas não tenho nome, nada disso, porque a investigação está sendo feita sob sigilo - alegou.

Após a confirmação da invasão, o governo federal mudou as regras de acesso ao sistema para obter mais segurança. Antes, usuários tinham uma senha ou podiam entrar usando a plataforma gov.br, forma de acesso única para diversos serviços públicos.

Gestores financeiros e ordenadores de despesa dos órgãos da União (ou seja, aqueles responsáveis por autorizar diretamente o pagamento) precisavam também ter um certificado digital para movimentar os recursos.

Agora, esse certificado precisa necessariamente ser emitido pelo Serpro e não pode ser fornecido por outras empresas privadas.

Devido ao sigilo do inquérito, o TSE não comentou a situação envolvendo os recursos. Até agora, só foi confirmada a recuperação de R$ 2 milhões.


25 DE ABRIL DE 2024
TULIO MILMAN

Confissão de culpa

A notícia acabou diluída entre o tsunami diário de informações, mas merece uma parada para reflexão. Com amplo apoio, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei, sancionada ontem pelo presidente Joe Biden, que pode banir um dos aplicativos mais populares do mundo entre os jovens. O TikTok tem 150 milhões de usuários nos EUA. No Brasil, onde por enquanto os efeitos desta lei não chegam, são cerca de 100 milhões.

O pretexto para a aprovação das restrições nos EUA é a ameaça à segurança nacional causada pelo mau uso dos dados dos usuários. O vilão da vez é o conjunto secreto de instruções e regras que fazem o programa funcionar, conhecidos como algoritmo. De acordo com o governo e com os legisladores americanos, o TikTok é, de fato, apenas uma cortina para colher informações que podem ser mal usadas. Se você chegou até aqui no texto, pode estar confuso. Afinal de contas, por que o TikTok é tão mais perigoso do que o Facebook e o Instagram? Todos têm algoritmos secretos, programados sem qualquer transparência e utilizados para fins que apenas uma dúzia de pessoas realmente conhece.

Ocorre que o TikTok é chinês. Os outros, não.

Basta mergulhar meio centímetro abaixo da superfície visível do debate para concluir que a lei americana nada mais é do que uma gigantesca confissão de culpa, uma admissão ruidosa de que redes sociais e buscadores de internet (Google) são, na verdade, algo muito diferente do que diz a sua propaganda. Eles não nos fornecem informações ou ajudam a nos comunicarmos: eles nos surrupiam dados e os utilizam de acordo com os seus interesses, não com os nossos. Mas se a China faz isso, aí é um perigo.

Não devemos ser contrários à tecnologia, mas sim à falta de transparência. E, nesse sentido, embora por caminhos tortos, a decisão do Congresso americano é um ponto de inflexão no debate.

De fato, nada vai acontecer imediatamente. A decisão dá, no mínimo, nove meses para que os chineses vendam sua operação a uma empresa "amiga". É certo que a polêmica irá parar na Suprema Corte americana. Lá, duas teses se enfrentarão. De um lado, os defensores da liberdade absoluta de expressão. Do outro, os que acreditam que tudo precisa de regras claras para funcionar bem. Mas os entusiastas dessas posições podem mudar quando os envolvidos se chamam "governo chinês, povo americano e Tik Tok", em vez de "X, Elon Musk e Alexandre de Moraes".

TULIO MILMAN

quarta-feira, 24 de abril de 2024


24 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Inversões do mapa

Um de meus pintores prediletos é o uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949). Há 80 anos, ele criou o manifesto A Escola do Sul, em que, de modo transgressor, virou o desenho da América de ponta cabeça.

Ele defendia: "Nosso norte é o sul. Não deve haver norte para nós, exceto em oposição ao nosso sul. Portanto, agora nós viramos o mapa de cabeça para baixo, e então temos uma ideia verdadeira de nossa posição, e não como o resto do mundo deseja. O ponto da América, de agora em diante, para sempre, aponta insistentemente para o sul, nosso norte".

Combateu o eurocentrismo das cartografias com a sua emblemática gravura a caneta e tinta da América Invertida e sua teoria que divergia do rótulo de Terceiro Mundo. Afinal, todos sabemos que a Europa foi alargada e a extensão territorial da América do Sul e da África, estrangulada.

A imagem exibia, pela primeira vez na iconografia planetária, uma representação da América do Sul fora de sua posição-padrão, orientada pelo sul no topo. Uruguai passaria a ocupar um posto de destaque, assim como Rio Grande do Sul, alçado para a cabeça geográfica, não mais relegado aos pés do continente.

Não me causou estranheza, portanto, a atitude do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que colocou à venda seu novo mapa-múndi, mostrando o Brasil no centro do mundo, com o Meridiano de Greenwich um pouco à direita do comumente estabelecido. A edição esgotou em menos de 24 horas e causou rebuliço nas redes sociais por um indisfarçável patriotismo.

Quem diria que o bordão bolsonarista, "Brasil acima de tudo", pintaria no atual governo, remodelando-se numa estratégia de incorporar para si os benefícios do nacionalismo na retomada da economia e também servindo de cartão de visita para a cúpula do G20, grupo das 20 maiores economias, que ocorrerá no Rio de Janeiro, em novembro.

É um exercício de imaginação mais do que uma constatação científica. Conserta-se a ideologização do mapa com novas distorções ideológicas. Para entender a natureza dessa lacração, é interessante constatar que não criamos a roda, o movimento é global. Rússia, Japão, China, Austrália e Argentina já fizeram isso, seguindo o princípio de que o centro do mundo é onde começa o seu olhar.

A visão não seria mais a geral, como se fosse a de um drone, mas particular, com a origem em cada país. O GPS da ilustração estaria ligado ao ponto de partida. A tendência de colocar o país em evidência e se opor ao imperialismo americano ou à colonização europeia pode trazer uma mudança positiva de mentalidade.

Carregamos, dentro de nós, o estigma de que moramos longe dos grandes acontecimentos, de que ser visitados por turistas estrangeiros é quase um favor da parte deles, ou uma fuga, ou uma pura excentricidade.

Em Porto Alegre, por exemplo, estranhamos quando encontramos alguém falando inglês na rua. Consideramos um evento incomum, por um distanciamento mental embutido em nossas condutas, efeito colateral da baixa autoestima, de um complexo de vira-lata sarnento.

Nosso ímpeto é ficar perto, ouvir a conversa indiscretamente, esperando o momento certo para interpelar a figura: - What are you doing here? You seem to be lost. (O que você está fazendo aqui? Parece estar perdido.)

CARPINEJAR

24 DE ABRIL DE 2024
OPINIÃO DA RBS

O MAL DO JURO

O mal causado à atividade pelo juro alto é bem ilustrado por um levantamento publicado na edição de segunda-feira do jornal Valor, especializado em economia e negócios. Informações colhidas em balanços de 386 empresas de capital aberto e não financeiras indicam que o gasto com o pagamento de juros em 2023 chegou a R$ 306,8 bilhões, um acréscimo de 8% ante o exercício anterior, superando os montantes direcionados a investimentos, R$ 298,7 bilhões. Em 2022, os valores aplicados nas atividades dessas companhias eram maiores do que as despesas financeiras.

O Banco Central (BC) manteve a taxa Selic no ápice de 13,75% ao ano entre agosto de 2022 e o mesmo mês do ano passado. Iniciou o ciclo de corte em setembro. Apesar do começo do afrouxamento, as empresas ainda sentiram os efeitos do aperto. A política monetária tem efeitos defasados no tempo. Quando as empresas têm de destinar mais dinheiro para pagar juro, menor é a disponibilidade - e a própria disposição - para investimentos produtivos. A prioridade é proteger o caixa. Isso afeta o potencial de crescimento da economia no médio e no longo prazo e, por criar gargalos, também gera riscos inflacionários.

É uma circunstância que explicita a importância de o país fazer a sua parte para produzir condições estruturais favoráveis a uma redução do juro a patamares razoáveis. Ainda ontem, o BC publicou a mais recente edição do Boletim Focus e as estimativas do mercado para a Selic ao final do ano subiram de 9,13% para 9,5%. A variação é significativa para o intervalo de uma semana. 

As expectativas no Focus costumam se mover de forma mais lenta. Por óbvio, entre as razões estão as tensões geopolíticas e a demora maior do banco central norte-americano para iniciar o seu ciclo de corte do juro. Mas também reflete a piora das perspectivas fiscais do Brasil, após a desistência do governo federal de gerar superávit em 2025.

Uma boa notícia para o Planalto veio da arrecadação de março. Alcançou R$ 190,6 bilhões, recorde para o período e uma alta real de 7,22% ante igual mês do ano passado. Mesmo assim, nota-se uma desaceleração em relação a fevereiro, o que já era esperado, confirmando as projeções de que o governo continuará longe das metas fiscais se insistir apenas em medidas arrecadatórias. Para este ano, o objetivo oficial, cercado de ceticismo, ainda é zerar a diferença das colunas de despesas e receitas.

Deve-se outra vez insistir na necessidade de cortar e racionalizar gastos para alcançar a sustentabilidade das contas do país e evitar uma trajetória perigosa da dívida pública no futuro, o que se traduziria em juros mais restritivos e economia cambaleante. Não é algo abstrato. Afeta a vida de todos os cidadãos.

O secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, voltou a acenar nesta semana com revisão de despesas e busca por eficiência nos gastos. Mas foi evasivo ao ser questionado sobre medidas efetivas. A ministra de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, periodicamente cita uma proposta de reforma administrativa. Mas é uma agenda que não avança no governo ou empolga o núcleo do poder. Quem manda, afinal, é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que ontem voltou a reclamar das críticas sobre gastos do Executivo. Sintomático. Para completar, há as incertezas das pautas-bomba gestadas no Congresso.

Tudo isso somado eleva a desconfiança e pressiona os juros futuros. O risco é se estar penhorando o crescimento econômico dos próximos anos.