sexta-feira, 30 de junho de 2017


Jaime Cimenti

Rua da Praia, 27/06/2017 

Eu não ia escrever sobre a Rua da Praia, mas a conheço há mais de 60 anos. Caminho por ela três ou quatro vezes por semana, e ela pediu encarecidamente ao modesto cronista que falasse com ela. Então achei melhor não a contrariar e cumprir minha tarefa de biografar o cotidiano com todo o prazer e sem cobrar mais caro por isso. Me conta a Rua da Praia que o Carlos Reverbel disse que ela está enterrada no belo livro de Nilo Ruschel, que tem foto em cores de seus paralelepípedos na capa. Ela me disse que os dois queridos é que estão enterrados. 

A Rua da Praia disse que não gostou muito quando o Iberê Camargo falou que ela revelava o achinelamento nacional, mas o perdoou e reza por sua alma. A Rua da Praia, ou Andradas, para os oficiais, me conta que já foi moça e mulher vestida com roupas elegantes, joias finas, artigos de luxo e frequentadora de lojas, restaurantes, bares e confeitarias requintados. Hoje, me diz ela, me sinto mais popular, democrática, diversa e meu comércio gira em torno de farmácias, telefones, moda mais básica, spinners e outras mercadorias vendidos por camelôs. 

Os camelôs, ou melhor, vendedores ambulantes, mesmo quando estão parados e não deambulam, seguem na Rua da Praia, vendendo roupas novas e usadas, brinquedos, acessórios para telefone, chapéus, livros e dezenas de coisas mais. Os músicos da Rua da Praia, me conta ela, nunca tiveram nível tão alto e seguem a antiga tradição de se apresentarem no palco mais digno que existe: na praça e na via pública, para deleite de muitos passantes. 

A Rua da Praia me diz que não pretende morrer tão cedo e que torce por revitalizações diversas, especialmente a do cais Mauá. Me diz a Rua que gostaria de mais companhia de noite e aos fins de semana, e que sonha com mais moradores e atividades profissionais no Centro Histórico. 

Não sou saudosista e não me sinto diminuída por contar agora com passantes mais populares e comércio mais modesto, diz a Rua da Praia, que segue viva e torcendo para que os escritórios, lojas e apartamentos desocupados sejam logo alugados, dando mais movimentação e energias ao local. A Rua da Praia me disse que não tem ciúmes da Padre Chagas, sua irmã mais moça e de menor extensão, que hoje se tornou o vale do silicone e conta com menobares - rincões do climatério, calçadas da fama e da grana e outras firulas. 

A Padre é outra praia, é outra passarela, me disse a Andradas, com sua majestade antiga e sua história incomparável. Hoje, 27/06/2017, a Rua da Praia me ofereceu momentos felizes e surpreendentes. No edifício número 1.512, ocupado pela Associação Nacional de Aposentados pela Previdência Social (Anapps), às 15h, no térreo, estavam aposentados cantando e dançando, inclusive contando com uma rainha com faixa e tudo. Toda terça tem festa, das 14h às l6h, para alegria de muitos que se divertem e esquecem de suas dificuldades de aposentados pelo INSS. Sinto-me feliz com isso, disse a Rua da Praia. 

a propósito... 

A Rua da Praia disse que aguarda, ansiosamente, pelo dia do conserto do piso de basalto e pelas obras de revitalização previstas pela prefeitura. 

Disse que quer seguir democrática, plural, popular, diversa e única, especialmente na esquina democrática, palco livre de todos para variadas manifestações, políticas, musicais, comerciais e outras que a cidadania achar conveniente. A Rua da Praia pede que tudo seja feito na Santa Paz, que é o melhor para todo mundo. 

A Rua da Praia deu tchau pedindo para eu não desaparecer, mesmo que deixe de trabalhar no Centro. Disse que gosta muito da gente, que sem as pessoas se sente tão sozinha como um pé de sapato sem o outro, como disse o Mario Quintana, que ainda caminha por ela.  - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/06/colunas/livros/570645-o-libano-no-brasil.html)

Jaime Cimenti
O Líbano no Brasil 

Todos sabemos que o Líbano se transferiu em peso para o Brasil. Esta é a sensação de muitos libaneses que agora vivem por aqui. Na 32ª Bienal de Arte de São Paulo, o artista libanês Rayyane Tabet disse que, desde a sua infância, imaginava que no Brasil cada libanês tinha um sósia que poderia salvá-lo e que, no final das contas, os libaneses "daqui" resgatariam os libaneses de "lá". O território libanês é pequeno, minúsculo. Esteve e ainda está envolvido por muitas desditas e desventuras e também os brasileiros sentem a presença libanesa avassaladora e a grande presença da colônia libanesa, qualitativa e quantitativamente falando. 

No comércio, na indústria, política, finanças, medicina e culinária, entre outras áreas, os libaneses estão presentes. Nas ciências humanas, de modo geral, entre historiadores, antropólogos, atores, autores, linguistas, gramáticos, jornalistas e escritores figuram com destaque os libaneses e seus descendentes. 

Arabia Brasilica (Ateliê Editorial, 166 páginas, tradução de Letizia Zini Antunes e Valéria Vicentini), do professor Alberto Sismondini, subdiretor do Centro de Línguas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, trata de alguns grandes escritores brasileiros de origem libanesa ou com ela relacionados, como Jorge Amado, Alberto Mussa, Michel Sleiman e mais especialmente Salim Miguel, Raduan Nassar e Milton Hatoum. Alberto tem estudado com profundidade a literatura brasileira e principalmente investigado sobre autores brasileiros de origem libanesa. 

Ele é autor do ensaio I Cedri del Sertão, publicado na Itália. Os "turcos" e suas representações na literatura brasileira é tema abordado no livro e relacionado com Carlos Drummond, Guimarães Rosa e Jorge Amado. A emigração libanesa contada no Brasil fala de Ana Miranda e do livro Amrik. 

O ensaio mais importante do volume aborda três grandes escritores brasileiros de origem libanesa. Salim Miguel, autor de Nür na escuridão, a história de sua família marcada pela diáspora; Milton Hatoum, nascido na Amazônia e autor de Relato de um Certo Oriente e Dois Irmãos; e Raduan Nassar, autor de poucos livros, mas de grande repercussão, como Lavoura arcaica e Copo de cólera. 

O autor analisa profundamente a obra dos três grandes autores, relaciona-as com outras obras de ficção e de crítica literária e apresenta estudos de outros especialistas, como Leyla Perrone-Moisés, que estudou Lavoura Arcaica e o candente tema do incesto. Com o estudo do autor, às três Arábias do mundo clássico acrescenta-se, então, uma Arabia Brasilica, que dá título à obra. Diante da importância da colônia libanesa no Brasil e do porte de escritores de origem libanesa, deve ser saudada a obra. 

lançamentos 

Correr com Rinocerontes (Não-Editora, 290 páginas), do escritor e professor Cristiano Baldi, romance bem estruturado, com temática forte e linguagem criativa, narra sobre as andanças de um gaúcho que volta de São Paulo para enfrentar problemas familiares no Sul. Victória - Uma saga italiana no interior do Rio Grande (AGE Editora, 478 páginas), da atriz e bailarina porto-alegrense Ana Guasque, é um grande e denso romance sobre uma família imigrante italiana que deixou como legado uma cidade no Pampa: Chiapetta. 

O Um - inquérito parcial sobre o caso Ingo Ludder (Editora Bestiário, 160 páginas), do sociólogo e escritor Antonio D. Cattani, traz uma sedutora e movimentada novela policial. Na contracapa, uma frase para alertar e instigar os leitores: "e se isto não for uma ficção?". - Jornal do Comércio (http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2017/06/colunas/livros/570645-o-libano-no-brasil.html)


30 de junho de 2017 | N° 18885
CINEMA

PARA RIR E CHORAR EM FAMÍLIA

COMÉDIA DRAMÁTICA FRANCESA com Omar Sy, astro do sucesso de bilheteria Intocáveis, é refilmagem de produção mexicana

O estrondoso sucesso internacional da comédia dramática Intocáveis (2011), um dos filmes franceses de maior bilheteria de todos os tempos, catapultou a carreira de Omar Sy até Hollywood, onde já atuou em superproduções como X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (2014), Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros (2015) e no ainda inédito por aqui Transformers: O Último Cavaleiro (2017). O ator francês volta agora ao registro agridoce em Uma Família de Dois (2016), que entrou em cartaz nesta semana na Capital. 

O primeiro longa-metragem dirigido pelo roteirista Hugo Gélin é a refilmagem do sucesso mexicano de público Não Aceitamos Devoluções (2013), comédia dramática escrita, dirigida e estrelada por Eugenio Derbez. Tanto no original quanto no remake, a história fisga o espectador inicialmente graças ao carisma do protagonista e depois pelo comovente relacionamento entre um pai nada convencional e sua adorável filha.

Em Uma Família de Dois, Samuel (Sy) é um sujeito sem muitas preocupações a não ser fazer festa e flertar com as turistas na ensolarada praia no sul da França onde trabalha pilotando uma lancha. A boa vida, porém, termina quando ele recebe a inesperada visita de uma ex-namorada, que simplesmente deixa sob sua responsabilidade um bebê de poucos meses, que a garota informa ser filha de Samuel. 

Em pânico com a súbita paternidade, o personagem corre para Londres a fim de encontrar Kristin (Clémence Poésy, a Fleur Delacour das duas partes de Harry Potter e as Relíquias da Morte) e devolver-lhe a pequena Gloria. Samuel, no entanto, perde o rastro da mãe e acaba ficando pela capital inglesa, onde é acolhido por Bernie (Antoine Bertrand), produtor de TV que lhe arranja um emprego como dublê. Oito anos mais tarde, com pai e filha vivendo felizes e inseparáveis, Kristin reaparece querendo recuperar Gloria (Gloria Colston).

Se o grande trunfo de Não Aceitamos Devoluções e Uma Família de Dois é a empatia despertada respectivamente por Eugenio Derbez e Omar Sy, o problema de ambos os títulos também é da mesma natureza. A narrativa flui com graça enquanto a trama mantém-se no registro mais cômico do pai atrapalhado que faz de tudo para agradar a filha; a partir do reaparecimento da mãe da menina, entretanto, o tom pende em excesso para o melodrama lacrimejante e assume um viés desajeitado de “filme de tribunal” misturado com “filme de doença”.


ROGER LERINA | ROGER.LERINA@ZEROHORA.COM.BR


30 de junho de 2017 | N° 18885 
CLÁUDIA LAITANO

Poesia numa hora dessas?!

Descobri João Cabral de Melo Neto pelo poema O Cão sem Plumas. Era o começo dos anos 1990, e eu fazia parte de um grupo de amigos que se reunia de tempos em tempos para ler, beber e descobrir autores novos que a turma andava lendo (com frequência, mais o segundo do que os outros dois). 

Em uma dessas reuniões, levei O Cão sem Plumas para o encontro e foi um sucesso – o que, em uma roda literária, significa que a pequena plateia não apenas não bocejou como pediu bis (“O que vive fere./ O homem, / porque vive, / choca com o que vive. / Viver / é ir entre o que vive.”). Como a mim e aos meus amigos, esse poema só lâmina marcou também a coreógrafa Deborah Colker – a ponto de ela lançar-se ao desafio de transformar o texto em um espetáculo de dança. O resultado está em cartaz, hoje e amanhã, em Porto Alegre. (Leia mais no Segundo Caderno.)

O espetáculo de Deborah Colker chega ao teatro em um ano especialmente poético – pelo menos no cinema. Quatro filmes que estrearam em Porto Alegre nos últimos meses celebraram não apenas a palavra escrita, mas sua forma mais sofisticada e exigente, a poesia. O ótimo Patterson, de Jim Jarmusch, narra a história de um motorista de ônibus (Adam Driver) que se distrai – e abstrai – do cotidiano fisicamente extenuante e repetitivo da profissão escrevendo poesias. 

(Os belos textos que ouvimos e lemos na tela são do poeta americano Ron Padgett, alguns deles escritos especialmente para o filme.) Neruda, de Pablo Larraín, com Gael García Bernal no papel principal, e Além das Palavras, filme de Terence Davies sobre a americana Emily Dickinson, são cinebiografias de poetas consagrados. Já o delicado, comovente e imperdível Quem é Primavera das Neves, de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, ainda em cartaz na cidade, é uma cinebiografia de uma poeta desconhecida que passou boa parte da vida traduzindo a poesia alheia.

Poesia Numa Hora Dessas?! é o título de uma seção que Luis Fernando Verissimo vem publicando, já há alguns anos, em jornais e revistas – coleção reunida em livro, em 2010, pela editora Objetiva. A sacada genial do Verissimo é que a questão/reafirmação “numa hora dessas?!”, quando nos referimos à poesia, adapta-se a todas as horas e nunca corre o risco de soar anacrônica. Isso porque, para muita gente, a arte é sempre um convidado estabanado que aparece cantarolando na festa sem perceber que o teto e as paredes em volta estão desabando.

Por sorte, para muitos outros, a poesia é exatamente o que nos ajuda a permanecer lúcidos enquanto o céu e o chão parecem desabar. O que vive fere, mas, para viver, é preciso estar entre o que vive.



30 de junho de 2017 | N° 18885 
DAVID COIMBRA

Sophie

Chega de falar em Temer, Lula, Dilma, Renan e Cunha. Chega! Vamos falar de mulher. Vamos falar de Sophie Charlotte.

Quem encomendou esse tema, solicitando com essa candência exclamativa, foi meu amigo Nelson Guahnon, o Cabeça, pai de um craque, o Gúti – você ainda vai ouvir e ler muito sobre o Gúti.

O Cabeça é um devotado admirador da Sophie Charlotte desde que ela não passava de uma adolescente recém-egressa de Malhação – o Cabeça é um descobridor de talentos.

Já eu sou mais difícil. Só fui reparar em Sophie depois que ela cantou Sua Estupidez com o Rei. Ela levitava dentro de um vestido branco que lhe deixava os ombros morenos nus. Olhos negros de corça, lábios vermelhos de carmim, dentes brancos de marfim, Sophie murmurava para Roberto:

– Eu te amo... Eu te amo... Penso tê-lo visto estremecer.

Sophie é meio alemã, meio brasileira. Como o grande Arthur Friedenreich, só que o contrário, porque ela é nascida em Hamburgo, filha de pai brasileiro e mãe alemã, e ele nasceu em São Paulo, filho de mãe brasileira e pai alemão.

A mãe de Friedenreich era uma lavadeira negra, o pai, um branquicela. Friedenreich saiu mulato de olhos verdes. Naquele tempo, anos 20 do século 20, os maiores clubes brasileiros não aceitavam negros no time, com exceção do Vasco da Gama. 

Assim, para poder jogar, Fried disfarçava a negritude: alisava os cabelos com gomalina e aplicação de toalhas quentes, e a cútis amarronzada alegava ser obra de saudável exposição ao sol dos trópicos. Colava. Não porque as pessoas se enganassem, mas porque ele fazia gols a mancheias. Antigos jornalistas registraram que Fried marcou 1.239 gols. Quase um Pelé.

Sophie também é craque. Ela canta, como mostrou no especial do Rei, dança, que é bailarina, e atua docemente. Nessa série da Globo, Os Dias Eram Assim, Sophie começou como uma jovenzinha de minissaia, rebelde e desafiadora, que pulava a janela da casa dos pais para passar uma tarde em liberdade, e está terminando como uma mulher feita, ainda inquieta, mas levemente torturada pela conformação com os fracassos da existência.

Depois que o Cabeça enviou aquela mensagem pedindo “Chega de Temer e Lula, escreva de Sophie!”, depois daquilo parei em frente à TV e me pus a observá-la com mais critério. Concluí que o Cabeça tem razão. Para que perder tempo com essas velhas fuinhas e suas tramas sórdidas se podemos olhar criaturas como Sophie e sorver sua arte escorreita e sua beleza luzidia, se podemos apreciar as boas coisas da vida?

Ah, essa gente má nos faz mal. Mas não gente como Sophie Charlotte. Sophie Charlotte é um antídoto. Há outros por aí: o murmúrio das ondas do mar, a risada do filho, o carinho da mulher amada, o chope gelado e a alegria de poder dar um presente a um amigo, como esta crônica que escrevi para o Cabeça, o pai do Gúti, quem sabe o nosso próximo Friedenreich. E que escrevi também para você, só para lhe dizer: esqueça os azedumes do dia, olhe para a vida em volta, escolha um antídoto, sirva-se à vontade. E seja muito mais feliz.

quinta-feira, 29 de junho de 2017



29 de junho de 2017 | N° 18884
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Festas julinas?

CELEBRAÇÃO DE SÃO JOÃO em julho também é festa junina

Houve um tempo em que as festas dedicadas aos três santos mais populares do Brasil – Santo Antônio, São João e São Pedro – eram, com a pontualidade de um relógio suíço, comemoradas nos dias 13, 24 e 29 de junho. Não é por acaso que elas caíam sempre nesta quadra do ano; na origem, elas eram grandes festas pagãs que saudavam a chegada do solstício de verão no Hemisfério Norte, mais tarde fagocitadas pelo calendário católico. Como ninguém pensaria em pular fogueira, dançar a quadrilha e encenar um casamento na roça em qualquer outro mês do ano, a denominação festa junina servia como uma luva.

Nos últimos dez anos, contudo, um certo senso prático terminou desvinculando a festa do seu dia correspondente na folhinha. Muitos lamentaram essa flexibilização, vendo nela um claro sinal de decadência das tradições; o certo é que, seja por conveniência ou por necessidade, a festa de São João hoje pode ocorrer em outros dias que não o 24 de junho, às vezes até invadindo o mês seguinte (vejo, com espanto, inveja, admiração – e com certo desânimo – que ela se estende ao longo de uma quinzena, quando não de um mês inteiro, em certos municípios do Norte e do Nordeste).

Como era de esperar, estas alterações cronológicas vieram criar uma indecisão quanto à maneira adequada de designar essas festas. Todos os anos – sem exagero – vêm leitores perguntar a mesma coisa: como devemos chamá-las? Dentre as várias consultas, costumo selecionar uma para, respondendo a ela, responder também a todas as demais.

Desta vez, a escolhida foi a de Solange W. de São Miguel do Oeste, SC. Ela informa que, por causa dos transtornos causados pelas últimas chuvas, a festa junina de seu colégio, que estava marcada para terça-feira, 27 de junho, teve de ser transferida para a semana seguinte, dia 4 de julho. 

Até aí, nenhum problema – a não ser que tiveram de fazer uma reunião para decidir que dizeres constariam nas faixas e nos cartazes. “Grande parte do grupo votou por julina; o resto achou que tinha de ficar junina, mesmo. Houve dois votos para juliana, e a diretora se retirou da reunião, sugerindo que escrevêssemos logo Festa de Julho. E o senhor, professor? O que o senhor escreveria na faixa? Disseram-me que o senhor é inimigo jurado de julina...”.

Mais ou menos, Solange; inimigo eu não sou – apenas acho que ela, apesar da boa intenção dos que a divulgam, é uma criação desnecessária e equivocada. A língua não gosta de supérfluos... O argumento dos que defendem julina não é absurdo; bastaria preencher a linha pontilhada: se a festa que ocorre em junho é junina, a que ocorre em julho deveria ser .... Sinto dizer, porém, que não é assim que acontece. O adjetivo junino há muito deixou de constituir uma simples referência ao mês do calendário e passou a designar um tipo muito especial de festa, com características muito bem definidas, com pequenas variações regionais de cardápio. 

Se algum de teus colegas quiser comemorar o aniversário de seu filhinho com uma típica festa junina, tenho certeza de que vai providenciar uma boa fogueira, vai soltar balão (com a devida prudência), vai contratar um bom D.J. sanfoneiro, servir quentão (para os adultos), pipoca, pé-de-moleque e pinhão (nos estados do Sul) – mesmo que o aniversariantezinho tenha nascido em maio, em julho ou em setembro.

Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente às quintas-feiras.


29 de junho de 2017 | N° 18884
ARTIGOS | GILBERTO STÜRMER

ESPAÇO MEU. ESPAÇO NOSSO

Como não ser triste o ambiente acadêmico, onde se deve zelar pelo conhecimento, educação e excelência, ainda contratar os que andam no sentido contrário do que é urgente: a promoção da diversidade?

Eu já fui âncora de dois telejornais, inclusive um deles na universidade e outro em rede nacional. Mas tive pais, mestres, colegas e um orientador que sempre me encorajaram. Nunca me alisavam os cabelos, nunca maquiaram minha pele com uma cor que não me honrasse, não me obrigaram a mudar minha personalidade, nem me afastaram do que me levou para o jornalismo: a cultura marginal, o skate, o hip hop, a arte urbana, a rua.

Neste novo momento no Grupo RBS, como repórter de cultura e comportamento para o Jornal do Almoço, tenho mais uma vez espaço para minha bagagem de 37 anos, mas não é só pra mim. É pra mim e pra ti que escutou de professor que não pode/não será porque tem a pele preta.

Pra ti que carrega a bandeira de arco-íris e luta para ser aceito num corpo em que tu não te reconhece. Pra ti que é trans, que é bi, que é rua, que embala o skate e que tem os dedos sujos de spray e canetão. Pra ti que entra na lojas e não se vê nas vitrines, e a modelagem das peças não cabem no teu corpo “fora do padrão”.

Pra ti que compra de marcas locais e reforça a moda com mão de obra justa. Pra ti que aprova teu evento em cima da hora porque até então não tinha patrocinador e realiza na “guerreiragem” com as caixas de som na rua. Esse novo espaço é pra mim e pra ti, porque pra gente que sempre precisa provar mais, meu espaço é nosso. Eu só sei ser assim: nós por nós, pela música, pela arte, pela cultura para todos e todas. #resistência

“Sou porta-voz de quem nunca foi ouvido. Os esquecidos lembram de mim porque eu lembro dos esquecidos.” – Emicida

REFORMA TRABALHISTA E MODERNIDADE

O projeto de lei de reforma trabalhista, em nenhum momento, retira direitos fundamentais dos trabalhadores empregados (convido àqueles que não o leram, que o façam). O PLC 38/2017 mantém integralmente os direitos sociais trabalhistas – as chamadas cláusulas pétreas da Constituição de 1988. Não fosse a questão formal (lei não pode alterar a Constituição), o conteúdo existente não só moderniza as relações de trabalho como amplia direitos para aqueles que hoje estão fora do sistema.

A CLT não está sendo “rasgada”, mas, sim, melhorada e adaptada à realidade atual. Não é verdade que a jornada passará a 12 horas – a Constituição fala em oito horas; não é verdade que direitos como férias, 13º salário e FGTS serão suprimidos. Pelo contrário: pessoas que hoje não estão contempladas com esses direitos, mas que estão no mercado, como os trabalhadores intermitentes, terão direito a férias, gratificação natalina e FGTS.

O tão propalado “negociado sobre legislado” trata de questões corriqueiras e que pretendem adaptar as diversas categorias à sua realidade. A Convenção Coletiva de Trabalho com força de lei tratará de jornada, respeitados os limites constitucionais, intervalo, plano de cargos e salários, regulamento empresarial, teletrabalho, remuneração por produtividade, prêmios e incentivos, além de outros direitos. O mesmo texto proíbe expressamente as negociações coletivas que tenham objetivo de suprimir direitos.

Por fim, e talvez o mais importante e que incomoda tanta gente, tentando abrir as portas para uma efetiva liberdade sindical – que ainda não virá –, o projeto vai acabar com a contribuição sindical obrigatória, câncer do sindicalismo brasileiro.

Convido a todos a lerem o projeto e constatar as realidades aqui referidas.

29 de junho de 2017 | N° 18884 
DAVID COIMBRA


Jovem para sempre

– ME-LA-TO-NI-NA! – repetiu a Ana Paula, escandindo as sílabas, para depois complementar, rápido: – Melatonina!

A Ana Paula é uma amiga brasileira que mora aqui há menos de um ano. Dias atrás, estávamos sorvendo umas Sams Adams no bar, contei que não consigo dormir naquela maldita classe econômica do avião e ela gritou: – Melatonina! Melatonina?

Não é um desses remédios tradicionais para dormir, assegurou a Ana Paula, não é uma droga pesada, não, por Tutátis, é natural, e faz com que seu sono seja igualmente natural e profundo e, ao mesmo tempo, suave. Um sono bom, um sono para repousar, daqueles de que você não quer acordar, mas que, quando acorda, se sente regenerado. Um sono que restaura, entende? Restauração é a palavra. Res-tau-ra-ção. Depois deste sono, você acorda, olha-se no espelho e se vê jovem... jovem...

Olhei para a Marcinha: – Por Belenos! Temos que comprar esse negócio hoje!

Foi o que fizemos. Ao sair do bar, passei na farmácia e adquiri um pote com 120 tabletes de 5mg.

Entenda: não tenho problemas para dormir, nunca tomei algo que possa ser parecido com barbitúricos, nunca senti insônia. Meu drama são os longos voos naquela poltrona minúscula daquela PUTZGRINTRLOGRASTREMBAUER! da classe econômica.

No entanto, o entusiasmo da Ana Paula fez com que sentisse a NECESSIDADE de engolir uma daquelas pílulas, Melatonina, mesmo em terra. Sei perfeitamente quais são os benefícios do bom sono. E os malefícios da ausência de sono também.

Na primeira guerra entre Roma e Cartago, há mais de 22 séculos, um general romano chamado Régulo foi preso pelo inimigo. Os cartagineses captores propuseram-lhe um acordo: ele estava livre para ir a Roma a fim de conversar com os senadores e convencê-los a fazer a paz. Se os senadores aceitassem acabar com a guerra, Régulo podia ficar por Roma e tocar sua vidinha. Se eles recusassem, Régulo teria de voltar para a prisão em Cartago e submeter-se a sua sorte.

Régulo foi a Roma e ao Senado, mas, em vez de defender a paz que lhe salvaria a vida, fez o contrário: informou aos senadores que Cartago estava fragilizada e que, se a guerra prosseguisse por mais algum tempo, Roma sairia vencedora. Os senadores, assim, decidiram continuar em guerra e, de fato, Roma acabaria vencendo.

Depois da sessão do Senado, os amigos de Régulo lhe disseram: não volte, eles vão matá-lo, fique e tome mais um mate. Mas Régulo preferia a morte honrosa à vida pusilânime, cumpriu sua palavra e voltou. Os cartagineses, furiosos, resolveram impingir-lhe um fim lento e doloroso: arrancaram-lhe as pálpebras, e Régulo morreu enlouquecido devido à privação do sono. Dormir bem, portanto, é vital. A História o prova. Por isso, tomei logo dois daqueles comprimidos e fui dormir pensando nas palavras-chave do discurso da Ana Paula: repousar, restaurar, regenerar... repousar, restaurar, regenerar...

De manhã, quando abri os olhos para ver o dia pela primeira vez, sentia-me... repousado, restaurado, regenerado. Sentia-me jovem, sim, senhor. Jovem!

Dotado de minhas novas energias, saltei fora da cama e segui, cantarolando Forever Young, rumo ao banheiro.

– Para as abluções! – disse para mim mesmo. – Para as abluções!

E lavei o rosto com a água fria e sequei-o com uma toalha felpuda como um angorá e me olhei no espelho e... ali estava aquela ruga de expressão que tenho bem no meio da testa. Sei de onde veio essa ruga: é de um jeito que desenvolvi de erguer a sobrancelha esquerda a fim de encantar as fêmeas da espécie. Uma bossa, entende? E, nas comissuras dos olhos, prosseguiam impávidos os ramalhetes de vincos que cavei por cevar alguma preocupação ou por rir sem resguardo. 

E o pescoço... ah, também os pescoço tem pistas do tempo. Então, concluí: não fiquei mais jovem. Mas, ora, se há marcas de preocupação dura, há também de riso fácil. Repousar? Restaurar? Regenerar? Tudo bem, mas vou continuar exibindo as medalhas que a vida me pregou na carne. Viva a farmacologia, Ana Paula. E viva, também, cada prova da vida que se vive.



29 de junho de 2017 | N° 18884 
L.F. VERISSIMO

Nola

Um evento familial (o casamento de um sobrinho) nos levou a passar alguns dias em New Orleans, recentemente. “Nola”, como dizem os nativos, é uma cidade peculiar, nada a ver com qualquer outra cidade americana. A começar pela sua origem francesa, antes de o Estado de Louisiana ser comprado pelos Estados Unidos, quando se chamava Nouvelle-Orleans e já era uma sociedade multicultural, com a predominância de franceses e espanhóis. A principal característica deixada pelos colonizadores europeus na cara da cidade foi a quantidade de sacadas de ferro moldado do bairro velho, o “French Quarter”. 

E a principal herança deixada na cidade pela escravatura foi a quantidade de afrodescendentes na sua população atual. A influência negra foi importantíssima na identidade cultural de New Orleans, o que não impediu que os negros continuassem a ser uma classe discriminada. Quando o furacão Katrina atingiu a cidade, há alguns anos, atingiu com mais força regiões pobres, e a demora em providenciar ajuda a sua maioria afro ficou como uma das manchas do governo Bush, cobrada até hoje.

Um passeio de bonde por uma das avenidas residenciais de New Orleans passa por mansões da época em que grandes fortunas eram construídas em cima do trabalho escravo. Você pode imaginar seus donos sentados na sacada colunada bebendo drinques de menta com uma escrava lhe abanando os pés. 

Não, não vi nenhum bonde cujo destino era Desejo, para lembrar o filme de Elia Kazan com o Marlon Brando de camiseta suada e gritando “Stela!”. O suor do Marlon Brando no filme é compreensível: a cidade, construída em cima de pântanos, é quente o ano todo.

New Orleans foi o berço do jazz, e a cidade, eminentemente racista, deu ao fato o reconhecimento devido. A começar pelo aeroporto, chamado Louis Armstrong, com uma imensa estátua do trompetista recebendo os visitantes. Nas ruas do Quarteirão Francês, os bares ficam com as portas generosamente abertas para você ouvir o que se passa lá dentro. 

No famoso Preservation Hall, um grupo de senhores toca o autêntico “New Orleans Jazz”. Ou não tão autêntico assim. Como era tocado em desfiles, o jazz original não podia ter contrabaixo, substituído pela tuba, nem piano. E no “Preservation Hall” havia contrabaixo, e uma incongruente mocinha oriental tocando piano.

quarta-feira, 28 de junho de 2017



28 de junho de 2017 | N° 18883 
MARTHA MEDEIROS

A vida dos cemitérios

Outro dia, entrei no escondido Carmelita, bar da Cidade Baixa, e pensei: parece que estou em outra cidade. Imediatamente, um pensamento se sobrepôs ao primeiro: ei, você está em Porto Alegre, que bobagem é essa de se “sentir” em outra cidade? É que costumo assumir o papel de estrangeira quando vou a um lugar pela primeira vez. Vício de quem sai pouco e, quando sai, frequenta sempre os mesmos bares, os mesmos restaurantes e as casas dos mesmos amigos. De repente, uma nova porta se abre na sua rotina e você coloca uma mochila imaginária nas costas.

No dia seguinte, fiz outro programa do tipo que a gente só faz quando viaja. Muita gente que vai a Paris inclui uma visita ao Père-Lachaise no roteiro – o cemitério onde estão enterrados Oscar Wilde, Jim Morrison e Chopin, entre outros célebres. Já em Buenos Aires, um tour pelo cemitério da Recoleta é tão obrigatório quanto comer no Puerto Madero, circular pela Feira de San Telmo ou assistir a um espetáculo de tango. Pois, sem estar de férias, me distanciei alguns poucos bairros de onde moro e participei de uma visita noturna ao Cemitério da Santa Casa, aqui mesmo nesta nada turística urbe onde nasci.

O evento já aconteceu outras vezes e voltará a acontecer, antene-se. Organizado pelo Atelier Livre, integra a série Passeios pela Arte e é conduzido pelo professor José Francisco Alves, que, com uma lanterna na mão e muita informação na cabeça, explica ao grupo o valor arquitetônico e histórico de esculturas, mausoléus e tumbas reunidos naquele ambiente sagrado – cemitério é, de fato, um lugar sagrado.

Mas não é mórbido. O programa é gótico e a atmosfera é mística e cinematográfica. Muita proparoxítona neste início de parágrafo – incluindo a palavra parágrafo –, mas não encontro outros adjetivos para ilustrar a cena. É uma experiência que transfigura o simbolismo do local. Onde se deveria pensar em morte, pensa-se em vida e nos valores que a tornam significativa: beleza, história, memória, amor.

O tour guiado começou às 18h e reuniu várias tribos, mas cheguei um pouco antes e caminhei pelas alamedas ainda vazias de gente, iluminadas pelo cair do sol no Guaíba. O entardecer coloriu a colina, morada dos túmulos suntuosos e dos monumentos protegidos por muros e portões. Era possível escutar profundamente o silêncio – ausência de vozes, ausência de barulho, ausência de pessoas. Pura magia: a ausência e a permanência disputando o mesmo espaço.

São sensações que a gente experimenta quando viaja, mesmo a dois passos de casa, com a tal mochila imaginária nas costas. A aventura de procurar a vida onde ela se apresenta – e também onde ela se esconde.



28 de junho de 2017 | N° 18883 
FÁBIO PRIKLADNICKI

A MORTE DAS COISAS

Não há nada mais fácil do que decretar a morte de qualquer coisa: de Deus, da MPB, da ombreira. Nesse mundo novidadeiro, quem não quer ser o primeiro a dar a notícia que antecipará uma mudança de paradigma? O trabalho do coveiro de tendências é simples porque daqui a cinco, 10, 15 anos ninguém se lembrará da previsão para cobrar veracidade. 

O que vale é o impacto da primeira impressão. Isso sem falar em mortes que simplesmente não podem ser verificadas – quem aqui não guarda bem guardado aquele confortável moletom velho para usar em casa?

É claro que o mundo muda, e algumas coisas de fato morrem. Não tenho saudade da fita cassete, embora ainda seja possível encontrar alguns fãs por aí. Mas não há nada mais temerário na área da cultura do que sair por aí decretando o fim das coisas. 

Quem pensou que o violão tinha dado o que tinha para dar enquanto os grandes compositores voltavam seus olhos para a orquestra, o piano e o violino teve de engolir sua volta triunfante ao repertório da música de concerto no século 20. Quem achou que já tinha passado o tempo das peças trágicas no teatro não contava com as inúmeras reescritas do gênero ao longo da história.

E quem teve certeza de que o álbum como forma de consumir música tinha morrido? Olha ele aí, vivinho da silva nas plataformas digitais, convivendo pacificamente com as playlists, os EPs e os singles. Até o LP, que muitos achavam que estava sete palmos abaixo do chão, voltou com tudo e virou produto de luxo. Pense nos livros de papel, essa tecnologia antiquada, pesada e perecível que teimamos em amar, apesar da incrível praticidade dos leitores de livros digitais.

Quando for agendar o próximo enterro, pense duas vezes antes de sair por aí convidando as pessoas.


28 de junho de 2017 | N° 18883 
DAVID COIMBRA

Por que o guardanapo sobre o copo?

Aquele perito que o Temer contratou para analisar a gravação de sua conversa com o Joesley, você se lembra dele? Um de rabinho de cavalo, que disse que a gravação era “imprestável como prova”. Quando ele apareceu, de microfone em punho, fazendo seu relatório, me impressionei pelo seguinte: ele usa suspensórios E cinto. Ou seja: um adepto da segurança máxima. Todas as calças cairão antes das que ele usa. Eis um homem que mantém suas cuecas em absoluto salvaguardo da curiosidade alheia. Isso me encheu de respeito. Pensei: um homem que se cuida tanto deve saber o que diz.

Porém, os peritos da Polícia Federal deram fiança à gravação. Asseguraram que ela não tem edições e até já acusaram Temer de corrupção. E agora? De que adiantou fechar o meio-campo com a combinação de cinto e suspensórios? O perito de Temer ficou sem calças.

O próprio Temer. Olhe para ele. Já o entrevistei, passamos o dia juntos, rodamos no mesmo carro pelas ruas congestionadas de São Paulo, nós dois no banco detrás, conversando sobre a vida, a política e a poesia. Vi nele o que você vê: trata-se de um homem empertigado, formal, de gestos suaves. Um homem precavido. Tanto, que coloca um guardanapo de papel sobre o copo d’água, quando está à mesa, nas cerimônias públicas. Por que será? Medo de que algum inseto suicida se atire na água? Medo da poeira do ambiente? Até meu filho reparou nesse hábito de Temer, vendo-o pela TV. Outra noite, durante o jantar, ele pôs o guardanapo na boca do copo d’água.

– Que é isso? – perguntei. E ele, pondo-se bem ereto:

– Eu sou o presidente do Brasil.

Mas, apesar de toda a cautela, Temer caiu na cilada de Joesley e está todo atrapalhado com a Justiça. Ontem mesmo foi à TV, dar explicação. Situação chata para um presidente.

Olhando assim, em perspectiva, cogito: será que Temer não preferia que não tivesse havido impeachment algum e que Dilma continuasse presidente? Nesse caso, ela é que seria o alvo.

Dilma, aliás, foi mais cautelosa do que Temer. Usou aquele método de trocar mensagens com a Mônica Moura por meio da caixa de rascunho de uma conta de e-mail comum. Muito engenhoso. E Lula foi mais cauteloso ainda. Não registra nada em seu próprio nome e nem celular diz que tem, embora a Polícia Federal tenha apreendido nove celulares na casa dele. Nove celulares! Cá para nós, um cara ter nove celulares já é confissão de culpa.

Lula está mais enrolado até do que Temer, mas o presidente do PT do Rio, um certo “Quaquá”, anda pregando “luta aberta nas ruas”, caso ele seja condenado pela Justiça. Quer dizer: o Quaquá é o oposto de um homem que usa cinto e suspensórios, de um que tem nove celulares, de um que tapa o copo com o guardanapo ou de uma mulher que usa a caixa de rascunhos para se comunicar. O oposto. Quaquá é um temerário. Se Lula for condenado, Quaquá sairá por aí, lutando, dando tiro nas pessoas. Um perigo.

O temerário é perigoso, os cautelosos são perigosos. A vida é perigosa, no Brasil.


28 de junho de 2017 | N° 18883
TECNOLOGIA

No caminho do autoatendimento

AOS POUCOS, CAIXAS em que o consumidor faz o pagamento sozinho passam a se integrar ao cotidiano dos porto-alegrenses

Após parar em frente a um monitor e ouvir uma mensagem gravada de boas-vindas, a professora Adriela Mariath, 40 anos, começou a obedecer as ordens ditadas pela máquina: escaneou o código de barras de cada compra, colocou os itens na sacola, digitou a senha do cartão de débito e validou o ticket de estacionamento. Ela já havia feito compras sozinha nos Estados Unidos, onde viu esse sistema espalhado por mercados e farmácias. Ontem, utilizou o equipamento pela primeira vez em um supermercado de Porto Alegre.

– Achei muito divertido isso – disse, ao colocar o QR Code da sua nota fiscal em um leitor e uma portinha se abrir para que a cliente pudesse deixar o espaço delimitado.

Muito usados em lojas da América do Norte e da Europa, os caixas de self-checkout ainda são poucos na capital gaúcha – um dos exemplos é o utilizado por Adriela, no Zaffari Higienópolis. A promessa, no entanto, é de crescimento.

O Z Café pretende instalar, nos próximos 90 dias, monitores de autoatendimento nas lojas do Tecnopuc e do Hospital São Lucas da PUCRS, ainda não inaugurada. No ponto da Avenida Soledade, bairro Três Figueiras, a empresa tem a tecnologia como opção de pagamento durante o dia, quando também há atendentes, e após o encerramento do expediente – à noite, os produtos seguem expostos em balcões e geladeiras, à disposição dos frequentadores do prédio comercial onde o café está localizado.

– É bom porque, às vezes, a gente fica até mais tarde trabalhando – afirma o desenvolvedor de softwares Nicolas Peixoto dos Santos. – É mais ágil e super intuitivo. O único fator limitador é que só aceita cartão, mas eu quase nem levo dinheiro na carteira – acrescenta.

Quando tiveram a ideia do totem de autoatendimento nas unidades take- away do café – modelo traduzido como “leve embora”, que já tem um perfil mais cosmopolita –, os irmãos e sócios Carlo e Sandro Zanette foram desaconselhados por muitas pessoas: juravam que eles seriam roubados. Mas os empreendedores garantem que a experiência está sendo boa, sem furtos.

– Eles (os clientes) pensam: “O cara está deixando a casa aberta para mim”. Sentem-se até donos, cuidam como se fosse deles – conta Sandro. – No outro dia, não tem nem sujeira nas mesas.

REDE DE SUPERMERCADOS QUER AMPLIAR O SERVIÇO

Faz sete meses que o Zaffari Higienópolis disponibiliza quatro caixas de self-checkout para compras de até 10 itens. Por meio da assessoria de imprensa, o grupo informou que “os equipamentos serão instalados nas maiores lojas da rede”, mas ainda não há data prevista. A empresa garante que não houve casos de utilização do caixa com a tentativa de burlar o sistema e furtar mercadorias.

Adriela, que usou o equipamento pela primeira vez ontem, acredita que, além da habitual demora na chegada de tecnologias ao país, a concepção de que há um “jeitinho brasileiro”, de tentar tirar vantagem, também pode ter atrasado a disseminação desse sistema no país. Fernanda Etchepare, diretora do Sindicato de Hospedagem e Alimentação de POA e Região (Sindha), vê uma tendência de evolução, impulsionada justamente por um sentimento de repulsa à corrupção.

– É uma inovação bem apropriada. O Brasil está vivendo essa onda anticorrupção. É um bom momento para provar que a gente não é assim e começar provando isso nas pequenas coisas – opina.

As empresas que apostam nesse modelo não se valem apenas da confiança: também usam mecanismos para evitar fraudes. No Z Café, há câmeras de monitoramento e todos os dias é realizada a contagem dos produtos. Junto aos equipamentos do Zaffari, sempre há um funcionário no espaço dos caixas de self-checkout, que também auxilia quando ocorre algum problema ou o cliente tem alguma dúvida. Um dispositivo de conferência por peso verifica se a quantidade depositada nas sacolas é compatível ao item registrado, e o cliente ainda passa o código da nota em um leitor na saída.

jessica.weber@zerohora.com.br


27 de junho de 2017 | N° 18882 
CARPINEJAR

O símbolo das despedidas

O adeus não está representado no aceno ou no beijo arremessado para longe, na lágrima desajeitada ou em uma música plangente. Quem entende de despedidas é a caixinha de papelão. Nenhum objeto é mais emblemático de nossas partidas ao longo da vida.

A gente precisa da caixinha para dar adeus a casas, a empregos, a pessoas. No fundo, não serve somente para carregar mantimentos no mercado, e sim para carregar a nossa saudade.

A caixinha é o buquê dos nossos objetos. Como um papelão armado de suas pontas encaixadas pode ser tão poderoso e onipresente em nossas melancolias?

Um origami gigante de nossas privações e provações. Só será adulto quem um dia depender dele.

Eu me socorri de uma caixa para esvaziar a minha mesa e gavetas quando fui demitido. Passei pelos corredores com ela estendida em meus braços. Uma urna com as cinzas de minha memória do serviço. Todo mundo constrangido, de cabeça baixa, na repartição aberta e envidraçada e eu de queixo levantado, não olhando para ninguém, determinado a não me emocionar. A feição paralisada pelo esforço de não chorar em público.

Ou quantas caixinhas recolhidas dos supermercados serviram para acondicionar livros e badulaques pessoais nos fretes do endereço antigo ao novo, até me aquietar em algum bairro? Eu apenas procurava as caixas nas horas derradeiras, como um amigo avulso, solicitado de madrugada nas penúrias.

Em quantas separações eu encontrei o consolo das abas pardas para consumar a partilha e empacotar o amor? As caixas são continuações das malas no fim dos relacionamentos.

E pensar que o material que nos ampara ao trocarmos de residência é a residência inteira do mendigo. É onde ele estabelece a sua manjedoura nos viadutos e marquises. Da pobreza áspera do papel, ergue as paredes de sua morada imaginária.

As caixinhas ínfimas, inúteis, abandonadas no decorrer dos meses, têm um significado especial nos desenlaces. São as confidentes de nossos limites. Provisórias, mas pontuais. Esquecidas, mas com a vocação de braços quando o mundo não cabe em nossos olhos. Essenciais ao transporte e logo sacrificadas na coleta seletiva. Duram o tempo de nossas dores, placenta de nossas mágoas. Elas nos ajudam a nascer de novo em outro trabalho, em outro lugar e em outro coração.

É observando agora uma caixinha vazia que vou enchendo o seu fundo com minhas lembranças. E escuto um latido sufocado lá no distante de mim.

A caixinha foi um berço em 1981. Do meu primeiro cachorro. Quando ainda ele não tinha cama. Eu dormi no chão naquela estreia, aos nove anos. Cobri meu bichinho com um cobertor xadrez e fiquei a noite inteira ao seu lado, vigiando a sua respiração.

É aceitando a tristeza, que descobrimos as nossas grandes alegrias.



27 de junho de 2017 | N° 18882
ARTIGO | DENIS LERRER ROSENFIELD

O IMPONDERÁVEL

Não o menor deles é a denúncia contra o presidente da República, por configurar um ato inédito na história republicana. Bastante grave é uma situação em que o mandatário mor da nação deve prestar contas ao Ministério Público, ao Supremo e à Câmara dos Deputados. Deverá bem explicar todas as acusações que pesam contra ele. Em caso de culpa, condenação; em caso de absolvição, inocência.

Acontece, porém, que o timing jurídico não corresponde ao político. Do ponto de vista da opinião pública, é como se já estivesse julgado e condenado, devendo ser afastado do poder. Lá entram, então, as diferentes propostas de “solução”, uma das quais mais em voga, nos últimos dias, é a do ex-presidente Fernando Henrique, advogando, em artigos e declarações, por eleições gerais antecipadas.

Ressalte-se que essa proposta é sedutora, na medida em que prevê uma espécie de limpeza geral, atingindo, além do presidente, senadores, deputados e governadores. Seria o povo convocado para a escolha de novos representantes.

Ocorre, contudo, que a realidade é avessa a soluções genéricas. Consideremos, por hipótese, que o atual presidente aceitasse uma proposta desse tipo.

Qual seria a garantia de que os deputados estariam dispostos a seguir tal proposta? O gesto do presidente já seria uma espécie de reconhecimento de sua fraqueza, não mais dispondo de força para assegurar a sua aprovação. Por exemplo, os deputados poderiam simplesmente prorrogar os seus mandatos, acolhendo apenas o afastamento do presidente. O novo presidente eleito deveria, então, governar com os mesmos parlamentares que estão às voltas com a Lava-Jato e os seus desdobramentos.

O próprio ex-presidente Fernando Henrique reconhece que a sua proposta, se acolhida, demoraria de oito a nove meses para ser implementada, tendo como data final fevereiro ou março de 2018. Se o atual calendário se mantivesse, teríamos eleições em outubro e término do mandato no final de dezembro. O ganho temporal seria pequeno diante de um país que estaria, durante todo esse período, lançado na incerteza.

Talvez o único beneficiário seja o ex-presidente Lula, que, defendendo a mesma via, poderia tentar concorrer a um novo mandato presidencial, antes de ser julgado e condenado em primeira e segunda instâncias.


27 de junho de 2017 | N° 18882 
DAVID COIMBRA

Tudo pode melhorar, mesmo sendo igual

Mudar, o mundo muda. Mas as pessoas, na essência, são as mesmas em qualquer lugar, em qualquer tempo. O Peninha, que tenta inutilmente se tornar venerando ao se apresentar como “escritor Eduardo Bueno”, lançou nas redes um interessante programete de história do Brasil intitulado Não Vai Cair no Enem. Num dos episódios, Peninha conta, em seu já tradicional estilo brejeiro, a respeito da construção da primeira capital do Brasil, Salvador, em meados do século 16. 

Ocorre que, para rasgar as seis ruas originais da cidade, cercá-la por muro de pedra, dotá-la de pia igreja e de solene casa de governo, empreiteiros portugueses se associaram e criaram uma espécie de clube. A ideia deste consórcio era dividir as obras, evitar a concorrência, superfaturar os preços e acobertar as irregularidades mediante gorda propina paga aos políticos da época.

Isso há mais de 400 anos...

Recue mais um pouco, para tempo e espaço não abordados pelo brasilianista Peninha. Há 2,2 mil anos, no Velho Mundo, um general romano chamado Lucio Emilio Paulo conquistou a Macedônia por meio da guerra. Em meio à campanha vitoriosa, ele fez um desabafo:

– Nas reuniões de família e nas praças de Roma, há homens que sabem para onde os exércitos têm de se mover na Macedônia e que estratégias devem ser estabelecidas. Não só decidem o que deve ser feito como, quando tudo se dá ao contrário do que recomendaram, criticam o general. Se alguém está convencido de que me pode dar conselho, que venha a mim, cá na Macedônia. Mas, se acha que isso é muito incômodo, que deixe de se fazer marinheiro em terra.

No Brasil, éramos milhões de técnicos de futebol e agora somos milhões de juízes de Direito. Na Antiga Roma, eles eram milhões de generais.

Mas, se somos os mesmos nos defeitos, somos os mesmos nas virtudes. Num epitáfio romano velho de dois milênios, um marido mandou gravar a seguinte inscrição em homenagem a sua companheira morta:

“Foste sumamente bela, Statilia, e verdadeira aos teus dois maridos. O primeiro, se tivesse resistido aos fados, teria dedicado a ti esta pedra, enquanto que eu, ai, que durante 16 anos fui abençoado pelo teu puro coração, agora te perdi”.

Repare na nobreza deste homem. Não se limitou a declarar o amor por sua mulher: mostrou lealdade ao ex-marido dela.

A corrupção e a crítica fácil existem desde que existe a civilização, mas o amor e o respeito também.

Veja essas pessoas de celular em punho, fiscais implacáveis da moral e dos bons costumes, prontas para registrar a humilhação alheia, como fizeram dias atrás com o ator Fábio Assunção. Veja a rapinagem exposta dos políticos que governavam e governam o país. Veja como a falta de compaixão, o egoísmo e o desrespeito campeiam. Mas, em compensação, o Judiciário está funcionando e colocando poderosos criminosos na cadeia e os colegas de Fábio Assunção o apoiaram na dor. É um alento.

E, ontem, recebi com júbilo a notícia de que os promotores do caso da boate Kiss pediram o perdão aos pais das vítimas que eles mesmos haviam processado. São alvíssaras. Sempre houve gente decente no mundo. Sempre haverá.

segunda-feira, 26 de junho de 2017



26 de junho de 2017 | N° 18881
SEM LUZ

Escuridão aumenta insegurança


CAPITAL ACUMULA PONTOS mal iluminados em diversos bairros, o que força moradores e comerciantes a improvisar soluções. Se nem com sol quem anda pela Capital está protegido, a sensação de insegurança aumenta à noite. Ruas escuras e lâmpadas apagadas são recorrentes em vários bairros, como constatou a reportagem de ZH em um giro na noite de quinta-feira passada.

Sem iluminação pública, a boa vontade de moradores é o que mantém o mínimo de visibilidade em uma rua do bairro Boa Vista. A Waldemar Canterji, via de uma quadra entre a Plínio Brasil Milano e a Alcídes Gonzaga, não tem postes de luz. Por isso, em duas residências e dois pontos comerciais, foram instaladas lâmpadas e refletores voltados para a rua.

– Tentamos iluminar o máximo possível e botamos uma câmera – conta Sheila Torrico, sócia-proprietária da lancheria 14 Bis, relatando que, ainda assim, há muitos casos veículos arrombados.

Os refletores providenciados não dão conta de iluminar completamente a rua, porém, graças a eles, o estudante Guilherme Jung, 19 anos, não reparou na ausência de postes ao passar por ali. Mas relata que é grande a sensação de insegurança.

– Esses dias, fui assaltado em uma rua parecida com esta. Cinco bandidos saíram de trás dos arbustos e levaram meu celular e minha carteira – conta.

Em dois quarteirões, no limite entre o Moinhos de Vento e o Mont’Serrat, ZH flagrou quatro lâmpadas apagadas na noite de quinta: duas na esquina da Quintino Bocaiúva com a Mostardeiro, uma na Coronel Bordini e uma na Anita Garibaldi. Nesta última, que é muito arborizada, um foco de luz a menos já torna a subida do morro uma experiência sombria – literalmente. Lorival Miguel, porteiro em um prédio no local, disse que o problema persiste há mais de 20 dias.

Na Zona Sul, um ponto crítico é a Rua do Santuário. Há uma sequência de postes instalados próximo ao Santuário Mãe de Deus, mas eles não têm iluminação. O breu continua na Estrada das Furnas. Moradores ressaltam que o local é usado por criminosos para desovar corpos, e acreditam que a escuridão corrobora para isso. O padre Danilo Bulegon, que atua no Santuário, atesta que é crítico o problema de falta de iluminação:

– Quando escurece, não saímos mais.

Em um quilômetro da Avenida Edvaldo Pereira Paiva, em praticamente todo o trajeto junto às obras da orla do Guaíba, a reportagem constatou que os postes também existem, mas sem iluminação. Há apenas luz no sentido bairro- Centro, junto ao Parque Harmonia. Segundo a Secretaria de Serviços Urbanos (Surb), a escuridão nesse ponto se deve justamente às obras no local, mas “já está sendo providenciada a reativação”.

Sobre os outros locais abordados, a pasta informou que a Divisão de Iluminação Pública (DIP) faria vistorias ainda na sexta-feira à noite e que, nos pontos apagados, “o conserto será incluído na programação para manutenção imediata”. Referente à instalação de novos pontos, a secretaria afirma que “há o registro de protocolos com essas demandas, e estão sendo estudadas as possibilidades de atendimento dessas solicitações”.

As reclamações devem ser realizadas pelo fone 156. Além de fazer vistorias nos pontos registrados por esse canal, a DIP realiza rondas, segundo a Surb. Recentemente, os trabalhos sofreram atrasos por falta de materiais, como lâmpadas – a assessoria de comunicação afirma que o problema não era escassez de verbas, mas questões burocráticas relacionadas à aquisição dos materiais.

O projeto apresentado pelo prefeito Nelson Marchezan para a iluminação pública é a realização de uma a Parceria Público Privada (PPP). A expectativa do secretário de Parcerias Estratégicas, Bruno Vanuzzi, é de que em um mês seja assinado um contrato de consultoria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ele relata que o banco já realizou licitação para contratar técnicos que vão apoiar o projeto.

– Isso permitirá a antecipação de investimentos que seriam feitos entre 10 e 15 anos para dois ou três anos – diz Vanuzzi.

O secretário afirma que um objetivo da consultoria é identificar as vias que precisam de iluminação no passeio ou na faixa de rolamento, e destaca que áreas de convivência também devem ser beneficiadas. A expectativa é de que a licitação para contratação de uma concessionária saia no primeiro semestre de 2018.

jessica.weber@zerohora.com.br

26 de junho de 2017 | N° 18881
REPORTAGEM ESPECIAL

A CRISE COMO HÓSPEDE


REDE HOTELEIRA DE PORTO ALEGRE passa do entusiasmo pré-Copa do Mundo para recessão que impacta os negócios. Desde o Mundial, 12 hotéis encerraram atividades

Após o otimismo com a Copa do Mundo deixar como legado um excesso de leitos em Porto Alegre, a crise não quer fazer o check out na rede hoteleira. Além do aumento da oferta também insuflado pela promessa de que o país entrava em uma era de crescimento duradouro, a recessão que veio em seguida frustrou as expectativas e afastou ainda mais a clientela dos hotéis da Capital, formada em grande parte por quem viaja a negócios ou para eventos.

Os dados do Sindicato de Hotéis de Porto Alegre (SHPOA) mostram que, ao longo de 2014, a melhor taxa média de ocupação na cidade foi de 62% em junho daquele ano, quando a cidade sediou jogos da competição de futebol. Agora, amarga percentual de 47%, com mais leitos fechando do que abrindo. Conforme a entidade, antes do evento esportivo a Capital tinha cerca de 16 mil leitos. A euforia com a Copa fez diversas redes apostarem em novas unidades, o que elevou a oferta para cerca de 19 mil. 

Agora, são em torno de 18 mil, diz o presidente do SHPOA, Carlos Henrique Schmidt. Após a Copa, 12 hotéis encerraram as atividades e um opera com apenas metade da capacidade, o que significou o enxugamento de 1,3 mil leitos. Hoje, são 119 empreendimentos na cidade.

– Estamos no limiar entre o azul e o vermelho. A crise nos pegou no contrapé – lamenta o dirigente, que admite a sobreoferta causada pela Copa e cita o aumento dos custos como outro fator que mina a rentabilidade.

Schmidt lembra que, no caso da Capital, o movimento na rede é muito ligado ao turismo de negócios, que minguou devido à crise na economia. Com a recessão persistente, as viagens para tratar de assuntos corporativos ou transações foram substituídas por opções mais econômicas, como videoconferências. Ao mesmo tempo, diminuiu o número de eventos. Mesmo os mantidos viram o número de participantes cair.

Com a demanda retraída, apenas dois hotéis abriram em Porto Alegre depois da Copa – um foi neste ano, da bandeira Intercity, na Cidade Baixa. O reflexo no mercado de trabalho foi direto. Segundo o SHPOA, em 2016 o setor gerava cerca de 5 mil empregos. Hoje, está na faixa de 4 mil, calcula a entidade.

Outra organização do setor, a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH), trabalha com números um pouco diferentes, mas que também mostram a retração. Segundo a entidade, a Capital tinha cerca de 10 mil quartos em 2014 (em média, dois leitos por quarto) e, agora, são cerca de 8 mil disponíveis. O número de empregos, diz o diretor de planejamento estratégico da ABIH no Estado, José Justo, caiu de 4,5 mil para 2,7 mil.

No Rio Grande do Sul, o setor também sentiu o baque na economia, com reflexos em outras regiões, como Serra e Litoral, onde o fluxo é mais ligado ao lazer. O impacto, diz Justo, não veio com o fechamento de hotéis, mas com queda da ocupação e preço menor das tarifas.

– O valor médio das diárias no Estado caiu mais de 20%, de 2014 para 2016. Em 2017, talvez consigamos recuperar algo como 10% a 15% – diz o dirigente, que afirma notar leve melhora na economia e na ocupação nos últimos meses, movimento que considera vinculado principalmente à safra recorde no Rio Grande do Sul.

De acordo com a ABIH, após a taxa de ocupação média no Estado chegar a 38% em 2015, neste ano está em 53%. Uma das explicações da melhora no percentual é a oferta menor de quartos, com o fechamento de hotéis na Capital.

Na tentativa de reverter o quadro, o Porto Alegre Convention & Visitors Bureau passou por recente mudança de direção. O esforço é para, no curto prazo, fazer iniciativas em conjunto com a rede hoteleira, clubes de futebol, comércio e gastronomia para atrair, principalmente, mais pessoas do Interior para a Capital (leia na página ao lado). 

Em prazos mais longos, trabalhar para Porto Alegre se tornar mais competitiva na atração de grandes eventos. Ao mesmo tempo, o setor torce por ações que são alheias à iniciativa privada, como melhor segurança e limpeza na cidade, principalmente no Centro Histórico, e a finalização das obras de revitalização da orla do Guaíba.

caio.cigana@zerohora.com.br


26 de junho de 2017 | N° 18881 
DAVID COIMBRA

O frango, a indecisão e o melhor time do Brasil

O time do Grêmio é melhor do que o do Corinthians. É um time com mais imaginação, mais recursos e mais fluência de jogo. O Grêmio joga como se estivesse dançando, o Corinthians joga como se estivesse marchando.

O que o Corinthians teve a mais, ontem, para vencer a partida na Arena, foi uma qualidade indispensável para um conquistador: concentração.

Concentração é fundamental na hora de mover o peão no xadrez, na hora de dar o soco no boxe, na hora de marcar o xis no vestibular, na hora de falar na reunião do trabalho, na hora de fazer o molho da macarronada, na hora da declaração de amor e na hora do chute ou da defesa no futebol.

Faltou concentração ao quase craque do Grêmio, Luan, na hora do chute, na cobrança do pênalti. Luan correu para a bola e parou uma vez, esperando que o goleiro se movesse. O goleiro não se moveu. Então, Luan deu mais alguns passos e parou de novo. Cássio continuou imóvel, à espreita, como uma serpente antes do bote. Agora faltava pouco para chegar à bola, e Luan ainda estava indeciso. Indecisos em geral decidem mal. Luan bateu fraco, à meia-altura, um chute ótimo para o goleiro defender, e o goleiro defendeu. Tivesse escolhido o canto e chutado com firmeza, como homem, Luan teria marcado o gol.

Mas o mais desconcentrado foi exatamente aquele que não pode se desconcentrar jamais: o goleiro do Grêmio, Marcelo Grohe. Este não tem sido um bom ano de Grohe. Deveria sair do time para respirar o ar restaurador do banco, mas nem reserva ele tem. Ontem, Grohe engoliu um frango clássico, a bola lhe passando pelo meio das pernas e ele molenga, sem força nem para rebatê-la com as pernas, restando-lhe as penas grudadas na luva. Grohe é responsável direto pela derrota. O Grêmio deveria contratar outro goleiro, ao menos para lhe produzir alguma aflição.

Mesmo assim, o Grêmio mostrou por que é considerado o melhor time do Brasil. Pelo seguinte: o Grêmio é considerado o melhor time do Brasil porque é o melhor time do Brasil. Nenhuma outra equipe tem tanta competência na retomada de bola como o Grêmio. A capacidade que os jogadores do Grêmio desenvolveram de acossar o adversário e tirar-lhe a bola é o maior predicado desse time. Porque, quando a bola é recuperada, isso acontece em duas situações. 

Na primeira, a bola está no campo de ataque do Grêmio. Ou seja: muito mais perto do gol. Dois ou três passes escorreitos e Pedro Rocha está com a bola na frente do goleiro. Na segunda situação, o adversário é desarmado quando está em formação de ataque, com seus jogadores abertos e um monte de espaços no meio da defesa. A bola roubada, assim, vira lance agudo de ataque.

O Grêmio conseguiu fazer isso várias vezes no primeiro tempo de ontem. No segundo, nem tanto. No segundo, depois de marcar o seu gol, o Corinthians não tinha mais interesse em ficar com a bola. Preferia vê-la nos pés dos jogadores do Grêmio, desde que eles estivessem longe da área de Cássio.

O Grêmio perdeu, mas mostrou que pode ser campeão do Brasil, sim. Vai depender do quanto será desfigurado pela janela de agosto, das contratações que ainda fará e, sobretudo, da concentração. Da sua concentração e da concentração de eventuais concorrentes, como esse Corinthians ou como o Flamengo. É o que já disse: no amor, no trabalho, no jogo e na vida é preciso haver concentração. E, claro, no futebol também.