sábado, 30 de março de 2024


29/03/2024 - 09h00min
martha Medeiros

Passou da hora de acabar com a misoginia e com o falso heroísmo do macho sem coração

Não adianta revolucionar estereótipos historicamente ligados à mulher se os homens continuam habitando as cavernas

Enquanto dois ex-ídolos do futebol eram condenados à prisão por crimes sexuais (fora do estádio também tem juiz e o cartão vermelho é vitalício), me caía em mãos um livro que debate esta questão inadiável: que espécie de “macho” ainda estamos entregando para a sociedade.

Logo conto que livro é este. Antes, o assunto.

Padrões de raça e gênero estão sendo redefinidos. Mulheres negras ocupam posições de destaque, modelos cheinhas desfilam nas passarelas, capas de revista estampam damas grisalhas. A desconstrução do protótipo “loira, magra e jovem” está encaminhada e conquistas começam a ser percebidas. Hoje, quando nasce uma menina na família, já se sabe que ela poderá ser artilheira da seleção, uma cientista da Nasa, presidente do país, especialista em churrasco, ser mãe ou não ser mãe. O que ela quiser, do jeito que quiser. Seu universo expandiu.

Por outro lado, nasce um menino e os pais ficam como? Perplexos. O mundo encolheu para os homens, privilégios estão se perdendo. O que funcionava antes (violência, prepotência) não funciona mais. Os novos homens terão que externar seus sentimentos, conviver de igual para igual com suas parceiras, assumir sua parte nos cuidados com a casa e com os filhos. É um desafio colossal, que põe por terra o que eles tinham como diretriz indiscutível: ser homem é não ser como uma mulher.

Essa insanidade precisa ter fim. “Não quero abraço de macho”, disse um molequinho de três anos a um amiguinho de dois. É chocante. A cena foi testemunhada por Marina Speranza, autora do livro Educar Meninos Não é Frescura.

Marina é brasileira, vive em Barcelona e é mestre em Gênero e Políticas de Igualdade pela Universidade de Valência. Atenta aos descompassos pedagógicos, escreveu um livro leve, rico em referências e com reflexões necessárias para ajudar a sociedade a virar a chave. Os meninos e adolescentes merecem amparo, não podem ser jogados neste novo mundo com uma educação obsoleta e ainda tão agressiva. Tem garoto de 10 anos com gastrite! Por medo de dizer o que sente, medo de desapontar os pais, medo de ser rechaçado pelos outros garotos se não for valentão.

Editoras, olho na Marina. Ela fez nascer esse livro com recursos próprios, tal era a gana de colocar o tema em pauta. Estamos atrasados. Passou da hora de acabar com a misoginia e com o falso heroísmo do macho sem coração. Só assim reduziremos os índices de feminicídio, estupros e outras selvagerias. Não adianta revolucionar estereótipos historicamente ligados à mulher se os homens continuam habitando as cavernas.



29/03/2024 - 11h00min
Letícia Paludo

Melhor juntas: mulheres aderem a grupos exclusivos de viagens para explorar destinos e formar laços de amizade

O público feminino tem encontrado liberdade e segurança a partir de roteiros ao lado de novas parceiras de estrada

Para quem quer viajar, mas não tem companhia e nem está a fim de se lançar em uma aventura solo, existem as excursões, é claro. Mas algumas viajantes e empreendedoras gaúchas entenderam que esse momento de lazer pode ser ainda mais especial se for feito em um grupo composto exclusivamente por mulheres. Nessa dinâmica, relatam que o que tende a acontecer é a liberdade para se soltar, falar besteira, desabafar e, de quebra, fazer conexões e amigas com quem possam viajar no futuro.

— É uma atmosfera de local seguro. Não tem aquela coisa de “Será que eu posso fazer essa piada?”, “Será que vão me interpretar mal?”. Entra justamente naquele lugar de “Isso aqui é uma irmandade, uma comunidade, posso ser eu mesma e está tudo bem”— afirma a empresária Letticia Gerhardt, 29 anos, criadora da agência de viagens Viaja Guria. 

Moradora de Novo Hamburgo, Letticia costumava ser modelo plus size e criadora de conteúdo digital sobre autoestima. Há cerca de nove meses, organizou de forma despretensiosa um bate e volta para Bento Gonçalves, junto de amigas e seguidoras, e a ideia deu tão certo que acabou originando uma agência que oferece roteiros só para o público feminino. Já estiveram no Chile, na Argentina, fizeram um tour cervejeiro em Estância Velha e Igrejinha, um rafting em Três Coroas, acabaram de voltar de Recife e estão no Uruguai neste final de semana. 

— Inicialmente pensei “Vou fazer essa viagem agora, daqui a três meses faço outro bate e volta e assim vai indo”. Só que a demanda começou a ser tão grande que antes de sair o primeiro roteiro, já tínhamos solicitação para o segundo, que lotou — recorda Letticia. 

Os números mostram que a ideia está encontrando eco nas redes sociais: um dos primeiros vídeos publicados no Instagram teve mais de 600 mil visualizações e trouxe, de uma tacada só, cerca de 20 mil seguidoras para o perfil do Viaja Guria – no dia 24 de março, a página ultrapassou a marca de 100 mil seguidoras. O diferencial, segundo Letticia, é que a agência incentiva a formação de uma comunidade de mulheres que se apoiam e interagem antes, durante e depois do passeio. Ao fim da viagem, elas são convidadas para participar do grupo de mensagens Gurias Viajantes para trocarem ideias e marcarem rolês. 

Até agora, a maioria das interessadas no Viaja Guria nasceu na década de 1990, com idades entre 25 e 34 anos, mas a lista também já recebeu passageiras com mais de 80 anos e costuma ter várias representantes entre 40 e 60 anos. Os motivos que as levam a procurar companhia feminina para viajar são variados, conforme descreve Letticia: 

— Vai desde “Estou me divorciando” a “Preciso me reencontrar na vida”, questões de saúde mental, estar saindo de uma depressão, ansiedade social, entre outros. Há mulheres mais novas querendo ser mais independentes dos pais. Também tem o fato de não ter muitas amigas que compartilham da vontade de viajar, ficar só naquela coisa de “Vou ver e te aviso”, mas nunca avisa.  

Acolhimento  

No domingo (24), a reportagem de Donna acompanhou um bate e volta para a serra gaúcha na ideia de ouvir de perto os motivos que colocaram aquelas mulheres juntas e sentir o que acontece de melhor numa viagem em conjunto. De cara já dá para perceber que elas ficam à vontade para mostrar seu jeito. As que são mais tímidas são acolhidas tão bem quanto as que já entram no ônibus em altos decibéis.   

No dia anterior, um grupo no WhatsApp foi criado para que fossem se conhecendo, o que talvez ajude a aproximar as passageiras desde o início do passeio. O ônibus parte às 8h da Capital, faz alguns embarques na Região Metropolitana e segue para Carlos Barbosa, onde a primeira parada é na Fetina de Formaio, uma loja de produtos coloniais. No local, as passageiras degustam iguarias como o salame de javali, queijo de azeitonas e tomate seco. 

A segunda parada, em Garibaldi, no parque da Fenachamp, é reservada para almoço e para um dos momentos mais emocionantes e acolhedores do passeio, o da integração. Numa roda, elas explicam quem são e por que decidiram viajar na companhia uma da outra, e muitos dos relatos emocionam quem ouve e se identifica: há quem tenha vivido um burnout no trabalho e entendido que é preciso reservar tempo para desopilar, viajar, trazer novidades para a vida. Também há mulheres fartas daquela promessa entre amigos “Claro, vamos marcar sim” que nunca se concretiza.    

Para boa parte das viajantes, o passeio coroa uma jornada de independência para ir e vir sem depender da família, dos amigos, do namorado, ou, ainda, celebra a libertação de um relacionamento abusivo.  

A técnica em Enfermagem Tais da Silva, 47 anos, viaja com o grupo desde o primeiro roteiro lançado, na metade de 2023. Para ela, tem sido uma oportunidade para começar um novo círculo de amizades depois do fim de um casamento de 24 anos:  

— Comecei a viajar para mudar meu rumo e minhas amizades. Estou na quinta viagem e tenho outras marcadas. É um investimento em mim e na minha felicidade. Viramos amigas, as gurias já foram na minha casa, comeram churrasco, tomaram banho de piscina, cuidamos uma da outra. É importante quando você consegue fortalecer a mulher que está contigo, fazer com que ela se conheça, perceba o quanto ela é importante. Aqui a gente não está sozinha nunca, é diferente de solidão, é solitude.  

No caso da administradora Danielle Carrão, 41 anos, a maioria de suas amigas não é parceira para saídas – muitas são casadas, têm filhos e não podem contar com os companheiros para ficar com as crianças enquanto elas viajam, explica. No ano passado, Danielle descobriu o Viaja Guria e a companhia que estava faltando, e de lá para cá já viajou para Buenos Aires, Três Coroas e, agora, a serra gaúcha.    

— Como meu marido fica com a minha filha, tenho esse suporte, consigo fazer os passeios. Vi neste grupo de mulheres a possibilidade de ter os meus momentos, aproveitar atividades sozinha, conhecer outras pessoas e experiências. Tem um acolhimento, a gente pode ficar à vontade, não precisa se preocupar com o que vai falar, o que vai fazer — detalha Danielle. 

Fica evidente que o passeio oportuniza aquelas interações ricas entre gerações: desde adolescentes acompanhadas pela mãe até octogenárias. A mais veterana se apresenta como Vó Nita e seu bom humor faz com que, de fato, se torne avó de todo o grupo ao longo do dia. Natural de São José do Norte, a aposentada foi ao passeio por iniciativa da neta.  

— Sou uma costureira aposentada de 88 anos e gosto de sair um pouco. Estou adorando a turma, espero fazer algumas amigas — projeta Enilta Costa da Costa, com a voz bem alta para ser ouvida em meio ao ruído da queda d’água de 56 metros do Salto Ventoso, em Farroupilha. 

Vó Nita ainda faz a alegria geral da mulherada durante a degustação de vinhos e espumantes da Vitivinícola Cave Antiga, a última parada do roteiro, também em Farroupilha. Depois de algumas taças, Enilta se levanta e fica num pé só – o clássico “fazer o quatro” – mostrando que ainda tem equilíbrio sob aplausos e risadas. 

O gesto é um exemplo do astral que toma conta das mulheres ao longo do passeio: não há espaço para ficar se perguntando se vai “pegar bem” fazer tal brincadeira, contar uma besteira, pedir mais uma taça de espumante, rir alto, posar para fotos.  

— Não é só a viagem, é também a comunidade. Aqui é sem cobrança, julgamento, olhar tóxico. A gente se abre muito mais fácil porque ninguém vai ficar cuidando como está a sua roupa, o que você fez, se já casou, se é solteira, quem você é. É só se juntar, se divertir e se apoiar — afirma a engenheira química Janaína Junges, 42 anos, que se juntou ao grupo em fevereiro, no rafting de Três Coroas. 

De 2005 até 2021, a proprietária da agência de Sapiranga Tri Viagens, Fernanda Fülber, fez incontáveis saídas com grupos mistos de até 30 pessoas. As coisas começaram a mudar quando se deu conta de que seu público era 90% feminino e que os poucos casais heterossexuais que iam nas viagens acabavam ficando destacados do grande grupo, não vivendo a mesma experiência de conexão que os demais passageiros.  

— E quando juntava todo mundo, as mulheres que não estavam acompanhadas ficavam com um pé atrás, se resguardavam. Fui percebendo que elas se divertiam muito mais quando estavam só entre amigas, aproveitam melhor os destinos. Não é que não gostassem da presença dos homens, não tem nada a ver com isso, mas elas ficavam mais acuadas. Em 2021, resolvi segmentar só para pequenos grupos de mulheres, pois é o que dava mais certo – conta a empresária de 43 anos.  

Assim nasceu o Mulheres no Mundo, que se propõe a fazer principalmente destinos internacionais com grupos de no máximo 15 integrantes. Quando atende o telefone para conversar com Donna, Fernanda acaba de aterrissar de uma viagem de oito dias no Chile, com 10 mulheres. Elas conheceram o deserto do Atacama, passando por Santiago do Chile, Calama e San Pedro de Atacama.  

— Quando o grupo é pequeno, o entrosamento é maravilhoso. Você volta da viagem sabendo o nome e a história de cada uma, formam-se grupos muito unidos de amizade. Nesta última ida ao Atacama, ao cadastrar as informações das passageiras vi que duas moravam na mesma rua, mas não se conheciam. De propósito coloquei as duas no mesmo quarto e se deram muito bem. Na volta, disseram “Nossa, além de tudo agora vou ter uma vizinha para tomar um chimarrão” – relata a empresária.  

Em pouco mais de três anos de existência, o Mulheres no Mundo já fez roteiros em lugares como Peru, Mendoza na Argentina, Bélgica e Holanda, Punta Cana, República Dominicana, Egito e Dubai. Viajar em grupo também é uma solução para se preocupar menos e se sentir mais segura em países estrangeiros onde as mulheres são mais oprimidas, os quais tendem a ser mais perigosos para as turistas. 

— Alguns lugares que, apesar da cultura muçulmana ser um pouco mais rígida, estão acostumados com turistas dá para ir sozinha. Mas o bom de fazer em grupo é que você já sai do Brasil com tudo montado, os passeios agendados, com companheiras de viagem e suporte, então é só se preocupar em se divertir. Nossos roteiros são todos privados, então se chegamos ao Peru, por exemplo, vamos ter um carro com um motorista e guia só para nós — diz Fernanda. 

Também não quer dizer que corra tudo às mil maravilhas só porque não há presença masculina. Um dos maiores desafios em grupo e especialmente nas viagens mais longas, explica a empresária, é justamente manter o bom humor e aceitar que uma viajante é mais acelerada, outra é mais tranquila, e que essas individualidades podem conviver. Já aquele ditado infame que diz que “muita mulher junto não dá certo”, na opinião de Fernanda, não poderia ser mais falso:  

— A conexão entre as mulheres é um negócio que realmente me deixa de queixo caído, é a coisa mais bonita de se ver. Muitas vezes me surpreendo, penso “Fulana não vai se dar bem com sicrana” e quando me dou por conta estão lá juntas. O mais mágico é a conexão, a ajuda e a proteção entre elas, ao estilo “Vai naquela loja ali porque o cara dá um desconto. Te levo ali” Ou então “Oh, vamos esperar um pouquinho porque fulana foi ao banheiro”. É amizade. Se torna um grupo de amigas. 

De viagem marcada para Bélgica e Holanda no próximo 13 de abril, com 10 passageiras, Fernanda deixa um recado para quem tem vontade de dar seus pulinhos pelo mundo, mas ainda não fez por receio ou falta de parceria.  

— Para mim a questão é muito simples, ou você viaja ou não viaja. Só que não viajando, você fica presa no seu mundo, sempre pensando “Como teria sido se eu tivesse embarcado nessa?”. Então minha dica é se dê uma chance de conhecer o mundo e fazer novas amizades — recomenda a empresária.


30 DE MARÇO DE 2024 
CARPINEJAR

Poncho no botijão de gás

Eu sei qual foi o momento em que a família deixou de jejuar na Quaresma, deixou de não comer carne na Sexta-Feira Santa, deixou de se importar com a simplicidade da Páscoa, de pintar ovinhos em casa, com recheio de amendoim.

Eu sei quando ela cedeu aos encantos de ovos gigantes com brinquedos dentro, aceitando as encomendas dos filhos por determinada marca de chocolate, sem mistério, sem nenhuma pegadinha de coelho pelos corredores, a fim de despertar a fé das crianças.

Eu sei quando abandonou o tradicional almoço no lar e procurou a rapidez do restaurante a quilo.

Quando se desinteressou por completo da conversa olhando nos olhos. Quando começou a comprar comida congelada e economizar nos talheres. Quando abdicou do pãozinho da padaria ao entardecer. Quando fez questão de não mais conhecer os vizinhos. Quando parou de cumprimentar as pessoas na rua.

Quando as saídas aos shoppings tornaram-se mais frequentes do que as idas às praças. Quando abriu mão de lavar o próprio carro. Quando o intervalo do trabalho diminuiu consideravelmente, a ponto de só restar a noite para estar junto. Quando a vassoura sumiu do seu posto atrás da porta. Quando o avental desapareceu do seu gancho.

Quando cultivar uma horta passou a ser irrelevante. Quando o pai desmontou a sua oficina de marcenaria na garagem. Quando a tabuleta de "bem-vindo" acabou dispensada. Quando o capacho se divorciou da soleira.

Quando o espanador e o cortador de grama foram aposentados. Quando substituímos as raízes do jardim por algumas samambaias aéreas. Eu sei o instante exato da transformação. Foi na hora em que paramos de vestir o botijão de gás.

Aquele ato mudou a nossa mentalidade. Cuidar do botijão significava zelar pelos detalhes, pela aparência, pela ordem doméstica. Mostrava-se uma atenção com a rotina. Um capricho com as gavetas, e despensas, e fundos, e cantos, e quinas.

Tudo era forrado de palha e gentileza como uma cesta de Páscoa. Morávamos protegidos pelo celofane da educação. Não permitíamos a nudez do gás no coração de azulejos da cozinha.

Correspondia a um ultraje, a uma falta de compromisso, a uma ausência de asseio. Até ele precisava ter modos. Todos os objetos do mundo mereciam uma capa: os cadernos de aula, o filtro de barro, o liquidificador, os ternos no armário, o veículo na garagem.

Os objetos tinham que durar: geladeira era para a vida inteira, fogão era para a vida inteira, máquina de lavar era para a vida inteira. Não se cogitava trocar nada. Com as sobras das rendas das cortinas, costurávamos uma proteção para o botijão. Gostava de pensar que ele usava poncho como nós.

Vestir o botijão revelava o quanto nos preocupávamos com o desnecessário, o quanto dividíamos o sofá e a existência para assistir a um filme, o quanto desfrutávamos de tempo para amar.

CARPINEJAR

30 DE MARÇO DE 2024
LEANDRO KARNAL

Penso muito, sempre. Cada experiência positiva ou negativa produz uma pequena ou grande conclusão em mim. A vida é didática, pois erros (em particular os meus) vão moldando minha consciência. Não sei se é assim com você, querida leitora e estimado leitor. Quando vejo uma pessoa sábia, experiente e com fluxo de bons conselhos, sempre imagino: aprendeu errando. Quando dou um conselho sobre um caminho complexo a um motorista (e ele me questiona como tenho certeza da direção), respondo com a verdade: Já entrei errado, porém aprendi.

Aqui escrevo quatro conclusões que nasceram dos meus erros. Vamos lá! A primeira delas: não espere reciprocidade das suas ações. Se telefonar para alguém no aniversário da pessoa ou der um presente especial, faça porque você deseja. Se receber pessoas na sua casa, jamais aguarde um convite do mesmo tipo. Não busque ou cobre reciprocidade, pois isso causa muita dor e ressentimento. Se uma pessoa presenteada e lembrada em um aniversário responder com completo silêncio no seu, aceite como parte da vida. Se for importante para você, decida não ligar no ano seguinte. Porém, ouça a advertência nascida dos meus erros: fazer, esperando gesto similar, leva à mágoa certa. Faça o que desejar, dentro da lei e da ética, mas deixe a mesma liberdade para a outra pessoa.

Se você tem mais de 15 anos de vida, já acumulou desafetos e até inimigos. Não é possível existir sem despertar raivas nos outros Estas podem ser justas ou injustas, serão negativas em algumas pessoas. Aqui o segundo conselho de outono é duplo: aceite que alguns não gostarão de você. Tudo bem! Desdobramento deste: quem o odeia tem um motivo concreto ou abstrato e, talvez, a crítica seja verdadeira. Nossos inimigos possuem a clareza do menino que, sem afeto às convenções sociais, denuncia que o rei está nu. Quem nos ama açucara muito o olhar sobre nós. Seus adversários podem ter intuições muito ricas. Sei que é estranho, mas tente ver o motivo pelo qual você é considerado uma pessoa desagradável por X ou Y.

Terceira questão na qual errei muito - uma decisão importante e positiva deve ser comemorada. Vai parar de fumar? Começará a beber mais água? Reduzirá o consumo de álcool? Fará caminhadas? Vai dispor-se a leituras metódicas e diárias? Parabéns! A decisão foi boa; o primeiro dia de implementá-la será muito auspicioso. O entusiasmo se esgota logo. A única mudança efetiva vem da repetição, que nasce da disciplina. Não farei quando "tiver vontade" ou quando estiver "no clima". Realizarei sempre, mesmo quando a decisão desbotar-se.

Disciplina é a chave de tudo. A decisão é um espasmo de vida; a disciplina é a vida nova em si. Se você sente que não poderá manter a boa decisão, é melhor nem começar, porque o fracasso vai atacar sua autoestima. Apesar disso (claro!), você pode tudo que for importante e plausível. Assinale o primeiro dia, comemore o centésimo, passe a acreditar de verdade a partir do milésimo em que repetir o hábito decidido.

O último conselho é o mais subjetivo. Quase todos os adultos que conheço calçam entre 35 e 45, na numeração brasileira. Há exceções para baixo e para cima. Fiquemos com a média. No momento da sua vida adulta em que você atingir a numeração do seu sapato, 40 por exemplo, terá uma boa mostra de quase 50% da jornada cumprida. Vivemos, no Brasil, em média, 77 anos (as mulheres, um pouco mais). Assim, simbolicamente, a idade de 37, 38 ou 40 é um bom marco. 

Hora de avaliar: sem mudanças drásticas de rumo, o que você consegue com a idade do seu sapato (primeira metade da vida, com mais energia) será aproximadamente seu limite. Para conseguir mais, caso seja o seu desejo, precisará de ações distintas. Pode ser um novo curso superior, uma nova língua, um novo negócio ou um novo círculo de amigos. Se não mudar (e não é necessário que o faça), você irá repetir o limite atingido com a idade do sapato. Lembre-se: a maturidade causa sempre certo declínio de energia.

Acho que preciso ser mais claro. Comendo do jeito que come e fazendo a quantidade de atividade física que você faz até chegar à idade do seu sapato, você atingiu um corpo específico. Se não mudar, seu físico ficará assim e vai decair, já que o metabolismo diminui. Para produzir uma mudança real, você precisará quebrar uma tradição sua à mesa, complementada com exercícios. Isso vale para dinheiro e conhecimento: o que você sabe ou tem não dará um salto expressivo se mantiver as atuais práticas. Em resumo, sem mudança estrutural, seus sapatos indicam um limite.

Não esperar reciprocidade liberta a gente de muita mágoa. Ouvir ideias dos nossos desafetos é um exercício duro de autoconhecimento. A disciplina é a única coisa que realmente muda a vida. Por fim, a idade do seu sapato é um termômetro, nunca um destino ou uma barreira. Tenha sempre esperança e desconfie de conselhos...

LEANDRO KARNAL

30 DE MARÇO DE 2024
J.J. CAMARGO

QUEM SE IMPORTA COM A SUA DOR?

"A dor é temporária, mas resistir a ela dura para sempre." (Lance Armstrong)

No passado, era impossível a divulgação instantânea de tudo o que acontecia com alguém que adoeceu. Órgãos e queixas eram consideradas propriedades do sofredor, apto ou não a resolvê-los sozinho. A emissão de cartas abertas aos veículos de divulgação, contando de suas aflições, soaria muito estranho, porque afinal as dores eram resultantes do drama de uma pessoa só.

Os de temperamento mais recatados até recomendavam que não devíamos compartilhar nossos problemas com os que não tinham como ajudar, porque isso muitas vezes pareceria matéria de fofoca para pessoas emocionalmente descomprometidas. Um velho tio, tão inteligente quando debochado, defendia que um comportamento mais introspectivo na adversidade era o melhor jeito de evitar tristeza antecipada dos amigos ou alegria exagerada dos desafetos.

Em décadas passadas, uma importante preocupação de ordem emocional era evitar julgamentos cruéis diante de diagnósticos de certas enfermidades reveladoras de determinados comportamentos sexuais, como aids, ou doenças preconceituosamente consideradas incuráveis, como o câncer.

Na virada do século, ao lado da festejada qualificação técnica da medicina com crescente potencial curativo diante de doenças antes tidas como fatais, surgiu por força da racionalidade a medicina preventiva, na medida em que se tomou conhecimento do quanto uma simples informação contida na divulgação podia contribuir para a redução de determinadas doenças. Campanhas para prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a doutrinação antitabagismo são exemplos exitosos desse processo.

Claro que as redes sociais não podiam ficar ao largo dessa nova realidade, e imiscuíram-se de tal forma no cotidiano da sociedade que acabaram por despertar comportamentos insuspeitados, que passaram rapidamente de curiosa novidade à intransferível obrigação. A ponto de pessoas famosas se sentirem pressionadas a contribuir para a desmistificação de determinadas doenças ou comportamentos, divulgando o passo a passo de sua experiência sofrida. O que inegavelmente trouxe benefícios para a população geral, tão carente de informação.

No entanto, alguns exageros, carentes de bom senso, se tornaram evidentes: muitos fãs colocam seus ídolos como propriedade privada, e no imaginário da sua fantasia exigem compartilhamento, em tempo real, de tudo o que acontece com eles.

Kate Middleton, a princesa de Gales, vivendo a experiência devastadora de descobrir-se com câncer aos 42 anos de idade, e mãe de três filhos pequenos, ignorou a cartilha. Comportou-se como uma pessoa dolorosamente normal, e certamente mergulhada em perplexidade e sofrimento tomou para si um período de reclusão, para uma clara e justa introspecção de quem se sentiu ameaçada, e numa idade em que morrer não faz o menor sentido entre os nobres, igualzinho aos plebeus. No vídeo, que gravou três meses depois da confirmação do câncer, transparece tanta coragem, dignidade, maturidade e resiliência, que abstraindo-se o encanto pessoal que derreteria a coroa de qualquer príncipe ainda lhe sobram atributos para mantê-la no ponto mais alto do pódio da nobreza.

A mim, comoveu-me especialmente a revelação do quanto sofreu para encontrar um jeito de contar aos filhotes o que estava acontecendo. Pois essa criatura sofreu pesadas críticas, mormente por ter-se mantido em longo silêncio. Certamente remoendo umas tais dores que, desprovidas de critérios de escolha, saem por aí, a doer, sem poupar ninguém.

Entre os algozes mais agressivos, certamente estarão sempre os insensíveis, esses que diante de qualquer minúsculo problema pessoal inundam as redes com detalhes que não impactam ninguém, exceto àqueles que entenderão as queixas rasas como protesto pela insignificância indesejada.

J.J. CAMARGO

30 DE MARÇO DE 2024
FLÁVIO TAVARES

O DIA DA MENTIRA

O golpe militar de 1964 completa 60 anos dia 1º de abril, mas é impossível esquecer suas nefastas consequências - das prisões em massa à tortura como método de interrogatório ou o controle da imprensa.

Em Brasília, como jornalista, acompanhei os passos do golpe que nos levou a 21 anos de ditadura. Guardo detalhes da sessão de menos de 10 minutos em que o senador-presidente do Congresso, (sem qualquer debate) declarou "acéfala" a Presidência da República, após ler uma carta em que o presidente João Goulart informava que instalaria o governo federal em Porto Alegre "devido aos acontecimentos militares".

Aquela madrugada de 1º de abril buscava dar um tom "legal" ao movimento golpista deflagrado em Minas Gerais em 31 de março. Os golpistas protestavam contra as "reformas de base" (em especial contra as reformas agrária e financeira) tentadas pelo governo. Antes, em São Paulo, a marcha com Deus pela família e a liberdade reuniu milhares de pessoas em desfile contra o governo. A pregação do padre irlandês-americano Patrick Peyton, vindo ao Brasil para preparar a "marcha", já mostrava o oculto dedo estrangeiro.

Anos após o golpe, a historiadora Phillys Parker descobriu nos arquivos da CIA e do State Department a Operação Brother Sam sobre a participação militar americana no Brasil. Em 1964, plena Guerra Fria, a paranoia do anticomunismo dominava os EUA.

Não repetirei a documentação que compõem meu livro 1964 - o Golpe, mas lembro um detalhe que define a raiz do movimento golpista. A esquadra americana partiu da base naval de Norfolk rumo a Santos, com o porta-aviões Forrestal à frente, para intervir no Brasil. Em 2 de abril, recebeu ordem de voltar, pois João Goulart desistira de qualquer resistência.

Tempos antes do golpe, o embaixador Lincoln Gordon logrou trocar o adido militar no Brasil pelo coronel Vernon Walters, que fora o oficial de enlace dos EUA com o Exército do Brasil na guerra na Itália. Lá, Walters se fez íntimo do então major Castelo Branco, seu colega de posto no lado brasileiro. Castelo foi o primeiro ditador.

O dia da mentira virou pesadelo de 21 anos.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

30 DE MARÇO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

VOLTA AO DIÁLOGO

É sensata a decisão do governador Eduardo Leite de adiar por 30 dias o início da vigência dos decretos que cortam incentivos fiscais de 63 produtos da economia gaúcha para que volte a ser debatida a proposta de elevação da alíquota de ICMS, agora nos moldes sugeridos por um grupo de empresários. A nova alternativa é semelhante ao chamado Plano A do governo do Estado, apresentado em dezembro do ano passado e retirado do exame da Assembleia Legislativa devido à forte rejeição de setores econômicos e políticos.

Ainda que persistam divergências entre as partes, inclusive entre as próprias federações empresariais, a retomada do debate possibilita uma solução negociada para a intrincada questão. Afasta-se, assim, ao menos temporariamente, o risco de elevação abrupta no preço dos produtos da cesta básica do Estado que, segundo a pesquisa mensal do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), é uma das mais caras do país.

A reabertura das negociações também alivia o clima de intransigência que começava a se estabelecer a partir da decisão do governo de impor sua vontade - ou suas necessidades - por decretos, tendo como contraponto o inconformismo das lideranças empresariais e de outros setores da sociedade, manifestado em mobilizações públicas, entrevistas e campanhas publicitárias focadas no desgaste político da atual administração.

Resta esperar, agora, que o período de trégua seja caracterizado pelo diálogo qualificado que faltou no início do atual debate, quando o governo gaúcho - pressionado pela urgência de elevar a receita estadual e pela iminência de prejuízos decorrentes da reforma tributária federal - impôs uma escolha cruel aos setores empresariais beneficiários dos incentivos: ou o aumento de 2,5 pontos percentuais do ICMS ou o corte abrupto dos benefícios.

Agora, pelo menos, já se vislumbra uma terceira via mais palatável para todos, que tanto pode ser a elevação da alíquota geral do tributo dos atuais 17% para 19%, como sugerem os proponentes do adiamento, quanto outro acordo a ser construído com diálogo e civilidade. O que fica claro a partir desta pausa para a renegociação é o reconhecimento mútuo de que ambas as partes precisam fazer concessões para que se chegue ao fim do impasse. Não há e nem haverá soluções mágicas. 

O governo do Estado precisa desse aumento da arrecadação para financiar serviços e investimentos indispensáveis à população - e também para se nivelar a outras unidades federativas que atualizaram suas alíquotas do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) para receber retorno compatível do novo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), criado pela reforma tributária federal. Já os setores produtivos dependem dos atuais incentivos e de uma carga tributária suportável para continuar operando sem quebras e demissões. 

Mas acima desses interesses legítimos deve estar o bem-estar da população, representada pelo contribuinte que sustenta a máquina pública com o pagamento de impostos e pelo consumidor que movimenta a economia ao adquirir bens e serviços.

OPINIÃO DA RBS

30 DE MARÇO DE 2024
CÂNIONS

Movimentação econômica poderia gerar impacto de R$ 44 bilhões por ano ao PIB

O processo de concessão de parques naturais deflagrado no país nos últimos anos tem, entre seus objetivos, a exploração de um potencial bilionário. As parcerias com a iniciativa privada, que envolvem áreas municipais, estaduais e federais, como o Aparados da Serra, no Rio Grande do Sul, sustentam-se em estimativas de que a movimentação econômica gerada pelos visitantes, combinando pagamento de ingressos, hospedagem e alimentação, poderia gerar um impacto de R$ 44 bilhões ao ano no Produto Interno Bruto (PIB). Isso representa cerca de quatro vezes mais do que se contabilizou em 2019, de acordo com um estudo do Instituto Semeia.

As concessões, segundo análise do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), poderiam também quadruplicar a quantidade de visitantes anuais, chegando a 56 milhões de pessoas, e favorecer a criação de um milhão de postos de trabalho diretos e indiretos, levando-se em conta todos os 499 parques municipais, estaduais e da União contabilizados pelo Cadastro Nacional de Unidades de Conservação.

Comissão

Por isso, cinco anos atrás, o Ministério do Meio Ambiente e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) criaram uma comissão para "planejar, coordenar e supervisionar processos de concessão de serviços, áreas ou instalações de unidades de conservação federais para a exploração de turismo", segundo nota do ministério divulgada ainda na gestão anterior. A intenção era viabilizar a gestão privada em cerca de duas dezenas de áreas, escolhidas com base em critérios como o número anual de visitantes e a carência de infraestrutura.

Recentemente, o governo Lula retirou 11 áreas de conservação de um plano de desestatização, mas as manteve em um programa de parcerias de investimentos, que permite apenas a concessão da prestação de serviço, sem privatização. Outras oito unidades foram removidas de ambas as iniciativas, colocando um freio na estratégia desenhada pelo governo anterior - que buscava repetir o resultado obtido no parque das Cataratas do Iguaçu, no Paraná, concedido no final dos anos 1990 e considerado um caso de sucesso nesse tipo de parceria.

O biólogo, ambientalista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Paulo Brack sustenta que os programas de concessão precisam seguir critérios rígidos para não acabarem desvirtuados pela busca por receita financeira.

- É fundamental que se respeitem e fortaleçam os planos de manejo dos parques, que determinam os limites de uso de cada local, e se mantenha um bom nível de diálogo com cada comunidade - afirma Brack.



30 DE MARÇO DE 2024
+ ECONOMIA

Evento circula R$ 60 milhões na Serra

No calendário das principais conferências de inovação do Brasil, a Gramado Summit chega à sétima edição, entre os dias 10 e 12 de abril. Conforme estimativa baseada em levantamento do Convention & Visitors Bureau Região das Hortênsias, o impacto econômico na cidade alcança R$ 60 milhões. O valor resulta do cálculo de gasto diário de R$ 800 (hospedagem, alimentação e transporte local) por cinco dias - os três do Summit, mais o fim de semana -, para as 15 mil pessoas esperadas neste ano. Prevê 400 palestrantes em 10 trilhas de conteúdo e 500 empresas na feira de negócios.

Participam grandes e pequenas empresas de diversas cidades do Brasil e, também, iniciativas da região, que acabam fechando parcerias e contratos de diversos valores. Conforme a organização do evento, 70% do público é de fora do Rio Grande do Sul.

- O impacto da Gramado Summit vai além do evento. Geramos um reflexo econômico significativo durante três dias, mas seguimos impactando durante o resto do ano - observa o CEO do evento, Marcus Rossi.

No ano passado, recebeu 10 mil visitantes, 500 empresas expositoras na feira de negócios e cerca de 350 palestrantes.

RS evoluiu, precisa consolidar inovação

O South Summit 2024 trouxe novas conexões e investimentos ao ecossistema gaúcho de inovação. No entanto, para Kadígia Faccin, responsável pela elaboração da pesquisa Mapeando a Governança: Percepções sobre a Maturidade do Ecossistema Gaúcho de Startups, ainda é preciso maior coordenação e colaboração entre agentes do setor para que o Rio Grande do Sul assuma maior protagonismo nesse mercado.

O estudo, realizado em parceria com a Fundação Dom Cabral, indica que as startups gaúchas apresentam média de maturidade de 8,75. O ecossistema de inovação é considerado moderadamente maduro. Segundo Faccin, os índices são positivos e mostram o potencial empreendedor do Estado, especialmente em relação a capital humano e infraestrutura. Além de ser o berço de mais de mil startups, o Rio Grande do Sul é sede de 11 dos 43 parques tecnológicos e científicos do Brasil e de 29 das 363 incubadoras espalhadas pelo país, aponta a pesquisa.

- Os números são bons, têm evoluído. O Rio Grande do Sul se coloca, em alguns rankings, como o Estado mais inovador do Brasil. Mas em termos de governança, de estrutura de inovação, essa percepção não está chegando para todo mundo, o que pode fazer o Estado perder a oportunidade de continuar nesse crescimento - afirma Faccin.

Segundo a pesquisadora, infraestrutura de qualidade de vida para atrair talentos e investidores e mapeamento de objetivos e resultados de forma colaborativa são os principais desafios para o desenvolvimento sustentável do mercado de inovação no Rio Grande do Sul.

- Em governança, é difícil alinhar interesses, criar indicadores e mensurá-los. É necessário um plano de desenvolvimento territorial que coloque a inovação no centro do processo. Seria um grande ganho para o Estado - diz Faccin.

De acordo com o estudo, o índice de governança do Rio Grande do Sul é de 6,13. Faccin aponta que a solução para melhorar essa avaliação deve ser conjunta.

- A inovação é o motor que move o mundo. Enfrentar os grandes desafios da sociedade depende disso. Quanto mais perto do fomento à inovação estivermos, mais fácil será o processo de desenvolvimento do Rio Grande do Sul - recomenda a pesquisadora.

MARTA SFREDO

30 DE MARÇO DE 2024
POLÍTICA +

Leite tenta voo direto POA-Roma

Um dos compromissos do governador Eduardo Leite e de seus secretários em Roma será uma reunião com a diretoria da ItaAirways (antiga Alitalia).

Leite quer garantir um voo direto entre Porto Alegre e Roma, duas vezes por semana. Levará como exemplo o bem-sucedido caso da TAP, que tem voo direto entre a capital gaúcha e Lisboa.

Em Hamburgo, na Alemanha, o governador terá reunião com a empresa Nordex para discutir investimentos em energia limpa, especialmente eólica e produção de hidrogênio verde. Diretores do Sindienergia vão participar desse encontro.

Ainda na Alemanha, Leite fará visita a uma das unidades da Stihl, empresa consolidada no Rio Grande do Sul e que recentemente fez um investimento milionário.

Há fotos que falam mais do que as palavras, sobretudo na política. A imagem do encontro do prefeito Sebastião Melo com o presidente do PL de Porto Alegre, Luciano Zucco, e com os vereadores Comandante Nádia, Jesse Sangali e Fernanda Barth, mais o vereador Alexandre Bobabra diz tudo: o apoio do PL está garantido.

A preocupação criada com a saída do vice-prefeito Ricardo Gomes e a entrada de Nádia no partido, interpretada como sinal de que poderia ser candidata a prefeita, se dissipou na primeira conversa entre Melo e Zucco.

A reunião com a bancada ocorreu na quarta-feira à noite, no antigo gabinete de Melo, no prédio histórico da prefeitura. Dele participaram também o chefe de gabinete, André Coronel, e o secretário Cezar Schirmer, estrategista da campanha. Ficou combinado que ninguém daria entrevista, mas a coluna confirmou com mais de uma fonte que o acordo foi selado e o PL terá a vaga de vice. O resto é espuma.

ROSANE DE OLIVEIRA


30 DE MARÇO DE 2024
MARCELO RECH

É o fim do talento?

Por décadas, a cada inovação tecnológica que afetava o campo da comunicação, da cultura ou das artes, eu me mantinha firme. Eram transformações bem-vindas porque facilitariam a produção e a disseminação do conhecimento e fariam sobressair o talento criativo como um atributo que diferenciaria cada vez mais seres humanos e máquinas.

Admito que, pela primeira vez, minha fé está abalada. Quando fui apresentado ao ChatGPT, ainda nos idos de 2022, encantei-me com o potencial da disrupção que se materializava na tela à frente. Mas desconfiei se toda aquela capacidade de redação de textos e de produção de ilustrações não seria uma pá de cal no talento criativo como um fator diferenciador.

Com o avançar da febre da inteligência artificial, a coisa foi ficando mais clara. A máquina não cria do zero. O que os LLMs (sigla para a terrível expressão large language models) fazem é ingerir conhecimento alheio e regurgitá-lo em uma forma nova, muitas vezes sem qualquer traço reconhecível dos conteúdos originais. Embora a OpenAI mantenha sigilo, estima-se que um terço dos conteúdos do ChatGPT tenha sido extraído dos vastos arquivos de veículos jornalísticos, outro terço venha de meios acadêmicos e instituições científicas, e o terço restante, de governos, empresas e demais organizações.

Ou seja, entraram na casa de todo mundo sem pedir licença, levaram os móveis, os tapetes, os quadros e até as plantas. A desfaçatez está produzindo uma batelada de ações milionárias contra os LLMs. O problema central é que nenhuma atividade que use talento criativo, a menos que (Deus nos livre!) seja dependente do Estado, sobrevive se não houver respeito a direitos autorais. 

Estávamos assim quando surgiu na semana passada o Suno, um serviço capaz de produzir uma música em segundos seguindo duas ou três instruções. Você pode tirar do nada uma canção romântica para sua namorada, escrevendo a letra ou deixando isso para o Suno, e até fabricar sua própria playlist, que será única. A coisa é assustadoramente eficaz. A máquina parece mesmo compor música com qualidade razoável.

O que resta a nós, humanos? Elevar a barra do talento e desenvolver um estilo próprio, singular, porque ao menos isso a traquitana ainda não consegue replicar. Fiz um teste com o ChatGPT esta semana. Orientei-o a copiar o estilo do David Coimbra na redação de um texto sobre derrotas por pênaltis (sem provocações). "Ah, o futebol. Esse esporte que nos faz vibrar, chorar, e às vezes, nos deixa sem palavras", começou, em uma obviedade de dar dó. Pode parar, Chat. Você vai ter de se esforçar muito ainda para conseguir plagiar o David. Sorte, por enquanto, dos criadores e dos talentosos.

MARCELO RECH

sexta-feira, 29 de março de 2024


29 DE MARÇO DE 2024
CARPINEJAR

Moradores de rua

Raras eram as residências com campainha. Batiam-se palmas no portão para chamar os residentes. Aplaudíamos os nossos afetos. Os portões baixos e destrancados permitiam que a gurizada do bairro matasse a sede nas torneiras do jardim. Se o espaço não contava com a vigília de cachorro bravo, entrávamos sem pedir licença. Também nos servíamos à vontade das frutas das árvores em terreno alheio: bergamoteiras, ameixeiras, mudas de carambola. Tudo o que estava no pé poderia ser colhido, na base do buffet livre.

Eu não temia moradores de rua. Pois me sentia igual, semelhante. Vivia praticamente nas calçadas, migrando de um pátio a outro. A mãe gritava da varanda que a comida estava servida. A voz era uma corda que encerrava as nossas fantasias e aventuras e nos trazia de volta para a realidade.

A noite não principiava com o escuro, com o surgimento das estrelas no céu, mas com a decisão materna. Tomar banho significava dormir. O suor ficava lá trás, na bola de couro, no pião e no carrinho de madeira.

Naquele tempo, conhecíamos um por um dos moradores de rua. Assim como tinha o médico de família, tinha o mendigo de família. Assim como tinha o carteiro, tinha o mendigo do bairro. Assim como tinha o entregador de jornal, tinha o mendigo que aparecia sempre na mesma hora, pedindo pão velho.

Não vinha uma vez e sumia. Vinha sempre, formávamos a sua clientela fixa. Não atendíamos com raiva e pressa. Muito menos desaforávamos sua aparição. Mendigos não incomodavam. Acredito que alimentávamos uma admiração secreta pelo seu despojamento viajante, uma curiosidade pela sua história pregressa. Nunca foram confundidos com ladrões e observadores indiscretos dos pertences de dentro.

Nosso mendigo se chamava Alfredo. Usava chapéu de feltro e fumava cigarro de palha. Jamais reivindicava dinheiro, trocado, moedas. Solicitava pão velho. O que nunca ganhava. Talvez terminasse desapontado, porque acabava recebendo cacetinho quentinho, recém-comprado do armazém. Com a ajuda de um copo de leite, mastigava o pãozinho entre as mãos como uma gaita, com a manteiga ampliando a extensão brilhante dos lábios.

Falava pouco, pouquíssimo, um cumprimento ao entrar, um agradecimento ao sair. A mãe o conduzia para a antessala, não aceitava que ficasse no sereno. E se pegasse resfriado? Nosso tradicional visitante chegava no entardecer. Esquisito que já o aguardávamos nas janelas. Tal qual uma banda. Ele surgia de repente, dobrando uma esquina, como um anjo dobra as asas para não ser reconhecido.

Ele passou a ser um segundo pai, meu pai da década anterior. Pois doávamos para ele as roupas antigas do meu pai. Tornou-se uma cópia de chave paterna: vestia o pulôver, a camisa de gola, a calça. Eu desfrutava da chance de ver meu pai duas vezes ao dia.

CARPINEJAR

29 DE MARÇO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

DÍVIDA POR EDUCAÇÃO

Merece acolhida, atenção e exame criterioso por parte do governo gaúcho a proposta de abertura de vagas no Ensino Médio Técnico em troca da redução dos juros da dívida do Estado com a União. A ideia apresentada no último dia 26 pelo ministro Fernando Haddad aos governadores das unidades federativas mais endividadas, entre as quais o Rio Grande do Sul, pode não ser uma solução definitiva para o impasse que se arrasta há décadas, mas tende a representar um alívio imediato para os Estados signatários do regime de recuperação fiscal que não estão conseguindo honrar seus compromissos. Além disso, tem um propósito inquestionavelmente meritório: assegurar educação e formação profissional para milhares de jovens que atualmente estão excluídos da escola ou do Ensino Médio Técnico e Profissionalizante.

O primeiro ponto positivo a ser considerado é o reconhecimento, por parte do governo federal, de que os devedores não têm condições de pagar 4% de juro real apenas com as receitas estaduais. Num primeiro momento, a convergência de visões sobre este aspecto evita que os Estados continuem recorrendo ao Judiciário para adiar pagamentos e impedir a suspensão de repasses por parte da União como contragarantia das dívidas.

Cabe recordar que o atual endividamento dos Estados decorre de empréstimos diretos feitos pelo governo federal ou de situações em que os entes federados contratam créditos no mercado financeiro, tendo a União como garantidora. Apenas no mês passado, de acordo com o Relatório de Garantias Honradas pela União em Operações de Crédito, o Tesouro Nacional pagou R$ 1,22 bilhão de dívidas atrasadas dos Estados. Não se trata, portanto, de uma cobrança extorsiva fundamentada em juros abusivos como já se apregoou no passado.

Por isso, outro ponto promissor da atual negociação é o estabelecimento de um pacto informal de confiança mútua entre governantes de tendências políticas divergentes. Assim, também no âmbito federal, começa a ser deixada de lado a visão preconceituosa de que as dificuldades financeiras decorrem apenas da gastança desenfreada e da irresponsabilidade fiscal dos gestores estaduais. Ainda que tais deformações tenham ocorrido com demasiada frequência no passado e que ainda possam ocorrer em casos pontuais, o aperfeiçoamento da legislação e a ação dos órgãos fiscalizadores, entre os quais os Tribunais de Contas e o Poder Legislativo estadual, têm sido suficientes para inibir eventuais descontroles.

No aspecto prático, para dar continuidade à negociação deflagrada no encontro entre o ministro da Fazenda e os governadores, duas ações precisam ser imediatamente empreendidas pelo governo gaúcho: uma avaliação cuidadosa do impacto do acordo nas finanças do Estado e o planejamento realista da inclusão de novos estudantes na rede estadual de ensino, de modo que o sistema sustente a demanda e ofereça ensino de qualidade para que os jovens possam ser efetivamente beneficiados. O programa Juros por Educação parece ter potencial para destravar o Ensino Médio e mudar a realidade educacional do país. Mas só prosperará se as portas do diálogo continuarem abertas.


29 DE MARÇO DE 2024
+ ECONOMIA

Lucro recorde em 2023 com imóveis

Conforme o balanço de 2023, a Melnick alcançou pela primeira vez lucro líquido acima de R$ 100 milhões. Foram exatos R$ 104 milhões, 23% acima do mesmo indicador em 2022. Foi resultado, segundo o diretor financeiro e de relações com o mercado, Juliano Melnick (foto), de aumento de 25% nas vendas líquidas, para R$ 809 milhões e de 20% nos lançamentos líquidos, para R$ 732 milhões.

Tudo é "líquido" porque, no ramo da construção civil, cada projeto é feito com uma combinação específica com outros parceiros. E, claro, nos resultados conta apenas a parte específica da Melnick. Esse é um detalhe que também embute um sinal de futuro da companhia, detalha Juliano:

- No próximo ciclo de três anos, vamos crescer dentro da nossa parte. Devemos manter certa estabilidade nos lançamentos brutos (com parceiros), mas vamos dividir com menos investidores. Isso é bom para o mercado, porque vamos ofertar uma quantidade semelhante. É uma decisão empresarial, estamos com mais apetite.

A estratégia tem relação com o IPO (oferta de ações na bolsa de valores pela primeira vez) em setembro de 2020. Obteve um bom resultado e ficou capitalizada, mas em meio a um "cenário supernebuloso", como define Juliano:

- Houve uma mudança gigantesca. Surgiu uma pandemia, o juro decolou, tinha eleição presidencial em país polarizado, surgiu uma guerra na Ucrânia. A companhia optou por um crescimento operacional, mas dividimos com investidores para diluir o risco. Agora, o cenário está um pouco mais claro.

Neste ano, o Melnick Day, momento em que a construtora oferece unidades com descontos, gerou contratos que somaram R$ 301 milhões, o que chegou a surpreender o empresário, que caracteriza a data como "o quinto trimestre" da empresa.

Nos últimos dias, houve movimentação com ações da Melnick. A Even, construtora paulista que tinha 37,56% das ações da construtora gaúcha, vendeu 8,29% para a Melpar Invest, gestora de investimentos de Leandro Melnick. Em outra movimentação, a Puras Holland Park, do gaúcho Hermes Gazzola, aumentou sua fatia para 10,27%. Mesmo assim, a Even mantém participação relevante na construtora gaúcha.

Em 2015, um grupo dominado por investidores gaúchos, liderado por Leandro Melnick, tornou-se acionista de referência da Even. Entre os participantes, estão as famílias Zaffari, Gazzola e Grendene. Ou seja, as compras foram feitas entre sócios das duas empresas.

MARTA SFREDO


29 DE MARÇO DE 2024
DANIEL SCOLA

Uma lição de vida dos imigrantes

Pobres, famintos e maltrapilhos, os primeiros italianos chegaram ao Brasil em 1874. Muitos pereceram durante a viagem de navio, que levava, na época, 40 dias para chegar ao novo continente. Foi uma epopeia que precisa ser celebrada. A comunidade de imigrantes está comemorando 150 anos dessa saga. Um ano depois, em 1875, eles vieram para o Rio Grande do Sul. Um dos destinos foi Montenegro e dali se espalharam para outras regiões do Estado.

Eram desvalidos, mas cheios de vontade de trabalhar. Foi assim que os Scola e os Furlin chegaram aqui em 1874, como muitos outros. Não conto isso por ser a minha história. São dezenas de famílias que merecem o reconhecimento. São vencedores. Deixaram para trás uma Itália pobre e dividida, mas trouxeram algo que não se carrega numa mala: o empreendedorismo.

Saíram de suas casas para um país desconhecido. O imperador brasileiro, Dom Pedro II, prometeu aos europeus terras férteis e muito dinheiro. Claro que isso não existia. Mas os miseráveis italianos acreditaram na lorota. O que o Brasil queria mesmo era atrair os imigrantes para ocupar as áreas menos povoadas. 

Quando chegaram de navio, primeiro em São Paulo, depois no Rio Grande do Sul, viram que não era nada disso. Teriam de trabalhar bastante para vencer. Sem conhecer nada do novo país, abriram mato a facão, daí o nome picadas, que é quando se corta a vegetação para fazer um caminho. Assentaram-se no meio do mato e formaram pequenas comunidades para sobreviver. Nesses locais, eles plantaram para poder comer.

Desde aquele momento decidiram que se as famílias vivessem juntas teriam mais chance de sobrevivência. Nesse ambiente hostil, conseguiram avançar e hoje seus descendentes são famílias prósperas em áreas como indústria, construção e comércio. Atualmente, estima-se que existam 25 milhões de ítalodescendentes no Brasil. É a maior comunidade de italianos fora da Itália. Só no Rio Grande do Sul, são 130 mil. O Estado brasileiro com mais descendentes é São Paulo, onde a população passa de 300 mil pessoas. Atualmente, todos os descendentes são, no fim das contas, brasileiros.

DANIEL SCOLA

quinta-feira, 28 de março de 2024


28 DE MARÇO DE 2024
CARPINEJAR

A polêmica cavadinha

Minha primeira reação à cavadinha do zagueiro colorado Robert Renan no pênalti decisivo contra o Juventude, que decretou a eliminação do Inter, foi de perplexidade. Considerei o ato uma afronta, um desleixo. Ele literalmente entregou a bola para o goleiro adversário como se fosse um aquecimento, esqueceu que estava definindo a classificação para uma final, para um título que seu time não ganha há sete anos.

Eu o odiei com todas as minhas forças, gastei o estoque de meus desaforos, esfolei meus pés na cadeira, queria mandá-lo embora para sempre. Transformou-se imediatamente num novo vilão, num anti-herói, numa persona non grata lá em casa.

Minha segunda avaliação da cena trágica também se mostrou agressiva: caracterizei o gesto como a manifestação de soberba e inconsequência de um jovem de 20 anos, de salto alto. Ele desceu de paraquedas no Beira-Rio, incapaz de entender a importância do momento para sua torcida, para aqueles 40 mil torcedores aflitos. Ele ainda não tinha chão no estádio, quilometragem no clube. Descolado da história da rivalidade com o Grêmio, encontrava-se sob os efeitos nefastos de uma contratação recente.

Afinal, não se brinca numa hora dessas. Melhor errar com força, como Mercado fez, do que telegrafar a cobrança com suavidade irritante. Depois, revendo o lance, diminuí um pouco a minha cólera. Já achei que ele tentou imitar a frieza de Enner Valencia, que bate o pênalti com um desembaraço budista. Já o qualificava como um infeliz discípulo.

Na manhã seguinte, em mais uma reprise, porque a penalidade virou meme nas redes sociais, especialmente pela flauta gremista, eu entendi que ele foi apenas ingênuo. Ele repetiu exatamente sua cobrança que deu certo na Supercopa da Rússia, inclusive no mesmo canto.

Atuando pelo Zenit, ele realizou também uma cavadinha que garantiu o título na temporada 2023-2024, contra o CSKA Moscou. Ou seja, nervoso e inseguro na semifinal, ele manteve o seu truque, recorrendo à batida que garantiu o troféu antes. Não quis inovar. Seguiu a sua fórmula de sucesso. Ainda que parecesse um deboche, representava sua tradição.

O que ele não atinou é que o goleiro Gabriel, do Juventude, conhecia sua fama. O chute colocado da conquista para a equipe de São Petersburgo viralizou internacionalmente na época - assim como seu erro viralizou agora.

Por isso, Gabriel nem se deslocou demais do centro das traves. Ofereceu o lado esquerdo e calculou que a bola viria fácil, manhosa, deixando-o saltar à vontade em direção a ela. A ingenuidade de Robert Renan é perdoável. Não o crucifiquem. Ele merece outra chance.

Não perdoo o Inter, que, pelo jeito, nem sequer treinou cobrança de penalidades para o desafio mata-mata. Talvez por arrogância. Se tivesse treinado, avisaria Renan que a sua mágica era manjada. Coudet confessou que não sabia do histórico do zagueiro. Nem nos treinos? Não, pois certamente não existiram.

O Inter vive me desmoralizando. É só escrever que acredito nele que vem desgraça pela frente. É muito difícil ser escritor colorado. É muito difícil, na verdade, ser colorado.

CARPINEJAR

28 DE MARÇO DE 2024
OPINIÃO DA RBS

A REALIDADE SE IMPÕE

Mesmo atrasada e comedida demais para a gravidade da situação, a nota divulgada na terça-feira pelo Itamaraty com críticas ao processo eleitoral da Venezuela traz a expectativa de que o Brasil possa ao menos estar começando a reconhecer a farsa encenada pelo ditador Nicolás Maduro. Ainda é cedo, no entanto, para ter a segurança de que o governo Luiz Inácio Lula da Silva rendeu-se ao fato de que o país vizinho não é uma democracia há bastante tempo e o autocrata no poder há 11 anos organiza uma eleição de fachada para se manter no Palácio de Miraflores. Infelizmente, não é demasiada a hipótese de Lula ter apenas feito um movimento pontual para aplacar as contrariedades da opinião pública brasileira à complacência do petista com o regime venezuelano.

A mais nova artimanha de Maduro foi o inexplicável impedimento de a oposicionista Corina Yoris registrar a sua candidatura à presidência no sistema de inscrição da autoridade nacional eleitoral por não conseguir acessar a plataforma. Corina, filósofa e professora universitária, é apoiada pela ex-deputada María Corina Machado para ser o principal nome a desafiar Maduro na eleição de julho. María, deve-se lembrar, foi inabilitada a concorrer para cargos públicos por 15 anos após vencer as primárias da oposição por maioria esmagadora no final do ano passado. A alegação é de que teria cometido "irregularidades administrativas" quando era parlamentar.

A manobra grotesca desta semana, apenas mais uma para impedir a realização de uma eleição minimamente competitiva, fez o Itamaraty publicar uma declaração dizendo que "o governo brasileiro acompanha com expectativa e preocupação o desenrolar do processo eleitoral naquele país" e observar que Corina Yoris foi barrada de registrar-se sem qualquer explicação oficial. Mesmo sem qualquer exagero retórico, a nota mereceu uma resposta deselegante da Venezuela, mas compatível com a habitual truculência do regime chavista. O ministro de Relações Exteriores, Yván Gil, chegou a indicar que a declaração brasileira parecia ter sido ditada pelo Departamento de Estado dos EUA.

Em outubro do ano passado, o chamado Acordo de Barbados, firmado entre o governo venezuelano e a oposição, com mediação internacional, parecia ser um sopro de esperança para a Venezuela ter eleições livres neste ano. Em troca, o país teria alívio em sanções comerciais. Tudo não passou de mero jogo de cena. Em seguida, o regime prosseguiu as perseguições e prisões de oposicionistas e não arrefeceu na ofensiva para evitar que os principais oposicionistas concorressem.

O Brasil fará uma correção de rumo acertada se continuar cobrando a Venezuela e criticando arbítrios, até que exista uma verdadeira abertura no país lindeiro. Lula e o PT, por vínculos ideológicos, têm dificuldades para reconhecer a ditadura de Maduro e a captura das instituições, o que impede pleitos justos e uma vida democrática em patamares mínimos na Venezuela. 

O resultado é a miséria do povo e violações constantes dos direitos humanos, já denunciadas pela maior parte da esquerda sul-americana. A realidade se impõe e o governo brasileiro tem de reconhecê-la. Aguarda-se que a nota do Itamaraty marque o fim da relativização da autocracia venezuelana. Aguarda-se que a nota do Itamaraty marque o fim da relativização da autocracia venezuelana

OPINIÃO DA RBS


28 DE MARÇO DE 2024
TULIO MILMAN

Efeito colateral desejado

O evento acabou, muita coisa já foi dita. O South Summit, na sua mais recente edição, chegou a um ponto de maturidade. Organização, conteúdos, fluxos, serviços, mobilidade: tudo melhorou. Mais uma vez, fui convidado a atuar como mestre de cerimônias de um dos palcos, o Demo. Basicamente, fiz a costura entre os painéis e palestras, apresentando os temas e os convidados, para depois interrompê-los, da forma mais suave possível, quando o tempo se esgotava. Trabalhei com um time altamente motivado, que uniu foco no resultado com camaradagem e respeito. 

Consegui prestar atenção em muitas das palestras. Transcrevo, a seguir, a expressão mais pronunciada nos três dias: inteligência artificial. Estamos no exato momento em que seu uso é irreversível e suas consequências imprevisíveis. É um terreno fértil para palpites, projeções, análises e chutes de todos os tipos. Faz parte do processo. Inovação é erro que leva ao acerto.

De fato, comecei este texto com a intenção de comentar um aspecto que, em 2024, me chamou ainda mais atenção. Como integrante da equipe, eu tinha a opção de entrar pelos bastidores, a parte do evento invisível a milhares de participantes. Foi ali que confirmei um dos efeitos mais poderosos do South Summit: o orgulho que as pessoas têm de trabalhar nele. Era visível, pela postura corporal, pelas palavras e pelos gestos de todos os que encontrei pelo caminho. 

Do segurança ao faxineiro, do garçom ao motorista de ambulância. A autoestima de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul fica fortalecida, a exemplo do que aconteceu na Copa do Mundo. Por isso, defendo os investimentos em grandes eventos, porque eles movimentam a economia, geram renda e empregos, mas, acima de tudo, pelo legado intangível que conversa com a alegria das pessoas e com o fortalecimento das marcas envolvidas, sejam elas de uma cidade, de um governo ou de uma empresa.

Ouvi de um conhecido que encontrei pelo caminho, entre um café e outro no estande do BRDE - aliás, o melhor café do evento: "Isso nem parece Porto Alegre", afirmou. Entendi o que ele quis dizer, por se tratar de um cenário cosmopolita e pulsante, não tão comum nesse sul de mundo abençoado. Mas, rindo, contra-ataquei. "Isso parece Porto Alegre. A pasmaceira, o caranguejismo e o ranço bravateiro é que não parecem". E o melhor de tudo é que em 2025 tem mais.

TULIO MILMAN