terça-feira, 31 de março de 2020


31 DE MARÇO DE 2020
CARLOS GERBASE

O que houve, Sra. Maisel?

A Maravilhosa Sra. Maisel, série de comédia da Amazon Prime, teve duas temporadas magníficas, em 2017 e 2018, sob qualquer ponto de vista. Personagens cativantes, trama ágil, muitas piadas boas, produção recriando com esmero cenários e figurinos do final dos anos 1950, abordagem de temas importantes, como o feminismo e a censura, e, acima de tudo, o compromisso de fazer rir com elegância. Havia, é inevitável, o uso das convenções do gênero, mas elas estavam sempre embaladas com frescor estético e narrativo.

Esta não é apenas a minha opinião. As duas temporadas receberam uma montanha de prêmios Emmy, o mais importante da TV norte-americana. Rachel Brosnahan, que vive a Sra. Maisel - uma dona de casa que resolve entrar para o mundo da comédia stand-up em Nova York -, parecia ser capaz de nos manter cativados para sempre, com seus vestidos incríveis e sua língua deliciosamente ferina, que falava de sexo com liberdade e ousadia.

Então veio a terceira temporada, de 2019. Foi apenas boa. E, há poucas semanas, foi lançada a de 2020. É um desastre. O primeiro e o segundo episódios não me arrancaram uma única risada. Estou com medo de ir para o terceiro. O que houve? É o mesmo elenco interpretando os mesmos personagens. São os mesmos produtores, quase os mesmos roteiristas e a produção ainda é espetacular. Mas a série não é mais engraçada.

O saudoso professor Aníbal Damasceno Ferreira, que estudava o humor na literatura e no cinema, tinha suas teorias a respeito. Talvez ele possa desvendar o mistério. O Aníbal dizia que, quando um texto é bom, deve ser adaptado com economia dramática, evitando exageros. Seu exemplo clássico eram as encenações de Nelson Rodrigues - um gênio de ululante comicidade -, tanto nas peças, quanto nos filmes. Quase invariavelmente, havia uma combinação de falas gritadas e gestos grandiloquentes, que sufocavam qualquer traço de humor e verossimilhança.

É o que está acontecendo com a série. Todos estão se esforçando ao máximo para serem engraçados. E exageram. Seus gestos, suas caras e bocas - e até seus figurinos! - perderam a leveza e a elegância. O que antes era convenção virou estereótipo. O que antes lembrava os melhores momentos de Blake Edwards agora lembra os piores de Zorra Total. É uma pena, querida Sra. Maisel. E não tem graça.

CARLOS GERBASE

31 DE MARÇO DE 2020
CARPINEJAR

Nem o enterro é poupado

Com o isolamento provocado pelo coronavírus, a maior privação é a proibição para se despedir de um amigo, a incapacidade de comparecer a um enterro.


Dói não completar o luto com os próprios olhos. Dói não poder acenar a alguém com quem nunca mais se encontrará na vida. Dói não poder sussurrar as últimas palavras.

Dói não poder agradecer a amizade.  Dói não poder estranhar aquele rosto magro e pálido na porta de vidro, o corpo encolhido do fim, absolutamente irreconhecível, e comentar que não é a mesma pessoa.

Dói não poder encomendar a alma no papel de seda das lágrimas. Dói não poder bater palmas quando o caixão baixar à terra. Dói não poder homenagear a saudade com o traje escuro.

Dói não poder lembrar de alguma história em particular, uma anedota, uma frase espirituosa, para ser dividida publicamente.

Dói não ter poder nenhum de determinar o adeus. O vírus não vem roubando apenas a nossa presença, vem profanando valiosas e definitivas ausências.

Não existe desonra igualmente funda, remorso igualmente agudo quanto o de faltar no velório de um ente querido e marcante.

Nem a morte é poupada da quarentena, nem ela recebe uma trégua, um salvo-conduto, uma licença para ir e vir.

O contágio deveria pausar - congelando o vento da devastação por um momento - para que cada perda mereça um desfecho digno, uma saída barulhenta e concorrida capaz de rivalizar com os gritos de nascimento no parto.

Mas os enterros estão cada vez mais vazios, as ruas dos cemitérios cada vez mais cinzentas.

Sobram coroas de flores, escasseiam testemunhas para arremessar pétalas à sepultura.

Não há fila indiana seguindo os féretros. Não há procissão para extravasar o quanto o defunto fora amado, o quanto é insubstituível, o quanto foi determinante e influente nas escolhas dos presentes. Não há capela cheia para rezar de mãos dadas. Não há como dar os pêsames aos familiares desesperados pela lacuna inexplicável.

O coveiro estará sozinho tanto quanto o morto. A gaveta será preenchida com o cimento da colher, longe de nossa respiração atenta e plangente.

Não contaremos com nenhuma possibilidade depois de voltar no tempo. É mais um agora extinto dentro de nossa impotência.

CARPINEJAR


31 DE MARÇO DE 2020

DAVID COIMBRA


Operação mãos limpas


Tenho tentado lavar as mãos de acordo com as orientações dos especialistas em lavação de mãos. Não é tão fácil. Às vezes me perco em meio ao processo e fico em dúvida se minhas mãos estão realmente limpas. Então, procurei um tutorial no YouTube, acoplei o celular à pia do banheiro e comecei a fazer o que a técnica do vídeo mandava.

No tutorial, não aparecia o rosto da profissional de lavação. Apenas suas mãos. Ela calçou luvas de borracha e colocou tinta vermelha na palma a fim de simular o sabão. Fiz a mesma coisa, só que com sabão de verdade e sem luvas. Fiquei acompanhando o vídeo. Ao espalhar a tinta, ela provou que, ainda que a gente esfregue uma mão contra a outra, várias partes continuam sujas, intocadas pelo sabão purificador. Mãos imundas, na verdade. Oh, Deus, isso significa que passei a vida lavando as mãos do jeito errado. Quantos micróbios não ingeri por causa disso? De quantas gripes e dores de barriga e tudo mais padeci só porque não sabia lavar as mãos?

Há uma etapa do vídeo em que ela reserva atenção especial às unhas e às pontas dos dedos. É preciso remover absolutamente toda a sujeira que se acumula nessa região, que, segundo a perita, é a que mais tem contato com as superfícies contaminadas no nosso entorno. Foi uma agonia pensar nisso, tenho certeza de que debaixo de minhas unhas há um monte de coronas se revolvendo feito vermes.

E as laterais! Também temos de cuidar com muito critério das laterais, porque, de acordo com os ensinamentos da expert, passamos as laterais pelos cabelos, o que os deixa desgraçadamente infectados, como se fôssemos medusas saindo por aí com serpentes na cabeça. E ainda há o dorso das mãos. E os polegares. E também os punhos, é indispensável assear até os cotovelos. Jesus!

Decidi que seria mais simples tomar um banho de uma vez. Foi o que fiz. Meti-me debaixo da água quente e quase que consegui ver chumaços de coronas descendo pelo ralo enquanto me esfregava com fúria, gritando:

- Vade retro! Vade retro!

Saí do banheiro, vesti roupas imaculadas, suspirei de alívio e peguei o celular da pia. Então, dei um tapa na testa: o celular! Se minhas mãos estavam coronadas antes, é certo que este celular continua com coronas saindo pelos gorgomilos, pois o manipulei! E agora? O que fazer? O YouTube! O YouTube tem a resposta para todas as nossas angústias. Mas não podia usar o celular, ele estava interditado. Corri para o laptop e, antes que pudesse dizer Cucamonga, estava diante de um instrutivo tutorial sobre como limpar o celular.

"Desligue o aparelho!", ordenou o especialista em lavação de celulares. Desliguei.

"Tire a capinha!" Tirei. "Arranje um pano macio, que não solte fiapos!" Isso foi mais difícil. Vasculhei a casa por alguns minutos e encontrei um.

"Use álcool isopropílico com concentração de 70%!" Ah, não. Onde é que iria arrumar álcool isopropílico com concentração de 70% numa hora dessas? Aliás, o que, afinal, é um álcool isopropílico? Sentei-me no fundo do sofá da sala, olhando com desânimo para meu celular infectado. É dura a tarefa de higienização do homem confinado.

DAVID COIMBRA


31 DE MARÇO DE 2020

OPINIÃO DA RBS

HORA DA SOLIDARIEDADE

Grandes crises forjam e fortalecem o caráter e a trajetória de um povo. Ao longo de sua rica história, o Rio Grande do Sul coleciona uma sucessão de episódios dramáticos que sedimentaram o evidente traço generoso dos gaúchos. Nos momentos mais críticos, o altruís- mo sempre aflorou na população, com mãos estendidas para amparar os que mais precisam de apoio. Foi assim tanto nas tragédias naturais quanto em acontecimentos que causaram uma dor coletiva lancinante, como a tragédia da boate Kiss, que dilacerou o coração do Rio Grande.

Os exemplos de solidariedade, agora, se multiplicam Estado afora. De grandes doações de empresários e empresas ao gesto simples e desprendido de fazer compras no supermercado ou na farmácia para idosos que têm maiores restrições de sair de casa. Recursos, equipamentos médicos, estruturas físicas à disposição de órgãos da área de saúde e alimentação para a população mais vulnerável são apenas algumas das iniciativas que proliferam nos últimos dias.

De janelas e sacadas, talentos anônimos surgem, com suas vozes e instrumentos, para com a música levar para a vizinhança um pouco de conforto em dias e noites de distanciamento social. São os gaúchos mais uma vez se mobilizando e mostrando altivez e empatia em um momento em que é preciso mitigar os efeitos colaterais do inadiável combate ao coronavírus. O isolamento físico não precisa ser sinônimo de desassistência.

O egoísmo e o individualismo não devem ter espaço entre os gaúchos neste momento de emergência sanitária. Da mesma forma, precisam ser condenadas e censuradas todas as atitudes oportunistas e tentativas de tirar proveito do temor da população em uma situação de alta volatilidade emocional.

O respaldo das comunidades, dentro do possível, também pode se estender para o apoio à manutenção de negócios em funcionamento, quando está em vigor uma série de acertadas medidas restritivas. Seja antecipando pagamentos, quando praticável, privilegiando o comércio de bairro ou contratando serviços que serão feitos assim que a tempestade passar. Mais dia, menos dia, o Brasil voltará à normalidade. Mas há uma distância incerta até lá e os gaúchos certamente continuarão a esbanjar solidariedade para que esta travessia seja menos dolorosa.

A atual pandemia de coronavírus é um episódio que deixará uma marca indelével nesta geração e possivelmente será um dos eventos marcantes deste século. Nos próximos anos e décadas, certamente será objeto de profundos estudos em áreas como medicina, psicologia social e economia, entre outros campos do conhecimento. Alguns personagens desta era serão reconhecidos. Outros, talvez lembrados de forma pouco honrosa. Mas, mais do que transformar, crises reafirmam a índole de um povo. E a esmagadora maioria da sociedade gaúcha, pela soma de cada gesto individual, caminha para ficar no lado certo da História.

OPINIÃO DA RBS


31 DE MARÇO DE 2020
RBS BRASÍLIA

Mandetta no comando

Se a intenção dos articuladores da Presidência da República era diminuir o protagonismo do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ao transferir o balanço das ações do coronavírus para o Palácio do Planalto, a estratégia deu errado. Em meio a outros quatro ministros, o médico e ex-deputado federal mostrou por que se consolidou como a principal liderança no comando técnico da crise.

E mais: ele conta, hoje, com o apoio incondicional do Congresso, de colegas da Esplanada e da ala militar do governo. Questionado se existia risco de sair da pasta, nem teve chance de responder. O ministro da Casa Civil, general Braga Netto, pulou na frente e decretou:

- Não existe ideia de demissão do ministro Mandetta no momento. Fora de cogitação. Ex-parlamentar calejado, Mandetta arrematou, lembrando que, em política, quando alguém diz que algo não existe é porque existe. Uma brincadeira cheia de recados.

A divergência entre Bolsonaro e o ministro da Saúde é mesmo uma pedra no meio do caminho. Mas, como diz o próprio Mandetta, é só uma parte de um problema muito maior: uma pandemia que ataca todas as nações do mundo. Portanto, o comando é ter foco e construir uma saída conjunta com Estados e municípios.

Por enquanto, a ordem é manter o distanciamento social e dar um tempo para que o sistema de saúde se consolide com segurança nas diferentes regiões.

- Nada será feito isoladamente - reforçou o ministro. Governadores e prefeitos respiram aliviados.

CAROLINA BAHIA

31 DE MARÇO DE 2020
+ ECONOMIA

Fábrica doa equipamento a hospitais

Especializada na fabricação de materiais em acrílico, a Componenti está reforçando o time de empresas gaúchas na produção de materiais de proteção para quem está atuando nos serviços essenciais durante a pandemia do coronavírus. Como outras indústrias da serra gaúcha, a empresa de Bento Gonçalves fabricou e doou para hospitais 350 máscaras de proteção para o rosto, tecnicamente conhecidas pelo termo em inglês faceshield. Outras cem unidades foram doadas individualmente pela empresa. Segundo o diretor comercial da empresa, Alessandro Lazzarotto, as máscaras seguem os padrões exigidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Além das faceshield, a empresa também está fabrica caixas em acrílico, utilizadas para proteger os profissionais da saúde durante o processo de entubação de um paciente. Três desses equipamentos já foram doados.

com caixa robusto, a Braskem oferece a partir de amanhã até R$ 1 bilhão em crédito extra a seus clientes. é para compra de seus produtos, resinas plásticas como polietileno e PVC, usadas em embalagens de alimentos. o juro é o do CDI, Acima da taxa básica, mas um dos mais baixos do mercado. Fica a dica: quem tem caixa ajuda quem não tem.

A fabricante Star Dream, criada há apenas três anos em Nova Hartz, está oferecendo cerca de 50 colchões hospitalares certificados pelo Inmetro a preço de custo para expansões de capacidade no Estado. Conforme a empresa, foi a forma que encontrou para contribuir.

A Unicred RS, instituição financeira cooperativa focada em profissionais de saúde, faz campanha de doações para reforçar os hospitais. A unidade Unicred Região da Campanha anunciou a doação de R$ 180 mil para cinco hospitais da região: Santa Casa de Bagé, Hospital Universitário Doutor Mário Araújo da Urcamp, Hospital Santa Casa de Santana do Livramento, Santa Casa de Dom Pedrito e Santa Casa de Rosário do Sul.

De hoje a sábado, sempre às 19h, o laboratório de inovação Anlab fará webinars (conferências educacionais online) sobre varejo, agronegócio, serviços e indústria. Os encontros virtuais vão reunir líderes da cada setor para compartilhar experiências na pandemia da covid-19.

Amanhã, a Câmara Brasil-Alemanha no RS (AHKRS) organiza webinar sobre questões trabalhistas, das 10h às 10h30min, pela plataforma Zoom.

MARTA SFREDO

31 DE MARÇO DE 2020
FUNCIONALISMO

RS paga hoje salários de quem ganha até R$ 1,5 mil

O governo do Estado confirmou que o salário do funcionalismo começará a ser pago hoje, mas somente para quem ganha até R$ 1,5 mil líquidos, o que representa 25% dos servidores. Também durante o dia será depositada mais uma parcela da gratificação natalina de 2019. Os demais, receberão depósitos ao longo do mês, entre 13 e 30 de abril.

Pelo calendário projetado, quem ganha mais de R$ 1,5 mil líquidos só receberá a primeira parcela em 13 de abril, quando será depositado R$ 1,5mil. No dia seguinte, haverá novo pagamento, de até R$ 4 mil. Com isso, estarão quitados os salários de quem ganha até R$ 5,5 mil, o que corresponde a 82% da folha.

Haverá novo depósito de até R$ 2,5 mil em 28 de abril. A folha será concluída em 30 de abril, quando os servidores com salários mais altos receberão complemento.

Conforme o secretário estadual da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso, a estimativa de redução de receita em abril é de R$ 700 milhões, o que representa R$ 350 milhões líquidos nos cofres do Estado. A pasta irá manter o cronograma de repasses para pagamentos da saúde e dos municípios.

Reavaliação

Ontem, a prefeitura de Porto Alegre anunciou que todos os servidores receberão hoje seus salários. Conforme a Secretaria da Fazenda, além de ajustes nas contas, o caixa está reforçado com a entrada do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU).

O titular da pasta, Leonardo Busatto, relata que a programação da prefeitura previa o pagamento em dia dos municipários até o final do ano. No entanto, a situação será reavaliada após a dimensão do impacto do coronavírus.

MATEUS FERRAZ

31 DE MARÇO DE 2020
CHAMOU A ATENÇÃO

As 11 regras do Twitter

A decisão do Twitter de excluir duas postagens da conta do presidente Jair Bolsonaro foi baseada em princípios recentemente definidos pela rede social diante da pandemia de coronavírus. Segundo a plataforma, o presidente violou as regras ao fazer duas publicações que o mostravam circulando e conversando com comerciantes no domingo em Sobradinho e Taguatinga, no Distrito Federal (DF), contrariando as recomendações de isolamento social do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Ao comentar o caso de Bolsonaro, o Twitter citou condutas que podem atentar "contra informações de saúde pública", o que poderia "colocar as pessoas em maior risco de transmitir covid-19". Foi a primeira vez que a plataforma deletou postagens do presidente, que tem 6,3 milhões de seguidores. Apesar de ter apagado duas publicações, uma terceira, do mesmo dia e que mostrava Bolsonaro no meio de aglomerações em Ceilândia, também no DF, foi mantida no ar. O Twitter não explicou quais critérios usou para definir o que deveria sair e o que poderia ficar.

As regras do Twitter estão em um blog de atualização contínua. A plataforma definiu 11 critérios que podem levar perfis a terem conteúdos removidos. Embora não tenha comentado, é possível que a rede social tenha excluído as postagens do presidente com base no primeiro item: "Negação das recomendações de autoridades de saúde locais ou globais para diminuir a possível exposição ao covid-19 com a intenção de influenciar as pessoas a agir contra as orientações recomendadas". Ontem, Bolsonaro foi questionado sobre a decisão do Twitter, mas respondeu que não iria discutir por se tratar de "uma empresa particular".

31 DE MARÇO DE 2020
INFORME ESPECIAL

O equívoco de Eduardo Leite no "Jornal do Almoço"

Em entrevista no Jornal do Almoço, o governador Eduardo Leite disse que o isolamento total, em todas as cidades gaúchas ao mesmo tempo, é um remédio amargo demais. Ele tem razão. O que Eduardo Leite parece desconhecer é que não cumprir o isolamento total é um remédio fatal. Logo, é veneno.

Os maiores médicos do mundo concordam que é preciso ficar em casa. O fato de não haver sintomas não significa que o vírus não esteja circulando, mesmo em cidades pequenas, onde moram os velhos e de onde os mais jovens vêm e vão - para a universidade ou para trabalhar nos maiores centros urbanos.

Esperava que o governador fosse mais enérgico. Que dissesse, batendo na mesa, que os gaúchos devem ficar em casa. Leite lembrou que os prefeitos têm autoridade legal e competência para decidir. Correto. Mas senti nas palavras do governador um recuo, uma tentativa de evitar um desgaste político que não deveria temer. Escreve aqui quem, menos de uma semana atrás, elogiou a atuação de Eduardo Leite na crise. Continuo reconhecendo o mérito de várias iniciativas do Piratini mas, nesse ponto, o tropeço é grave.

Não duvido das boas intenções do governador. Estar na posição dele é difícil, porque exige administrar pressões legítimas e antagônicas. Mas, agora, seria melhor ouvir os médicos. Não há evidência científica que justifique uma postura mais branda, nem dos prefeitos e nem do governador.

Leite disse também, na entrevista, que não hesitará se medidas mais enérgicas forem necessárias. Acredito nele. Pena que, talvez, seja tarde demais para poupar vidas que nem se imaginam em risco agora, mas que estão.

TULIO MILMAN

segunda-feira, 30 de março de 2020



30 DE MARÇO DE 2020
DAVID COIMBRA

Eles soltos e nós presos

Minha mãe está como eu, você e o planeta inteiro: está perplexa com tudo isso que vem acontecendo. Ontem, ela descobriu que a Justiça gaúcha libertou 3,4 mil presos e me ligou:

- David, eles estão soltando os presos e prendendo a gente.

Fiquei mudo ao telefone. Era uma lógica irretorquível. Depois, comecei a imaginar esses presos soltos. Ou, melhor, esses ex-presos. Eles saíram da cadeia porque a Justiça temia que fossem contaminados pelo coronavírus. Faz sentido. Sabemos bem que os apenados se amontoam nas celas no Brasil. Se um contrair uma doença altamente contagiosa, como a covid-19, todos contraem. Assim, eles ganharam a liberdade para não adoecer. Com o que, suponho que irão para suas casas e permanecerão em severo confinamento durante o tempo que as autoridades determinarem.

É isso? Tomara que sim.

Se não for isso, se eles retomarem suas atividades, assaltando pessoas, por exemplo, colocarão a eles próprios e à comunidade em risco. Afinal, um bandido, quando assalta, muitas vezes entra em contato próximo com a vítima, quase íntimo. É bastante comum o assaltado se surpreender com a abordagem do assaltante e vacilar no cumprimento das ordens. O assaltante, desta forma, em geral dá uma tapona no lado da orelha do assaltado, como advertência. Então, questiono: essa mão, que desferiu o tapa, foi higienizada? Como poderemos ter certeza de que o nosso bandido não está com corona nas mãos?

Pior é o sequestro relâmpago, porque, nessa modalidade, a vítima e os bandidos rodam às vezes horas pela cidade, a fim de sacar dinheiro de caixas eletrônicos, abastecer o carro e tudo mais. Outro dia, vi um filme com a nossa amada Marina Ruy Barbosa com o título, justamente, de Sequestro Relâmpago. É baseado na história real de uma moça que foi sequestrada em São Paulo. No filme, Marininha passa a noite com os dois bandidos e chega até a beber cerveja com eles. Se um dos três tivesse corona, passaria para os outros. Ou seja: ser sequestrado, ainda que "relampagamente", não é seguro.

Será que a Justiça pensou nessas inquietantes questões? Na hora de soltar um preso, o juiz deveria fazer algumas advertências rigorosas:

- Se o senhor for assaltar alguém, por favor, mantenha-se a dois metros de distância, que é o que recomendam as autoridades médicas. - Se for apenas furtar, faça-o de luvas, para não contaminar as superfícies em que tocar, como, por exemplo, a gaveta ou o cofre em que está guardado o dinheiro.

- Outra coisa. Muito importante! Se tiver de encostar o cano da arma na vítima, por favor, limpe antes o revólver com álcool 70 graus.

- Finalmente, não deixe a vítima gritar. Gritos podem expelir gotículas que colocariam sua saúde em risco. Espero que a Justiça tenha tomado essas precauções. Tudo pela saúde pública.

DAVID COIMBRA

30 DE MARÇO DE 2020
ARTIGOS

O ESTADO PROTEGE VOCÊ.VOCÊ PROTEGE A TODOS

Completamos um mês desde o primeiro caso do novo coronavírus no Brasil. De lá pra cá, a multiplicação dos números expressa a alta velocidade de propagação da covid-19, doença que surpreendeu a humanidade como um de seus maiores desafios. Por aqui, só não temos ainda o que está ocorrendo na Europa e na Ásia porque agimos rápido e com firmeza.

Desde janeiro, dois meses antes de a Organização Mundial de Saúde declarar pandemia, já trabalhávamos no plano de contingência. Preparados, pudemos ir adotando gradativamente as medidas técnicas de restrição à circulação de pessoas. Em todo o mundo, profissionais de saúde recomendam, e os dados atestam, que o isolamento social é a melhor arma contra a propagação da covid-19.

Na Itália, onde houve resistência às ações restritivas, as mortes já passam de 10 mil. No RS, as medidas, até aqui, puxam nossa evolução do contágio para abaixo do quadro italiano, mas ainda enfrentamos cenário agressivo semelhante ao de França, EUA e Alemanha. Temos de seguir achatando a curva, de forma que nosso sistema de saúde, no qual ampliamos em 22% o número de UTIs, possa absorver a demanda.

O impacto na economia será forte. Mas não há outro caminho que não seja o de pensar, primeiro, na preservação das vidas. É hora de o Estado reafirmar sua competência de garantidor das condições para a população enfrentar as dificuldades. Nosso governo já suspendeu cortes por atrasos nas contas de energia e água, prorrogou dívidas de crédito rural e imobiliário no Banrisul e ampliou recursos nos fundos municipais para micro e pequenas empresas.

Mesmo decretando calamidade pública, listamos os serviços que precisam seguir abertos. O essencial de nosso Estado não parou, mas todo o resto precisa parar enquanto buscamos a segurança científica para iniciar o relaxamento da quarentena. Ainda não é a hora. Até lá, não há melhor forma de homenagear os profissionais - garis, rodoviários, trabalhadores de supermercados, bancos, farmácias, postos de combustível, agentes da saúde e da segurança pública -, que seguem servindo à sociedade. Eles estão na rua para sua proteção. Pela proteção de todos, fique em casa.

DELEGADO RANOLFO VIEIRA JÚNIOR


30 DE MARÇO DE 2020

RBS BRASÍLIA

Ignore o presidente

Quando o presidente da República vira uma ameaça à saúde do cidadão, a melhor saída é ignorá-lo. Por mais que custe aos seguidores mais fiéis reconhecer que Jair Bolsonaro erra na condução da crise do coronavírus, é importante baixar a guarda e ouvir as orientações do Ministério da Saúde. Governadores e prefeitos já estão fazendo isso. E a Justiça vem derrubando, em série, as determinações do presidente.

Em reunião com Bolsonaro, o ministro Luiz Henrique Mandetta perguntou se alguém está preparado para ver caminhões do Exército transportando caixões. Você está? Para evitar um horror maior, técnicos da saúde construíram um plano de transição com a manutenção do isolamento social e apresentaram um cronograma aos Estados, que prevê escolas fechadas pelo menos até o final de maio.

Ontem, no entanto, Bolsonaro foi para Ceilândia, Sobradinho e Taguatinga, três grandes centros na periferia de Brasília, conversar com ambulantes, promovendo aglomeração. Ele desafia as orientações de sua própria equipe, coloca em risco a saúde das pessoas e age como um populista tresloucado.

É óbvio que esses trabalhadores precisam do apoio do Estado para passar por essa crise. Na verdade, até chegar o coronavírus, o alto número de autônomos e informais jamais foi motivo de preocupação do governo Bolsonaro. Não havia nenhuma política econômica específica para eles. Mas, agora, tudo mudou. O receituário do ministro Paulo Guedes (Economia) foi para o lixo e um novo plano econômico precisa ser desenhado, já visando o pós-coronavírus. Nesse meio tempo, valem as orientações do Ministério da Saúde.

Domingão da aglomeração

Depois de um desnecessário tour por Ceilândia, Sobradinho e Taguatinga, contrariando recomendações do Ministério da Saúde, Jair Bolsonaro conversou com apoiadores e com a imprensa em frente ao Palácio da Alvorada. Em meio aos populares, estava o ex-deputado Mauro Pereira (MDB) (camiseta branca) que, aos 61 anos, integra o grupo de risco. Questionado pela coluna, Pereira afirmou que estava ali para apoiar o presidente. Deputado, ele também apoiou até o fim o ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o ex-presidente da República, Michel Temer.


Para ficar em casa


O Ministério da Saúde deve anunciar amanhã uma grande estratégia de telemedicina para que as pessoas consultem sem sair de casa. Isso reforça a recomendação do ministro Mandetta para que as pessoas que puderem, fiquem em casa. Em especial os grupos de risco. A política será nacional, baseada em inteligência artificial e teleconsulta.

CAROLINA BAHIA

30 DE MARÇO DE 2020
POLÍTICA +

Governo oficial e governo paralelo

Pelo que se viu no fim de semana, o Brasil tem dois governos atuando em paralelo. Um é o do presidente Jair Bolsonaro e dos filhos, que subestimam o coronavírus e vendem a ideia de que não passa de uma gripezinha que só ameaça idosos e pessoas que já têm problemas de saúde. O outro é chefiado pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que dá as cartas nas ações de combate ao coronavírus com base em informações científicas.

A conversa entre esses dois governos é truncada. No sábado, Mandetta reafirmou a necessidade de isolamento social, enquanto o sistema de saúde prepara a infraestrutura para enfrentar o aumento da demanda. No domingo, o presidente resolveu desafiar a orientação do seu ministro e foi circular no meio do povo em Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, repetindo o discurso de que é preciso retomar a atividade econômica porque, do contrário, a fome irá matar mais do que o coronavírus.

No governo de Bolsonaro & Filhos, só há certezas e politização do vírus. Os governadores, como João Doria, de São Paulo, estariam exagerando até no número de mortos por coronavírus - e isso que o número de óbitos no Brasil ainda é relativamente baixo e há suspeita de que esteja desatualizado, porque muitos morrem sem ter o resultado do teste. No governo de Mandetta e dos técnicos, com o qual o vice-presidente Hamilton Mourão se mostra mais alinhado, as dúvidas são as mesmas que afligem os países desenvolvidos. As providências, também. E a proposta é um plano de ação conjunta com os governadores, que coloque a saúde em primeiro lugar, sem descuidar da economia.

Bolsonaro, os filhos e seu exército de seguidores fanáticos tratam o coronavírus como uma pandemia qualquer e não cansam de repetir que no Brasil morrem mais pessoas de dengue, H1N1 e acidentes de trânsito. Mandetta, os governadores e a maioria absoluta dos prefeitos têm dúvidas. Não sabem como será a trajetória do vírus no Brasil e se baseiam em modelos internacionais para tentar evitar o colapso no sistema de saúde. Recomendam o isolamento social para evitar que a curva suba rápido demais. Sabem que se os infectados pelo coronavírus ocuparem todos os leitos de UTI, pacientes que sofrem de outras doenças poderão morrer por falta de atendimento adequado.

Apesar das divergências de abordagem, Mandetta segue ministro, orientando a compra de equipamentos, o aumento dos leitos hospitalares e a distribuição de vacinas para a gripe. Na prática, Bolsonaro virou um presidente decorativo.

ROSANE DE OLIVEIRA


30 DE MARÇO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO

Se não agora, quando?

Venho acumulando provisões para enfrentar algum tipo de distanciamento social compulsório há pelo menos 50 anos. Os livros nunca lidos, os filmes e séries para ver antes de morrer (não literalmente, por favor), os idiomas para aperfeiçoar, tudo isso estava prontinho, em uma gaveta mental, aguardando que a oportunidade de isolamento obrigatório se impusesse. Então. Como não estou presa, exilada ou escondida em um bunker subterrâneo esperando a poeira nuclear baixar, posso compartilhar com vocês alguns dos meus passatempos domésticos durante esta quarentena. A eles.

Séries - Quem costumava dizer que precisaria de cinco vidas para assistir a todas as séries que os amigos recomendam está diante da oportunidade ideal. Se você ainda não assistiu a Família Soprano (HBO), Breaking Bad (Netflix), Mad Men (Netflix) ou The Wire (HBO), a hora é agora. Entre as novidades, estou investindo em The Plot Against America (HBO), adaptação do romance de Philip Roth, e na segunda temporada de My Brilliant Friend (HBO), baseada em Elena Ferrante. Vou dar uma chance também para Freud (Netflix). Parece uma boa hora para colocar nossas neuroses cotidianas em perspectiva.

Filmes - Se você, como eu, costuma ter alguma dificuldade para achar filmes interessantes nos serviços de streaming tradicionais, o Mubi (mubi.com) é uma boa opção. Com filmes antigos de grandes diretores e títulos recentes de várias partes do mundo, o catálogo é pequeno (entram e saem filmes todos os dias), mas cumpridor. Como outras plataformas, o Mubi está com uma promoção barbadinha: R$ 10 por três meses. Para quem curte documentários, a dica é aproveitar a mostra online do festival É Tudo Verdade.

Aulas - Muitas pessoas estão tendo aulas online pela primeira vez, mas o mundo da educação a distância é um maravilhoso universo em expansão. De palestras do TED (ted.com) a cursos abertos de Yale (oyc.yale.edu), as opções são infinitas. Na plataforma gratuita EdX (edx.org), estão à disposição mais de 2 mil cursos online em vários idiomas, inclusive português.

Livros - Aqui vale a regra do "se não agora, quando?". Tire a poeira daquele Em Busca do Tempo Perdido guardado na estante, procure seu Guerra e Paz, atire-se em Grande Sertão: Veredas antes que vire filme (uma versão com roteiro de Jorge Furtado está em produção). Muitas livrarias estão com serviços de telentrega. Meu clássico vale-quanto-pesa do momento é O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. (Que livro, senhores. Incluam na lista dos clássicos obrigatórios, com ou sem quarentena.) 

As novidades na minha cabeceira esta semana são Metrópole à Beira-Mar, de Ruy Castro, que curiosamente começa narrando os efeitos da gripe de 1918 no Brasil, e Apropos of Nothing, de Woody Allen, que acaba de ser lançado nos EUA e já está disponível na Amazon. Além de bater o recorde mundial de tiradas divertidas por página, Woody Allen pode ter inventado um novo gênero literário: o "audiobook mental". O tipo de livro que não se consegue ler sem que a voz e a entonação característica do autor/personagem façam parte da história.

CLÁUDIA LAITANO

sábado, 28 de março de 2020



28 DE MARÇO DE 2020
LIA LUFT

O bom combate

No exílio voluntário do Bosque, a vida seria bucólica e poética se não fossem as horrendas notícias do mundo. Estados Unidos, o novo centro da doença, Nova York irreconhecível, com médicos e enfermeiras já usando aventais de sacos de lixo.

Nós aqui neste rabinho do mundo que é o RS (no senso geográfico...) parece que – talvez – podemos escapar da tragédia apocalíptica de outros lugares do mundo.

Mas ainda não temos certeza. Desta vez quem comanda é o vírus, que pegou despreparado o mundo inteiro. Há quem reclame que dou notícias negativas. Desculpem: inimigo ignorado ou adoçado vai me derrubar bem mais depressa.

Sim, sou ficcionista, poeta, divago e sonho, mas sou também prática e com olhos bem abertos: quero conhecer o perigo, avaliar a ameaça. Pois, se afinal for menor do que se pensava, melhor pra mim, pra nós.

Frases doces e teatrinho alegre podem amenizar na hora, mas servem para acalmar criancinhas. Os adultos precisam saber para proteger. Gritinhos, lágrimas, desmaios pouco adiantam; raiva, xingamentos de venda nos olhos, pior ainda.

Somos adultos enfrentando algo perigoso, dramático e real, nossa arma é prudência, calma, cuidados. Xingar o fato de que, sim, temos de ficar em casa, é negativo e tolo.

Reclamar que então não teremos comida nem remédio, é infantiloide: serviços essenciais funcionam.

Aí reclamam que esses profissionais se arriscam: sim, senhores. Como profissionais da saúde.

Talvez espernear menos ajude a ter os necessários equilíbrio e sensatez para superar essa pandemia que, sinto muito, não é uma armação internacional diabólica nem uma gripezinha.

Se estamos numa guerra, vamos lutar com inteligência e bravura. Não é hora de birra, burrice, negação.  Aqui entre árvores e paz, vizinhos amigos e sossego, também quero voltar pra minha casa, família, e menos preocupação.

Antes que a noite chegue é bom acender luzes de informação, sensatez, coragem e calma.  Aí quem sabe, ela chegue mansa e cuidadosa.

LYA LUFT

28 DE MARÇO DE 2020
MARTHA MEDEIROS

Enfim sós

Ela mora sozinha há muitos anos. Gosta, pois leva a vida do jeito que quer, não há ninguém em volta fiscalizando suas manias. Mas sente uma ponta de inveja de lares ocupados por muita gente, famílias numerosas. Preferiria ser mais requisitada, já que são longos os seus momentos sem companhia. Já a ouvi reclamar de passar um dia inteiro sem escutar a própria voz. Até que veio o coronavírus e obrigou o isolamento de todos. Deixou de ser uma escolha, e sim um ato compulsório. E, para minha surpresa, ela não reclama mais, está adorando seus dias de leitura, introspecção e silêncio. Mas se sua rotina já era desse jeito, o que mudou?

É que agora não é só ela que está em casa, mas toda a cidade. Ela já não é diferente da maioria de seus amigos. A solidão deixou de ser um problema apenas seu.

É um assunto que sempre me atraiu. Acredito que ter uma relação cordial com a solidão é a saída para evitar perturbações mentais. Quem encara a solidão como uma terrível ameaça acaba comprometendo suas experiências afetivas. Os vínculos se tornam asfixiantes em vez de naturais. As relações sociais tornam-se mais obrigatórias do que espontâneas. É difícil aceitar que as pessoas chegam, ficam e um dia vão embora de nossas vidas. Essa dinâmica inevitável nos obriga a passar por momentos de resguardo eventual ou prolongado, o que conduz a um encontro profundo com a gente mesmo. Para alguns, é assustador.

Não sou nenhuma ermitã e considero que ter amigos é sagrado. Lamento pelos que se encarceram numa existência sem vínculos - essa, sim, uma solidão corrosiva. Bem diferente de quem pode se dar ao luxo de passar temporadas sem contato, pois sabe que não existe distância entre os que preservam laços vitalícios.

Muitas pessoas moram sós. Quando a pandemia passar, voltarão a caminhar pelas ruas, ir a bares, ao cinema, encontrarão pessoas e continuarão sós, e não há vergonha nenhuma nisso. Sei que conviver é fundamental, um hábito que até ajuda a imunizar: ficamos mais saudáveis ao sermos tocados, abraçados, beijados. Mas não precisamos ter nossa vida testemunhada 24 horas por dia.

Sozinhos, agimos como anjos. Não mentimos, não julgamos os outros, não agredimos ninguém. "Sozinha não há céu que me rejeite" - verso de um poema que escrevi 25 anos atrás, quando me parecia interessante esse benefício da solidão: impedir que fôssemos uns malas. Hoje se mente, se julga e se agride pelo Twitter, pelo Facebook. Meu verso caducou. Então aproveitemos o cativeiro para valorizar as demais vantagens da solidão: autoconhecimento, paz de espírito, concentração, relaxamento. E, se conseguirmos ignorar o celular (como há 25 anos, quando ele não existia), a vantagem sublime de não sermos atazanados e de não atazanar ninguém.

MARTHA MEDEIROS


28 DE MARÇO DE 2020
CARPINEJAR

Há outros pássaros cantando na janela

Para conservar a esperança, temos que defender os ouvidos, não somente escutar os grasnidos de urubus e corvos. Há outros pássaros cantando lá fora e dentro de nossa memória.

Precisamos revezar a audição com o curió, o canário, o sabiá, o pardal, o rouxinol, o mateiro, o pintassilgo pelas janelas de nossa alma. Todo amigo é uma ave cantando diferente.

Que usemos o tempo sozinhos para melhorarmos as nossas relações, corrigirmos as omissões e os lapsos pelo excesso de trabalho, dedicarmos com mais afinco à educação de nossas crianças, revisando os seus desenhos e jogando juntos algum tabuleiro da nossa infância.

Como disse padre Fábio de Melo, não estamos isolados, mas protegidos.

A proteção é ninho aquecido de afeto, uma chance de reabastecimento emocional para retornarmos à labuta mais convictos de nossas aspirações. Cuidar dos ouvidos é evitar o bombardeio pessimista da atualidade. Não ser alienado, mas alternar os fatos tristes com ações edificantes presentes no nosso cotidiano.

Não permanecer exclusivamente no celular assistindo e partilhando vídeos apocalípticos, soma de infectados e mortos, numa contagem regressiva até chegar a um familiar ou a um conhecido. Que retiremos o pânico da pandemia. Não há como ser feliz sob ameaça constante.

O jeito de apequenar o medo é procurar interagir com as melodias caras de nossa vida: a voz dos pais, dos filhos, da esposa, dos amigos. Fazer perguntas de como eles nos enxergam, se estamos sendo presentes ou não. Ouça como os demais o percebem, é importante o ponto de vista externo para construir a nossa imagem.

Aproveite a quarentena para autocrítica, para o trabalho permanente de se aperfeiçoar, de ser gentil sem segundas intenções. Gargalhe com bobagens, faça mais piadas e memes com aqueles que estão próximos de você.

Regue as plantas e reorganize as roupas no armário, para voltar a vestir as peças que andam esquecidas pela pressa.

Como não há como ir ao salão, por que não brincar de manicure e cabeleireiro com o pessoal de casa?

Ler um livro para soltar a âncora da realidade imediata e viajar para distintas épocas e contextos.

Improvisar um karaokê com a sua playlist preferida. Cozinhar receitas da avó, para recuperar sabores perdidos. Não se sentir culpado por se divertir. Especialmente isso. Não sofrer de modo desnecessário é respeitar quem está realmente sofrendo.

Ocupar a imaginação positivamente, combatendo premonições assustadoras é o remédio para a saúde mental. Não se prender ao "se", abolir o "se" do vocabulário, não penar por antecipação.

Palavras amáveis são fáceis e ficam para sempre. O canto dos pássaros é o nosso despertador interior.

CARPINEJAR


28 DE MARÇO DE 2020
LEANDRO KARNAL

O VENTRE DO VERBO

Domingo da anunciação: faltam nove meses para o Natal. Para muitos cristãos, hoje é a data em que o Arcanjo Gabriel apareceu a uma jovem em Nazaré e trouxe uma ideia revolucionária: ela seria mãe por força do Espírito Santo. A adolescente terminaria o dia carregando o aguardado Messias prometido pelas escrituras.

Pela tradição, era fim da tarde, por volta das 18h. Os textos das escrituras apresentam detalhes distintos. O Evangelho de Mateus apenas se ocupa das dúvidas de José. Sua noiva engravidara. Como proceder? Os avisos dos anjos se voltam a ele e suas angústias. José é orientado dormindo.

Sonha que tudo estava de acordo com os planos de Deus. O Jesus do Evangelho de Marcos, o mais antigo de todos, já surge com 30 anos. Nada sabemos da infância por ele. O último Evangelho na ordem e no tempo, João, começa narrando a origem de tudo em prólogo teológico. Lá, o Verbo sempre existiu e se fez carne, referência indireta ao dia de hoje. Porém, ao entrar na narrativa da vida do filho de Maria, já o encontramos como ser poderoso. 

Lucas, meu preferido, dedica-se a detalhes sublimes. Sem o terceiro evangelista, a narrativa da infância e do Natal seria empobrecida. Lucas, padroeiro de médicos e de pintores, fala da saudação do Arcanjo em frase repetida milhares de vezes entre católicos: Ave, cheia de graça. Ele conta que a jovem conceberá um menino. Mais: o enviado informa que a prima Isabel, que fora chamada de estéril, está grávida de seis meses. A novidade familiar vem por mensageiro celeste.

A Maria de Lucas é quase silenciosa, ainda que disponível. Seu espanto é mais técnico do que teológico: como ela poderá trazer ao mundo o Emanuel se é virgem? A parte central é o sim: livre-arbítrio de uma jovem diante do mistério que a excede. São Jerônimo traduz o sim por fiat, latim para "faça-se". O que antecede a anuência da jovem judia é valorizado como humildade pelos cristãos e submissão pelos islâmicos: "Eis aqui a serva do Senhor". Para quem não sabe, o texto sagrado muçulmano descreve Maria e a anunciação também. No Corão, ela está associada a Zacarias, pai do profeta João Batista, que serve no Templo de Jerusalém. 

Ela é piedosa e se prostra para o Todo-Poderoso. A tradição oral árabe diz que todos que nascem são tocados por Satanás e choram, com exceção de Jesus, o filho de Maria. Em todo o livro sagrado islâmico, Maria é a única mulher que recebe nome próprio. Outras mulheres recebem atenção, porém ganham títulos e não nomes próprios. A tradição diz que o Profeta purificou a Caaba de todos os falsos ídolos que ali eram adorados, mas ordenou que se conservassem as imagens de Jesus e de Maria no local sagrado. O último concílio católico, o Vaticano II, elogia o respeito dos islâmicos a Maria.

Judia religiosa, cristã exemplar e islâmica submetida de coração aos desígnios do Altíssimo: eis o poder da figura de Maria. Anterior a polarizações teológicas, ela é exemplo de atitude para muita gente. Seu comportamento é exemplar e modelo de fé. Assim como Abraão aceita a promessa e sai da casa do pai sem titubear, Maria não entende, entretanto se entrega a um plano que muda toda a sua vida. A fé é entrega e aceitação, ainda que livre. Abraão vai, Maria diz sim, ambos geram fatos importantes para o futuro. Abraão é pai de três religiões. Maria é mãe de Jesus nas duas maiores fés do mundo. Ambos recebem a mensagem e a aceitam.

Abraão ouve o próprio Deus, Maria recebe um mensageiro (sentido grego da palavra "anjo"). Em hebraico, a solenidade de Deus faz Abraão mudar de vida sem sequer uma palavra, como mudo ficará quando o Todo-Poderoso exigir a vida do seu filho Isaac. Em grego, um mensageiro abaixo da grandiosidade de Deus permite que a jovem ainda faça uma pergunta antes do sim. No futuro, o silencioso e obediente Abraão negociará longamente com o Criador sobre as cidades de Sodoma e Gomorra. A autora da única pergunta, Maria, nunca mais demonstrará dúvida técnica. Abraão aprendeu a dialogar e Maria aceitou a entrega total e as dores que Simeão anunciou que atravessariam seu coração.

Nossa Senhora torna-se a Maria do silêncio, sem dúvida, aquela que guarda e medita as palavras "no seu coração", porém, cresce como a Maria da ação. Soube, pelo anjo, da prima grávida e idosa Corre para auxiliá-la. É também ela que fala a Jesus quando o reencontra no Templo, aos 12 anos.

Considerando a família patriarcal da Palestina do século 1º, tomar a iniciativa na frente do pai não foi pouco para uma jovem mulher. É ela que pede a interferência no primeiro milagre, as bodas de Caná. É ela que acompanha o filho até a cruz, quando os homens, com exceção do quase adolescente João, tinham debandado com medo. É ela que está com os discípulos na festa de Pentecostes, nascimento formal da Igreja. Mulher do silêncio, do sim, da meditação; porém, sempre a mulher da ação corajosa.

A face feminina da salvação é fascinante. José, tão importante no início de Mateus, submerge na escuridão narrativa seguinte. Maria cresce até os Atos dos Apóstolos e, metaforicamente, no próprio Apocalipse, 27º e último livro do Novo Testamento. É a mulher vestida de sol, ostentando uma coroa de 12 estrelas e com a lua debaixo dos seus pés. A tradição católica identifica a mulher do Apocalipse com Maria. A humilde serva do Senhor do Evangelho de Lucas vira a gloriosa dama coroada do livro da Revelação. O feminino de Maria será sempre um terno mistério para as pessoas de fé. Como ela, é preciso ter esperança.

LEANDRO KARNAL

28 DE MARÇO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

AS PESTES

Há 2.450 anos, Atenas viveu uma peste horrenda, no segundo ano da guerra com Esparta (431-404 a.C.). Os atenienses estavam na condição oposta de nós brasileiros em 2020, pois tinha em seu líder, Péricles, um aristocrata muito culto, com espírito científico e devoto da causa democrática. A epidemia foi descrita por Tucídides no segundo livro (47-54) de A Guerra do Peloponeso. O próprio historiador sofreu com a peste e a examina com olhos e vocabulários de médico - pois a medicina, como a história, trata de perceber os sintomas para identificar as causas. A peste ensina a compreender o corpo, o mundo e a sociedade.

Naquela peste, desoladoramente, morreram os altruístas que foram prestar assistência e solidariedade, então médicos, ora todos os profissionais de saúde. A peste ceifou também a vida de Péricles, celebrado por Tucídides nos capítulos anteriores (35-46), na Oração Fúnebre, propaganda do esplendor moral da democracia ateniense. O autor caprichou no contraste entre apogeu e queda, pois, com a peste, debilitou-se Atenas e preparou-se o colapso da cidade luz do mundo antigo, ao final do século V a.C., um dos principais pontos de mutação da história. A cidade e o mundo mudam depois da peste.

A descrição de Tucídides é assombrosa: "Corpos moribun­dos se amontoavam e pessoas semimortas rolavam nas ruas e perto de todas as fontes, em ânsia por água. Os templos nos quais se haviam alojado estavam repletos de cadáveres dos que ali morriam; a desgraça que os atingia era tão avassaladora que as pessoas, não sabendo o que sucederia, tornavam-se indiferentes (a quaisquer leis), sagradas ou profanas. (...) Alguns aproveitavam as piras dos outros (...), jogavam nelas seus próprios mortos e lhes ateavam fogo; outros lançavam os cadáveres que carregavam em alguma pira já acesa e partiam" (II, 52). 

A seguir, analisa a dimensão cultural e política: "A peste introduziu pela primeira vez em toda a pólis a plena anomia" (II, 53). A palavra anomia, aqui em seu primeiro uso, diz do abandono de todas as leis e convenções, sociais ou religiosas, e da entrega à urgência vital: "Todos resolveram gozar rapidamente todos os prazeres e deleites, considerando os corpos e as riquezas como efêmeras". A peste revelava o poder fundamental de Eros, sufocado pelas convenções diurnas, soberano quando assomam a noite e a pulsão urgente dos desejos.

Freud complementou essa espantosa visão de Eros em meio à peste com a percepção da força de Thânatos: a morte, ou, como se lê em Mal-estar na Cultura (1929/30), pulsão de morte - o desejo de matar. Compreende-se assim o apelo mórbido de corpos infectados que querem matar, dos necrogovernos e da necropolítica. Não sabem e não conseguem amar, agregar, unir. Com discurso economicista, promovem o desdém à vida e temem, covardes, as mudanças econômicas necessárias e urgentes. Agrava nosso quadro o desamor ao conhecimento científico e à cultura da solidariedade. Mas nós queremos sobreviver, e será contra as duas pestes e com amor, ciência, cultura, resistência e uma política pela vida.

FRANCISCO MARSHALL


28 DE MARÇO DE 2020
DRAUZIO VARELLA

LAVAI AS MÃOS!

De todas as recomendações maternas, a de lavar as mãos talvez seja a mais desobedecida. Parece pirraça. Na agitação de hoje, lavar as mãos antes de pegar nos alimentos virou luxo, esquisitice de gente cismada, mania de hipocondríaco.

É só entrar numa lanchonete da cidade, botequim de bairro ou restaurante caro e contar quantos tomam tal precaução higiênica antes de atacar o hambúrguer, a batata frita ou o pãozinho com patê. Na hora das refeições, a mão suja é universal, irmana trabalhadores braçais, moças bonitas e senhores de gravata.

No entanto, se todos lavassem as mãos com água e sabão (qualquer sabão) antes de manipular os alimentos, muitas doenças seriam evitadas. Perderíamos o medo de comer empadinha em padaria, pastel de feira, espetinho de camarão na praia e os tradicionais salgadinhos expostos em todos os bares brasileiros, que a religiosidade do povo houve por bem batizar de "Jesus me chama".

Nada ilustra melhor a eficiência das mãos na disseminação de infecções do que as gripes e resfriados. A pessoa chega na festa e avisa: "Não me beijem que estou gripada" - e sai apertando a mão de todos os convidados. Seria muito melhor que desse o rosto a beijar; na face, o vírus não está. Em compensação, as mãos estão repletas dele: quem fica gripado assoa e coça o nariz o tempo todo. Como consequência, os incautos que apertaram a mão infestada, ao coçar o nariz ou os olhos semearão as partículas virais diretamente nas mucosas.

É possível que sejamos tão renitentes em lavar as mãos porque vírus, fungos e bactérias são seres tão minúsculos, que, no fundo, não acreditamos na existência deles. Fica um pouco chato, entretanto, manter essa descrença mais de 300 anos depois da descoberta do microscópio.

Quando os ingleses aprenderam a acoplar lentes de aumento e construir microscópios rudimentares, ficaram interessados em enxergar o que era pouco visível: a cabeça dos mosquitos, a boca das abelhas ou os buracos existentes num pedaço de cortiça (de onde surgiu a palavra célula).

Em 1683, na Holanda, Antony van Leeuwenhoek, um dono de armarinho que se distraía montando lentes quando não havia fregueses, focalizou o microscópio para investigar o que nenhum cientista havia procurado. Em vez de usá-lo para magnificar pequenos seres conhecidos, Leeuwenhoek decidiu explorar o invisível: o que haveria no interior de uma gota de chuva?

O que seus olhos viram deixaram-no tão maravilhado, que escreveu uma carta para a Sociedade Real de Londres, a mais importante associação científica daquele tempo: "No ano de 1675, descobri pequenas criaturas na água da chuva colhida numa tina nova pintada de azul por dentro? esses pequenos animais, a meu ver, eram mais de 10 mil vezes menores do que a pulga d?água que se pode enxergar a olho nu?".

Essa demonstração cabal de que em ciência fazer a pergunta certa, às vezes, é mais importante do que buscar respostas, abriu as portas para o mundo das bactérias.

Duzentos anos depois de Antony van Leeuwenhoek, um cientista francês que não era médico, Louis Pasteur, visitou necrotérios para estudar por que tantas mulheres que davam à luz morriam de febre após o parto. Nas amostras de sangue e de secreções colhidas no útero dessas mulheres, identificou as pequenas criaturas descritas pelo holandês.

Uma noite, em 1879, numa reunião da Academia de Paris, um obstetra descartou com desprezo a hipótese de que a febre pós-parto fosse provocada por bactérias. Pasteur interrompeu: "A causa dessa doença são os médicos, que levam germes da paciente doente para a sadia".

Mais recentemente, a importância de esfregar as mãos com água e sabão foi bem caracterizada nas unidades de transplante de medula óssea. Nesse tipo de transplante, as defesas imunológicas ficam arrasadas por vários dias e o doente se torna vulnerável aos germes que o cercam.

Quando surgiram as primeiras unidades de transplante nos Estados Unidos, nos anos 80, para entrar no quarto do paciente era preciso colocar luva, gorro, máscara, avental e proteção para os pés. Além disso, de uma das paredes vinha um fluxo de ar contínuo que passava pela cama do doente e saía pela porta permanentemente aberta. Todos os que entravam no quarto eram proibidos de ficar entre a cama e essa parede, para impedir que a corrente de ar levasse os germes do visitante para o doente.

A experiência mostrou que tais medidas eram dispendiosas e descabidas. Hoje, nas unidades de transplante, pode-se chegar com a roupa da rua, mas é obrigatório lavar as mãos ao entrar e sair do quarto do transplantado, não importa o que o visitante tenha ido fazer lá dentro.

Uma medida tão simples como a lavagem das mãos tem grande importância em saúde pública. Por exemplo, se fosse possível convencer todos os que trabalham nos hospitais - principalmente médicos e enfermeiras - de que antes e depois de pegar numa pessoa doente as mãos precisam ser lavadas, estaria decretado o fim das infecções hospitalares. Se conseguíssemos ensinar as mães a tomarem o mesmo cuidado antes de tocar em qualquer coisa que vá à boca do bebê, talvez acabasse a mortalidade por diarreia infantil no país.

DRAUZIO VARELLA


28 DE MARÇO DE 2020
J.J. CAMARGO

A ESTRANHA IDEIA DE HEROÍSMO

Até os egoístas e os que não estão nem aí, se tivessem oportunidade e tempo de descobrir a euforia de ajudar, se revelariam. Alguns tolos, infelizmente, se consideram autossuficientes, mas são minoritários, além de incuráveis.

Estar exposto numa emergência e receber um paciente que teme estar com o coronavírus é conviver, mais do que com a ameaça do vírus, com um duplo medo do paciente: o de confirmar o diagnóstico e o de não ser aceito para tratamento, porque muitos são mesmo mandados para casa, diante de um quadro que o médico tem condições técnicas de reconhecer como leve ou moderado, sem vantagem de internação, mas que o paciente nunca entenderá assim, porque, ora, a doença é dele. É quando se descobre que, medo por medo, o do abandono é maior.

Sai paciente e entra paciente, o ritual se repete, confirmando que a maioria da população ainda não entendeu que, com sintomas leves de uma virose qualquer, correr para uma emergência, onde estão pessoas aglomeradas, algumas delas, de fato, doentes, é só aumentar o risco de realmente adoecer.

Por outro lado, quem envelheceu trabalhando como médico não consegue disfarçar uma chispa de orgulho ao ver aquela garotada que até a semana passada, pressionada pelo mercado claudicante e desvalorizada pelas políticas de saúde, incertas e depreciadoras, ainda estava insegura sobre seu futuro profissional; agora, colocada na linha de frente, descobriu a maravilha de ser médico e, não importa quanto seja falso, sentir-se mais forte do que o perigo.

O encanto e o deslumbramento de ajudar, definidos há muito como a mais primitiva expressão de civilidade, se revela, como nunca, em momentos de crise.

Os tipos que ao longo da história dedicaram suas vidas ao exercício da solidariedade marcaram suas trajetórias pela associação de generosidade e empatia, com aversão total a qualquer forma de popularidade ou ostentação.

A melhor prova da intensidade da energia que os impulsiona sempre foi o aumento da determinação quando foram colocados em situação de risco para si. Só a gratificação de fazer o bem é capaz de gerar força e coragem para manter alguém atuante e disponível quando mais fácil seria renunciar. Então, por ora, queremos apenas cuidar de quem realmente precisa, e do nosso jeito, discreto, compenetrado e silencioso. E, por favor, esqueçam os discursos de heroísmo, não somos heróis, somos profissionais, com avós, pais, filhos e netos, e precisamos, como todos, continuar vivos para cuidar deles nos intervalos do nosso trabalho.

E depois que tudo passar e o medo tiver escorrido, e o abraço ressuscitar, será recomendável que alguns tipos sigam usando máscaras, para esconder a cara da vergonha de terem depreciado esses abnegados capazes de resgatar todas as vidas possíveis, porque é só isso que sabemos fazer. E apesar de termos sido comparados ao sal ("branco, barato e existente em qualquer lugar"), vamos seguir adiante, sem bater boca com a dialética da retroescavadeira.

Só confiamos que os envolvidos não entendam este recado como predisposição ao esquecimento. Porque, podem crer, este arquivo é implacável.

P.S.: eu gostava da Mariana Kalil, nos gostávamos, muito. A inteligência debochada, o senso de humor, a espontaneidade de gostar de gente. A sensação de peso desses tempos difíceis só vai agravar com a falta da leveza do sorriso da Mariana.

J.J. CAMARGO