sexta-feira, 31 de janeiro de 2020



31 DE JANEIRO DE 2020
KELLY MATOS

Nós, feministas demais

Leitores de David Coimbra, penso eu, não assistem ao Big Brother. Como estou ocupando o espaço deste nobre colunista, eu explico. Sem problemas. Existe um programa televisivo em que seres humanos ficam confinados em uma casa e sem contato algum com o mundo externo. A cada semana, um participante é eliminado por decisão do público. Vence quem conseguir permanecer mais tempo por lá. No Brasil, a Rede Globo de Televisão comprou os direitos da atração e transmite, a cada verão, uma nova edição do reality. Goste-se ou não, a cota de patrocínio do programa custa em torno de R$ 42 milhões. Cada.

Comecei falando da atração porque a edição atual reacendeu um debate com repercussão nas redes (sempre elas) sociais acerca de homens e mulheres e o tal do feminismo. Reclamou, dia desses, um integrante da competição sobre as jovens da vigésima edição comandada por Tiago Leifert:

- Estão feministas demais.

Não é preciso uma leitura aprofundada sobre a sociedade para imaginar a reação de espectadores e não espectadores sobre um comentário desses. Mas quero falar, aqui como uma feminista, sobre o quanto incomoda o avanço desta discussão sobre direitos iguais. E não se preocupe, o intuito é realmente esse. A discussão deve e precisa incomodar.

Neste momento, meu amigo David Coimbra deve estar buscando o primeiro voo de Boston a Porto Alegre no computador, pensando em voltar de férias imediatamente. Penso eu que alguém deve ter compartilhado com ele o link de GaúchaZH, contando sobre o texto - Jesus amado! - feminista. Eu digo: calma, David. Meu texto por aqui é só hoje. E prometo que tomaremos um chope cremoso quando tu voltares. Eu pago.

Retornemos ao feminismo.

A necessidade de revisitarmos o debate sobre direitos das mulheres e o devido respeito por parte dos homens explode todos os dias em nossa cara. Tapar os olhos a essa realidade é muito triste e, na minha visão, configura, no mínimo, prevaricação. Milhares de mulheres seguem presas a relacionamentos abusivos, apanham dos maridos, são mortas em frente aos filhos por ex-companheiros e, pasmem, ainda assim sentem que a culpa é delas. Eu não quero aqui demonizar os homens. Não se trata disso. Sou casada e posso assegurar que tentamos, todos os dias, construir um relacionamento em que ambos sejam respeitosos em relação ao outro, a despeito de gênero. Os dois trabalham. As tarefas da casa são divididas. Os dois gostam de futebol.

Mas, querida leitora (leitor, você ainda está aí?), nem sempre os relacionamentos se construíram assim. Ouvi, ainda pequena, que precisava aprender a fazer café para o meu futuro marido e para receber visitas em casa. Agradeço todos os dias à evolução humana que permitiu cápsulas e uma máquina que substituiu, sem qualquer contestação, minha falta de talento. Quem frequenta minha casa ganha café e, se estiver disposto, um copinho de cachaça de banana, presente da minha sogra Nara, que soube que eu era apreciadora da bebida tipicamente brasileira.

Por essa construção histórica e estrutural, o machismo se tornou parte da nossa cultura, sem que a gente pudesse escolher fazer parte dele ou não. E aqui fala também uma mulher que diariamente tenta desconstruir pensamentos que reforçam o comportamento machista. Com diálogo e disposição para aprender. Aliás, não é exatamente culpa nossa pensar assim. Mas é nossa responsabilidade refletir e, a partir da reflexão, desconstruir esse pensamento. Só assim vamos parar de julgar a mulher que "não arranja marido", a que não quer ter filhos, a que prefere trabalhar do que cuidar de casa.

Nesta semana, foram centenas de comentários com xingamentos e ofensas publicáveis e impublicáveis a partir de reportagem em que uma mulher beijou, durante o júri, o homem que tentou matá-la com cinco tiros - ele foi condenado por isso. A jovem em questão se sentiu tão culpada por uma discussão do casal (ela tinha encontrado mensagens que sugeriam infidelidade) a ponto de entender que tudo bem ele disparar contra ela. Como se merecesse morrer. Afinal, que mulher não merece tomar um tiro, não é mesmo?

Quase ninguém entendeu. Sublinho o quase. Porque pessoas que trabalham com o tema "violência contra a mulher" entenderam. E decifraram parte das razões para o fato que, embora possa parecer "inusitado", é mais comum do que se pensa.

A promotora Andrea Machado, com quem conversei após o episódio, me explicou: "Elas tendem a desculpar o agressor ou assumem a responsabilidade, porque estão inseridas naquele círculo: agressão, perdão, namoro, agressão, perdão... Há casos graves, onde as vítimas chegaram a se opor a mim, pedir que o réu não fosse processado". A psicóloga Júlia Zamora, doutoranda na PUC, em entrevista ao repórter Marcel Hartmann, acrescentou: "Em atendimentos de mulheres que sofreram violência, é comum elas relatarem ter ouvido que não seriam ninguém se fossem divorciadas, ou que os filhos serão prejudicados". E, por isso, acabam reatando. Precisamos falar sobre isso.

O debate é urgente, grave e necessário. Caso contrário, continuaremos apanhando. Continuaremos sendo mortas. Sendo estupradas. Sendo desrespeitadas. Que a gente fale. Nós, homens e mulheres. As feministas. As não feministas. As feministas demais.

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 18/2 - KELLY MATOS | INTERINA

31 DE JANEIRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

PACIFICAÇÃONA CULTURA

A nomeação de Regina Duarte, atriz reconhecida e querida pelo público brasileiro por seu trabalho na televisão, no teatro e no cinema, é a oportunidade para o governo Jair Bolsonaro eliminar focos de tensão em ao menos uma área de sua administração. Empossada nos próximos dias como nova secretária especial da Cultura, Regina precisa retomar o apoio institucional a toda multiplicidade de manifestações da rica diversidade nacional seguindo critérios técnicos, sem interferências, direcionamentos, censuras ou exigências que não sigam o estrito cumprimento da legislação vigente.

Há muito o que fazer pela cultura brasileira. É preciso conceber uma política construtiva para as artes e para preservação do patrimônio histórico do país. Em primeiro lugar, acenar à pacificação com a classe artística, deixando de lado as polêmicas constantes e inúteis, mas que nos últimos meses acabaram dominando a atenção e tomando o espaço da discussão propositiva. Cultura gera desenvolvimento social e econômico, produz renda, contribui para o turismo e para a qualidade de vida no país. Ao lado do esporte, é arma poderosa para que jovens das periferias não sejam seduzidos pela criminalidade.

Até hoje não se sabe, por exemplo, qual é a política de incentivo para preservação e fomento dos museus no Brasil, no momento em que um número cada vez maior de nações confia a essas instituições o papel de serem guardiãs da manutenção da sua história, tornando-se um ímã para o turismo. Preparado para abrir as portas neste ano, o Grande Museu Egípcio, no Cairo, é um bom exemplo, contrapondo o descalabro que conduziu à tragédia do Museu Nacional, no Rio.

Em um ano e um mês do governo Jair Bolsonaro, a Secretaria da Cultura já teve três titulares, sendo o último, Roberto Alvim, demitido após o grotesco episódio do vídeo que gravou utilizando expressões do ministro da Propaganda do nazismo. Ainda há como recuperar o tempo perdido, mas para isso é preciso estabilidade à frente do cargo, o que significa manter- se longe de polêmicas como as relacionadas à famigerada guerra cultural, cria do autointitulado filósofo cuja última esquisitice, de ontem, é culpar o bilionário Bill Gates, fundador da Microsoft, pelo surgimento do novo coronavírus.

Anda não se sabe, por exemplo, se Regina terá autonomia para alterar parte da equipe que herdou, com nomes controversos na Fundação Palmares ou na Funarte. Mesmo que precise seguir a orientação conservadora de Bolsonaro, com diálogo e sem sectarismo, Regina Duarte poderá apaziguar os ânimos e compensar a sua falta de experiência como gestora. Como apregoava a música-tema de Malu Mulher (1979-1980), série com a atriz como protagonista, é hora de começar de novo na cultura.


31 DE JANEIRO DE 2020
POLÍCIA

TCC e diploma saíam por até R$ 40 mil

O foco da segunda fase da Operação Educatio é a rede de pessoas e empresas por trás de um esquema de venda de diplomas e de trabalhos de conclusão de cursos (TCCs), relacionados, principalmente, à área da saúde. O esquema, agora alvo de nova ofensiva policial, foi revelado em 2017, em reportagem de José Luís Costa, do Grupo de Investigação da RBS. A compra de um curso e de um TCC - ou seja, a pessoa não precisava frequentar aulas nem fazer o trabalho - poderia chegar a R$ 40 mil. ZH apurou que o chefe do esquema seria, mais uma vez, o advogado Faustino da Rosa Junior, investigado desde 2017.

Os negócios de Faustino, que se intitulava o maior empresário de Ensino Superior do país, foram tema da reportagem "O homem da faculdade de papel". À época, o GDI revelou suspeitas de irregularidades na oferta de cursos de pós-graduação pelo Grupo Educacional Facinepe. Em 2018, a Polícia Civil deflagrou a primeira fase da Educatio. Com a apreensão de documentos, localizou os TCCs e passou a rastrear o esquema. Com isso, a 1ª Delegacia de Combate à Corrupção (1ª Decor) identificou que pessoas ligadas ao Facinepe teriam se rearticulado usando novas empresas e até laranjas - pessoas que emprestam seus nomes para negócios.

Os 17 mandados de busca e apreensão cumpridos ontem visavam a buscar provas sobre a constituição dessas novas entidades ligadas à área educacional e assim, comprovar que Faustino segue atuando.

O esquema verificado tem três modalidades, conforme ZH apurou:

1) Cursos que são oferecidos sem estarem devidamente credenciados junto ao MEC;

2) A venda do curso permitindo que o aluno não frequente aulas e obtenha o diploma apenas com a entrega de um TCC;

3) E a possibilidade mais cara, que é um combo: o aluno não tem aulas nem faz o TCC, pagando para receber um trabalho pronto. Essa modalidade, conforme pessoas envolvidas, poderia custar até R$ 40 mil.

Contraponto

Os diplomas e TCCs ligados ao esquema se referem a cursos técnicos, pós-graduação ou especialização na área da saúde.

As buscas foram feitas em Porto Alegre, em empresas e nas residências de investigados. Um dos locais que foram alvo da polícia fica no mesmo prédio em que funcionava o Facinepe. O delegado Max Otto Ritter, titular da 1ª Decor, não revelou nomes de investigados, mas explicou que a rede alvo da apuração vem trocando de nome nos últimos anos para seguir atuando. Nesta fase da ofensiva, não foram procurados alunos que tenham se beneficiado do esquema a partir de pagamentos, ou seja, sabendo se tratar de fraude.

- A investigação mostra que há continuidade da prática fraudulenta e a análise das provas coletadas hoje (ontem) ajudará a corroborar isso e a identificar novos sócios e o uso de novas empresas - explica o delegado.

Além das ordens judiciais de busca, a operação também obteve o decreto de indisponibilidade de cerca de 100 imóveis, 17 veículos e valores. Não houve ordem para apreensão dos veículos.

ZH contatou a defesa de Faustino e não obteve retorno até ontem à noite.

ADRIANA IRION

31 DE JANEIRO DE 2020
+ ECONOMIA

Ingresso a R$ 80?

Prevista para este ano, avança a concessão do Parque Nacional dos Aparados da Serra, em Cambará do Sul. A consulta pública se encerrou no dia 28, mas ainda haverá reuniões com interessados no início de fevereiro. Conforme a advogada Cláudia Bonelli, sócia do escritório TozziniFreire, a proposta de edital é de ingresso com preço máximo de R$ 80. Na descrição dos investimentos obrigatórios de R$ 249 milhões, está prevista a instalação de skywalk (passarela com piso de vidro) e área de hospedagem - com bangalôs - perto da Trilha do Cotovelo.

- A intenção do ICMBio é ainda obter sugestões de especialistas, fazer revisão e melhorias nas minutas (proposta inicial) do edital e de contrato. Estão tentando tornar o processo o mais público possível.

Sobre o valor do ingresso, a advogada explica que é o "máximo dos máximos". O concessionário será obrigado a conceder os descontos previstos em lei (como meia entrada para estudante, idoso) e terá liberdade para cobrar menos. O edital lista atividades a explorar, de lanchonetes a publicidade, passando por hospedagem.

Cidade atenta com chineses

Todos os anos, comitivas de chineses costumam visitar as indústrias de fumo de Santa Cruz do Sul. Às vezes, esticam a viagem para outras regiões do Estado, como Soledade, em busca de pedras preciosas. Com o temor do coronavírus, a Secretária Municipal de Saúde de Santa Cruz do Sul acionou a vigilância epidemiológica com as indústrias da cidade. No ano passado, a atividade - que inclui cigarreira, beneficiadoras e fabricantes de equipamentos para o setor representou cerca de 60% da arrecadação da cidade.

Em nota publicada no site da prefeitura na terça-feira, a secretaria informou que, além do levantamento nas indústrias fumageiras, está consultando as agências de viagem do município. A estratégia de prevenção também inclui a distribuição de materiais com esclarecimentos sobre a doença. A coluna procurou o Sindicato Interestadual da Indústria do Tabaco (Sinditabaco), que preferiu não se manifestar.

MARTA SFREDO

31 DE JANEIRO DE 2020
EDUARDO BUENO

A terceira margem do rio

Faz um bom tempo, lá pelo final dos anos 1970, dei de cara, no sótão da casa de um amigo, com um mapa de Porto Alegre. Era aquela tradicional planta da cidade, editada pela Livraria do Globo, tão comum nas paredes de imobiliárias e repartições da Capital, séculos antes de o Google Maps delegá-las à lata de lixo da História. Mas o caso é que aquele mapa era de 1937. E o que mais me chamou a atenção - além dos bosques e capões de mata expandindo-se muito além da Zona Sul, entremeados por entre as colinas e baixadas do Mont?Serrat, da Bela Vista e bem... do bairro Floresta - foi a quantidade de veias azuis que se alastravam pelo mapa: eram córregos, riachos e arroios, uma espécie de sistema circulatório da cidade.

Um desses cursos d?água era meu velho conhecido. Nascia nos altos da Rua Pedro Ivo, ia serpenteando pela atual Silva Jardim, cruzava a 24 de Outubro na altura do número 1.600 e descia Bordini abaixo até formar um pequeno lago na confluência da Quintino com a Benjamin Constant. Ali, os carroceiros levavam seus cavalos para matar a sede. Cheguei a conhecer o laguinho. O dito riacho passava debaixo do estúdio de fotografia que meu irmão manteve por anos na Bordini e sob a garagem do prédio no qual digito agora estas mal traçadas linhas. Usei os verbos no passado, mas o fato é que o tal córrego está onde sempre esteve - embora desde os anos 1950, canalizado, soterrado, podre e fedorento. E depois da construção do tal "conduto Álvaro Chaves" apareça ainda menos - e já não "incomode" tanto seus vizinhos.

Como quase todas as cidades do Brasil - e do mundo -, Porto Alegre está onde está só por causa das águas que a cercam. No caso da capital dos gaúchos, não apenas o Lago Guaíba: os limites da sesmaria de Jerônimo de Ornelas eram o Rio dos Gravatás (Gravataí) ao Norte, o Rio dos Jacarés (Jacareí, hoje Arroio Dilúvio) ao Sul, Arroio Feijó a Leste e as próprias margens do Guaíba a Oeste. Já o Rio das Capivaras (Capivari) e os arroios da Cavalhada e do Salso delimitavam as duas outras sesmarias estabelecidas por volta de 1740 dentro dos atuais limites urbanos de Porto Alegre.

Não é preciso ser geógrafo nem hidrólogo para saber que todos esses cursos d?água estão hoje como meu velho riozinho: podres e fedorentos - e, se já não se encontram assim, em vias de serem canalizados, soterrados e escondidos. Mas tal e qual ocorreu anteontem em Belo Horizonte, um dia eles voltarão para reivindicar o espaço que era - e continua sendo - deles. E devo confessar que, apesar de toda a tragédia que isso em geral pressupõe, eu torço para os rios.

EDUARDO BUENO

31 DE JANEIRO DE 2020
INFORME ESPECIAL

O coronavírus e o mito da eficiência chinesa

O mundo assiste, admirado, aos movimentos da China no combate ao coronavírus. Cidades inteiras fechadas e hospitais sendo construídos em velocidade frenética são os cartões de visita desse mito da eficiência oriental. Nada há de meritório, pelo simples fato de que, em uma democracia, nada disso seria possível. Cercear o direito de ir e vir? Um juiz federal do Maranhão aceitaria o pedido de liminar cinco minutos depois do anúncio e derrubaria o decreto presidencial. Mesmo que a segunda instância mudasse a decisão, uma rede de transporte clandestina passaria a funcionar no segundo dia, levando e trazendo pessoas a preços convidativos.

No caso dos hospitais, seria ainda mais complicado. A necessidade de licenças ambientais, aprovação de projetos e alvarás, além de eventuais queixas de vizinhos e invasores do terreno emperrariam antes da largada. Alguma empreiteira alegaria necessidade de edital e trancaria tudo. E, na escavação das fundações, um caco de porcelana, possivelmente resquício de um penico do século passado, levantaria dúvidas sobre a necessidade de avaliação arqueológica do lugar.

Cobri a Olimpíada de Pequim, em 2008. Lá, aos cochichos, um morador local me contou, enquanto passávamos por um novo e monumental bairro, que até pouco havia ali uma espécie de favela urbana. Perguntei pelos antigos moradores. Meu anfitrião mudou de assunto.

É incrível como o crescimento econômico da China ofuscou o debate sobre democracia e liberdade. Ninguém mais fala nisso. Há apenas os números da balança comercial e o medo da queda no crescimento do PIB. Se isso acontecer, aí sim, talvez, o mundo volte a falar sobre a aniquilação do Tibete, sobre repressão, sobre censura e sobre opressão.

TULIO MILMAN

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020


30 DE JANEIRO DE 2020
FÁBIO PRIKLADNICKI INTERINO


O sábio mais humilde

Conta a tradição judaica que o rabino Tarfon era conhecido por três características: a grande erudição, a sincera humildade e o profundo respeito à mãe. Certa vez, a mãe deixou cair uma de suas sandálias, mas a lei de observância do Shabat proibia o rabino de pegá-la, então ele se agachou e colocou as mãos sob os pés dela para que pudesse caminhar sobre elas até entrar em casa. Os outros sábios, exigentes, jamais se deixavam impressionar com esse tipo de coisa: diziam que ele não estava cumprindo nem a metade do mandamento de honrar pai e mãe.

Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel da Paz que sobreviveu aos campos de concentração de Auschwitz e Buchenwald, escreveu um sensível texto sobre o rabino Tarfon e poupou aos leitores modernos o trabalho de percorrer as herméticas páginas do Talmude em busca das fontes originais. Recuperando anedotas rabínicas (o judaísmo tem essas coisas), Wiesel se intrigou com o fato de Tarfon ser sempre o primeiro dos sábios a falar. Onde estava sua propalada humildade? Por que não deixava os demais responderem antes? O próprio Wiesel se encarregou de explicar: era costume da época que o primeiro a falar fosse o mais jovem, para que as opiniões dos mestres não o influenciassem. Ao se pronunciar antes dos demais, Tarfon se considerava o menos instruído.

Sua modéstia soa exemplar nos tempos atuais. Diz-se que ele conseguia acatar a ideia do interlocutor no calor de um debate, que às vezes admitia aos alunos não saber as respostas e que não guardava rancor. Mas, como qualquer ser humano, tinha defeitos. Para Wiesel, Tarfon não era o que chamamos hoje de ecumênico - uma maneira elegante que o Nobel da Paz encontrou para dizer que o rabino era severo com os cristãos-novos, os judeus conversos.

É nas qualidades desse grande sábio que penso quando reflito sobre o papel dos intelectuais hoje. Por intelectuais me refiro a professores, estudantes, jornalistas e simpatizantes que se importam com a cultura e defendem sua relevância para o país e para o mundo. Em meio a ataques injustificados ao setor, que têm turvado até mesmo o entendimento de moderados, o intelectual precisa cada vez mais se dirigir ao público amplo, não especialista.

O discurso crítico sobre a produção cultural se sofisticou, de modo que parece a muitos um domínio restrito de um seleto grupo. Mas é perfeitamente possível expressar ideias complexas de forma compreensível. Além dos suplementos especializados na imprensa, a cultura é assunto da população nas redes sociais, nos podcasts, nas conversas de elevador e de bar. Nada disso substitui o conhecimento adquirido nas aulas, nos simpósios, nas bibliotecas, mas é uma linguagem que é preciso aprender para sair da torre de marfim.

Assim como o rabino Tarfon, os intelectuais devem almejar sabedoria e humildade, mas diferentemente dele, precisam ser ecumênicos, dialogar sem preconceito. Muitos já fazem isso exemplarmente, mas outros ainda podem se unir a esse esforço. Frequentemente se questiona sobre como sensibilizar a população para a importância da cultura. Não existe a resposta perfeita, mas sábio é aquele que entende que nunca se termina de aprender. Se você já mudou de ideia conversando com pessoas que pensam diferente, Tarfon ficaria orgulhoso.

Por falar nele, Elie Wiesel conclui seu texto com um dos aforismos inesquecíveis do rabino: "Ninguém está te pedindo para completar a tarefa, mas tens de iniciá-la".

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 18/2

FÁBIO PRIKLADNICKI - INTERINO

30 DE JANEIRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

A guinada em curso

O andamento das votações relacionadas ao pacote enviado pelo Palácio Piratini à Assembleia Legislativa traz a promissora constatação de que prevalece o sentido de responsabilidade com o futuro do Rio Grande do Sul. Resistências aqui e ali são normais em uma democracia, mas a posição da maioria do parlamento favorável à inadiável reforma do Estado indica, enfim, a consolidação da consciência de que não é mais possível manter benefícios injustificáveis ou que colidem com a penúria dos cofres públicos. O compromisso maior, com a responsabilidade fiscal e com a possibilidade de construção de uma nova era, em que os gaúchos possam usufruir de melhores serviços prestados pelo Executivo, parece ser o novo norte da política no Rio Grande do Sul.

O avanço assegurado pela aprovação de alterações nas carreiras e aposentadorias do funcionalismo só está sendo possível, é preciso reconhecer, pela maior disposição ao diálogo de todos os envolvidos, aí incluídos o Piratini, deputados e até lideranças de corporações historicamente pouco flexíveis. Méritos para o governador Eduardo Leite, que demonstra capacidade de conciliação, recuando e sendo mais duro quando necessário, e entidades como o Cpers, sindicato aguerrido que aceitou ceder em alguns pontos para não abrir mão de outros. Tudo parte do jogo democrático.

É construindo entendimentos e consensos possíveis, de forma respeitosa, que o Rio Grande do Sul pode começar a sair do quadro de extremo descalabro financeiro que leva ao atraso de salários desde 2015, à quase inexistência de investimentos e a contrapartidas precárias das funções de Estado, completamente desproporcionais à elevada carga tributária que pesa sobre todos os gaúchos. O Rio Grande do Sul vem, desde terça-feira à noite, dando importantes passos para aplacar uma crise fiscal de origem histórica. É preciso deixar claro, no entanto, que o impacto positivo do pacote, de R$ 19 bilhões em 10 anos, terá um efeito muito aquém do necessário para o tamanho do rombo do Estado. Nunca é demais repetir que apenas o desencontro das contas previdenciárias é da ordem de R$ 12 bilhões anuais.

Cavado ao longo de décadas de gastos superiores às receitas, o buraco orçamentário e da dívida é tão profundo, que exigirá, tanto do atual quanto de próximos governos, a continuidade dos esforços para um dia promover o encontro das colunas da arrecadação e das despesas. Além do imprescindível enxugamento da máquina estatal, que deve ser levado adiante com medidas como privatizações, há gordura para cortar, como mostrou reportagem de Giovani Grizotti veiculada na RBS TV e em Zero Hora, que revelou o pagamento de extras por férias e licenças-prêmio não gozadas por quadros do Tribunal de Contas do Estado (TCE), com casos como o de um conselheiro que recebeu a quantia de R$ 700 mil. Novas reformas e revisões de privilégios, portanto, seguem se impondo. A esperança está na constatação de que o mundo político parece estar agora disposto a dar continuidade à guinada em curso, plantando as sementes de dias melhores para o Rio Grande do Sul.

OPINIÃO DA RBS



30 DE JANEIRO DE 2020
REFORMA DO FUNCIONALISMO

Acordo na Assembleia, racha no Cpers

O acordo feito a portas fechadas na terça-feira entre o Cpers/Sindicato e governo estadual fortaleceu o atrito entre grupos divergentes dentro da entidade.

Opositores à atual direção se reuniram ontem e decidiram que professores devem ser comunicados oficialmente sobre o que estão chamando de "conchavo" e "traição". Para isso, prometem convocar assembleia geral em data a ser definida.

O centro da discussão é o alegado consentimento do Cpers para que o triênio seja transformado em parcela autônoma, desvinculado ao salário, na proposta aprovada pela Assembleia.

- Estamos muito chocados com o que aconteceu, pois o sindicato é nossa ferramenta de luta. Depois desta negociação, a direção não nos representa mais - enfatizou Rejane Oliveira, ex-presidente da entidade.

Ela pontua que o acordo costurado não teve aval da categoria, que estaria unida pela retirada de todo o projeto, sem qualquer discussão sobre aceitar ou não emendas.

- Dissemos não ao projeto como um todo e não autorizamos a direção a negociar direitos adquiridos. Isso fere um dos princípios da entidade e caracteriza traição. Por conta deste conchavo, só nos resta romper a unidade que vínhamos tendo - complementou.

Para a ex-presidente, a anuência do Cpers foi determinante, na terça-feira, para a aprovação do projeto-mãe do pacote do funcionalismo, que altera carreira e regras de aposentadoria dos servidores. O texto recebeu 35 votos favoráveis. Eram necessários 33.

O Cpers, entidade de 75 anos e que representa 80 mil professores, informou, por meio de nota, que jamais aceitará negociar direitos, mas reconheceu não ser "possível brigar com a realidade" de que o governador Eduardo Leite "tem a mais ampla base governista na Assembleia desde a redemocratização".

"Diante da convocação extraordinária - sinal de que o governo já tinha apoio necessário para aprovar o pacote - nos vimos diante de uma encruzilhada histórica. Optamos, com a responsabilidade que nos cabe enquanto lideranças, pela via da redução de danos até o limite possível, com a mediação do MDB. Evitou-se, assim, o congelamento dos salários da categoria, criando condições para aumentos reais a partir de 2021. Sem esta articulação, aposentados poderiam ficar até 11 anos com os proventos paralisados", justificou a entidade.

MARCELO KERVALT

30 DE JANEIRO DE 2020
L.F. VERISSIMO

Ausência presente

Vem aí outro Carnaval, trazendo lembranças de outros Carnavais, que trazem lembranças de outros, que lembram outros, que por sua vez lembram outros, e assim por diante - ou para trás, até o primeiro tamborim. O Carnaval deste ano vem carregado de memórias especiais, e não foi preciso ir muito longe para evocá-las. Basta lembrar a Mangueira do ano passado, a Mangueira do belo samba-enredo História pra Ninar Gente Grande, da Manu da Cuíca e do Luiz Carlos Máximo, e do inesquecível clipe do samba gravado para a TV pela Cacá Nascimento. A Mangueira política, a Mangueira campeã. 

O começo - imaginaria você - de um levante, ou coisa parecida, contra o esquecimento que ameaçava apagar a Marielle Franco da memória nacional, não como um estorvo, mas como alguém que nunca existiu.

O samba-enredo da Mangueira de 2019 citava Marielle entre outras guerreiras brasileiras, mas uma das alas do desfile incluía grandes retratos dela, aplaudidos pelo público. Não se espera que uma escola de samba tenha o poder de denunciar assassinos e cobrar justiça a céu aberto, mesmo com um samba empolgante, mas o que desfilou na avenida naquele dia foi a ausência da Marielle, ao som de "Marielle presente" gritado da arquibancada. A ausência presente de Marielle já dura muito. Dura desde o outro Carnava!

Quem matou Marielle? Quem mandou matar Mariellle? Doutor Moro, é com você. Como vai a investigação sobre a morte de Marielle? Alguém sabe? Alguém se interessa em saber? Não é uma vergonha para a nação esse grande silêncio em meio à batucada? Já ouvi o samba da Mangueira deste ano. Fala de um Jesus favelado. É bom, é forte, já está dando briga. Só espero que ninguém se esqueça de, volta e meia, dizer "Marielle presente". Talvez só o que esteja faltando nas manifestações da avenida seja a insistência.

L.F. VERISSIMO

30 DE JANEIRO DE 2020
CHAMOU ATENÇÃO

O cão Buzz voltou para casa


Buzz nem deve mais se lembrar do terror que passou na tarde do último Réveillon. Quase um mês depois do incidente, o cãozinho de três patas voltou para o seu lar, em Imbé, no Litoral Norte, na sexta-feira passada (25). Muito mais feliz, garante sua dona.

- Nossa, ele correu muito com a Preta, nossa outra cadela. Ficavam de um lado para outro no pátio. Meus filhos também ficaram muito felizes com a volta dele, estávamos sentindo falta - contou Tatiele Fagundes, 32 anos.

No dia 31 de dezembro, com medo dos fogos, Buzz fugiu de sua residência. Perdido e desorientado por conta do barulho, acabou caindo no canal onde o Rio Tramandaí encontra o mar. O cusco estava só com o focinho para fora da água quando foi resgatado por Gil Pereira, 44 anos, guarda-vidas da guarita 137.

Ontem, houve mais um encontro da dona do cãozinho de três patas com Gil em frente ao ponto onde ocorreu o resgate no mar. Buzz correu de um lado para outro, esfregou-se na areia, pediu colo da dona, posou para fotos e respondia com carinho e atenção aos chamados do guarda-vidas.

Em um primeiro momento, não se sabia que Buzz tinha dono. Tatiele deu falta do cãozinho no dia seguinte ao desaparecimento e soube do salvamento pelas redes sociais.

- Tinha muita gente na minha casa no Ano-Novo. Alguém deixou o portão aberto e ele saiu. Ele tem oito anos, mas é um cachorro que veio da rua. Por instinto, vivia saindo e voltando para casa. Eu, na minha ignorância, nunca pensei que isso fosse acontecer - lamentou a dona do guaipeca.

Para devolver Buzz ao seu lar, porém, os guarda-vidas de Imbé pediram que algumas mudanças fossem feitas: uma cerca que estava danificada na casa de Tatiele foi consertada e o cãozinho foi castrado.

- Agora, não dou brecha - concluiu Tatiele.

CHAMOU ATENÇÃO

30 DE JANEIRO DE 2020
INFORME ESPECIAL

Professores reagem ao acordo entre Cpers e Leite

O acordo entre o Cpers e o governo do Estado sobre mudanças no plano de carreira da categoria gerou reações entre professores. Ex-presidente do sindicato e integrante do comando de greve, Rejane Oliveira não escondeu a sua indignação.

"Dar acordo é dar aval ao governo Leite! É se pôr de joelhos", opinou. A indignação se traduz em contundência: "Em qual assembleia geral a direção do Cpers foi autorizada pela categoria a se reunir com a base governista para negociar emendas?", observou um professor. "Quem negociou???? Quem nos traiu?????", questionou outra integrante da categoria.

Grupos de oposição interna no Cpers, que convergiram na greve, anunciaram ruptura: "A direção não nos representa mais", disse Rejane. Uma reunião realizada no final da manhã de ontem, da qual participaram integrantes de movimentos diferentes, deliberou pela convocação de uma assembleia, mesmo sem o aval da direção do sindicato. Haveria, de acordo com eles, suporte regimental para realizar o encontro.

Rejane entende que o acordo entre a direção do Cpers e o Piratini "salvou o governo", já que o MDB estava dividido e, com isso, poderiam faltar votos para aprovar as mudanças na carreira. A tese de desfiliação chegou a ser ventilada, mas Rejane não concorda. "O sindicato é uma coisa, a direção é outra", explicou.

INFORME ESPECIAL

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020



29 DE JANEIRO DE 2020
CAPA

O Sul é mais para cima

Santa Catarina e Paraná já são os principais mercados para os mais tradicionais conjuntos de baile do Rio Grande do Sul

Para alguns dos mais tradicionais conjuntos de baile do Estado, a agenda de shows hoje se concentra mais em Santa Catarina e Paraná do que no Rio Grande do Sul. De uns anos para cá, os Estados vizinhos estão também revelando talentos, como o catarinense Quarteto Coração de Potro (cujo mais recente álbum conquistou o prêmio de melhor disco de música gaúcha do blog Repórter Farroupilha, de Giovani Grizotti) e o paranaense Paulinho Mocelin, que atualmente disputa o mesmo prêmio. Os músicos gaúchos, no entanto, acreditam que uma expansão maior só será possível quando a cultura regional estiver mais forte no próprio RS.

Os Monarcas, grupo com quase 50 anos de história, teve mais de 60% de sua circulação de 2019 voltada a municípios de SC e PR.

- Tem um baile em que a gente costuma tocar todo ano em Blumenau, e todo mundo vai sempre pilchado. Já teve gente importante barrada por estar de cola fina (sem pilcha). Mas, no Rio Grande, tem muitos bailes em que a gente toca que o pessoal vai de tudo que é jeito. Tem gente até de calça jeans - lamenta Gildinho, líder d?Os Monarcas.

Outro importante grupo gaúcho, Os Serranos, fundado em 1968, também circula mais fora do que dentro do RS. Segundo eles, o Estado absorveu apenas 31% de sua agenda no ano passado. Edson Dutra, fundador do conjunto, observa que o percentual seria ainda menor caso o mês de setembro, marcado pela Semana Farroupilha, não fosse levado em conta no cálculo - considerando só o primeiro semestre de 2019, por exemplo, o percentual cai para 29%. O músico observa que, desde o início da carreira, busca expandir sua atuação, mas o ponto de virada foi o início da década de 1990, quando os clubes mais elitizados deixaram o preconceito de lado e também começaram a aceitar os fandangos.

- Foi um divisor de águas. Desde então, não houve mais restrições - conta Dutra.

Com base nos números d?Os Monarcas e d?Os Serranos, é possível concluir que Santa Catarina e Paraná estão mais interessados na tradição gaúcha do que o Rio Grande do Sul? Não é bem assim. Muitos fatores influenciam na menor circulação dos grupos pelo próprio rincão. Um deles, inclusive, atesta a solidez da tradição musical regional no RS: a profusão de grupos que concorrem pelo mesmo público.

- Se um clube pequeno do RS quer promover um baile, mas está com o orçamento curto, acaba contratando um conjunto menor, que toca o repertório d?Os Serranos e de outros artistas. Já para quem vive fora do Estado, quando Os Serranos chegam é como se chegasse um pedaço do Rio Grande. É outro significado - explica Edson Dutra.

A nostalgia é apontada como um fator determinante para a contratação de grandes conjuntos nos estados vizinhos. Trata-se de um circuito que cresce a partir da migração dos gaúchos. Santa Catarina e Paraná são os estados que mais receberam migrantes do Rio Grande do Sul nas últimas décadas - 422 mil e 280 mil, respectivamente, segundo o último Censo. São Paulo, Mato Grosso e Paraguai também receberam muitos migrantes do RS, possibilitando a circulação dos músicos.

- Tem gente que me diz que jamais vestiu bombacha quando morava no RS, mas comprou uma logo que saiu do Estado. Para quem está fora da terra-natal, é preciso trazer para perto de si esses elementos que formam sua identidade - avalia Daniel Hack, gaiteiro d?Os Serranos.

Algoritmos

No mês passado, o cantor Joca Martins publicou um vídeo na sua página do Facebook respondendo à pergunta "Por que a música gaúcha não sobe?", recebendo centenas de comentários. Na resposta, o intérprete afirmava que seu desejo era de ver a música do RS "descer", ou seja, ser mais valorizada no seu local de origem. Para ele, as mídias sociais e os algoritmos podem ser ferramentas importantes para impulsionar novos artistas locais, por isso é importante que o público e os músicos curtam e compartilhem trabalhos dos ídolos e colegas.

- Precisamos valorizar a nossa música internamente aqui no Sul. E quando falo em Sul, falo também em Paraná e Santa Catarina. Penso nesse espaço como um bloco cultural só. A questão principal é que não podemos ficar esperando que alguém de fora veja valor no que estamos fazendo - afirma Joca, em entrevista a ZH.

Daniel Hack concorda que os músicos e a sociedade gaúcha devem criar iniciativas para valorizar a produção regional. Para ele, a música do RS carrega grande potencial para conquistar todo o país:

- A nossa música não é feita apenas de melodia, letra e ritmo. Ela tem uma mensagem, algo quase subliminar, que aponta para um conjunto de valores que são universais. Nós cantamos a família, tratamos de emoções que são atávicas, que se repetem de geração em geração, independente de onde o sujeito se encontra.

ALEXANDRE LUCCHESE

29 DE JANEIRO DE 2020
DANIEL SCOLA INTERINO

Biografias

Há 106 anos, um grupo de desbravadores se lançou numa missão pelo extremo noroeste brasileiro para mapear um rio com mais de 1,6 mil quilômetros de extensão e até então inexplorado. Pelo sertão de Mato Grosso até chegar ao coração da Floresta Amazônica, o grupo com militares, guias indígenas e aventureiros brasileiros e americanos trilhou caminho para uma aventura que, mais tarde, viria a ser reconhecida no mundo todo. Equipados com barracas, canoas feitas de troncos de árvores e comida restrita, depararam com tribos de índios hostis, abriram caminho pela mata selvagem e enfrentam condições extremas de tempo e de terreno.

A saga foi liderada pelo militar brasileiro Cândido Rondon, já naquela época um veterano explorador, e levava junto o ilustre ex-presidente dos Estados Unidos e Nobel da Paz Theodore Roosevelt. Ao final da viagem feita na maior parte a pé, extenuados e castigados pelas adversidades, comiam apenas o que conseguiam caçar. Alguns já não contavam mais com a possibilidade de terminar vivos a missão. O próprio Roosevelt encerrou a expedição carregado em uma maca.

A aventura com tom épico é o ponto alto do livro Rondon, uma Biografia, do jornalista Larry Rohter, que conta a trajetória do brasileiro que deu nome a um Estado - Rondônia -, é o patrono das telecomunicações brasileiras e foi o responsável por levar estradas, pontes e portos a uma vasta região do Brasil.

É curioso que uma história de vida extraordinária de um brasileiro tão importante tenha sido contada com absoluto rigor só agora e por um jornalista americano. Rohter dedicou cinco anos à pesquisa do livro.

Virei a última página pensando em quantas histórias mais de homens e mulheres que de alguma forma ajudaram a construir o país nesses 520 anos de Brasil ficaram esquecidas no tempo. Fico imaginando se esse descuido histórico não teria relação com um certo estigma de parte dos historiadores ao Exército. Se for isso, é um tremendo equívoco.

Positivista e pacifista, Rondon foi o maior protetor dos povos indígenas no século 20 e levava ao pé da letra o lema "Morrer se preciso for, matar jamais".

Em livrarias americanas e europeias (físicas ou virtuais), é muito comum ver estantes abarrotadas de biografias e livros de diferentes períodos da História. Apenas para ficar na mesma área: o explorador britânico capitão sir Richard Francis Burton, cujos feitos não se igualam aos de Rondon, tem duas boas biografias e é personagem conhecido e estudado na Inglaterra.

Umas das minhas suspeitas é de que, no Brasil, os principais centros acadêmicos de História não conversam com o mercado editorial. Ou esse setor também não enxerga nas universidades a fonte ideal para a produção de grande fôlego e com rigor histórico que possa chegar ao público.

O certo é que carecemos de maneira geral de referências históricas com sua trajetória pesquisada e contada para o público de forma massificada. O brasileiro lê pouco? A resposta é sim.

Talvez uma forma de mudar isso seja pelo estímulo à leitura de bons livros baseados em personagens de referência que ficaram esquecidos ao longo do tempo.

Numa escola na periferia de Chicago, em 2008, para a cobertura eleitoral, assisti a uma aula de história política para jovens de 12 e 13 anos. Eles falavam de seus heróis, os founding fathers, os pais da nação americana, com suas qualidades e defeitos, com profunda admiração e conhecimento.

Existem muitos caminhos para mudar essa realidade. Desconfio de que se começarmos por distribuir livros como o de Rondon nas escolas brasileiras, a nossa história, no futuro, pode ser bem diferente.

Em tempo: Theodore Roosevelt morreu cinco anos depois da expedição brasileira. Até o fim da vida, fez questão de elogiar o extraordinário Rondon.

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 18/2 -
DANIEL SCOLA - INTERINO

29 DE JANEIRO DE 2020
ARTIGOS

O CAMELÔ DA MOBILIDADE URBANA

Os aplicativos em transporte vêm acumulando várias derrotas nos últimos meses. Antes disso, eles já eram proibidos em diversos países, como Itália, Dinamarca, Hungria, Bulgária e Turquia. Mais recentemente, Londres, Alemanha e agora a Colômbia, decretaram o fim deles. Outras cidades ou países determinam alguma restrição ou impõem regulações mais severas. Nova York, por exemplo, implementou uma lei em que o motorista de aplicativo deve receber o salário mínimo. Em pesquisa realizada, constatou-se que 85% dos motoristas recebiam menos do que o mínimo.

Vale destacar que essas companhias são acusadas, constantemente, pela prática de dumping e competição desleal. Tem empresa que acumulou prejuízo próximo a US$ 8 bilhões em 2019, o que gerou a demissão de centenas de funcionários. Outro fato que chama a atenção é a queda das ações dessas companhias: 30%, em média, desde as estreias na bolsa de valores. Parece claro que a entrada no mercado de capitais tem como objetivo a busca de financiamento para a continuação das operações de dumping.

Se a intenção é criar um caos nos sistemas de transporte das principais cidades do planeta, é importante lembrarmos as autoridades de que o Chile já experimentou o remédio amargo da desregulação. Dez anos após esse "experimento", o Chile voltou a ter um sistema 100% regulamentado.

Como afirma Eduardo Vasconcelos: "Mercados altamente desregulados provocam um aumento inicial da oferta, mas causam também aumentos tarifários, de congestionamentos e poluição, levando os sistemas para uma elitização".

Os aplicativos ou as economias digitais, em geral, além de alterarem o comportamento das pes- soas, estão alterando algo também preocupante, que é a arrecadação fiscal de municípios, Estados e União. Como a maioria desses aplicativos não é "made in Brazil", fica pouco da sua arrecadação em solo brasileiro. Em contrapartida, os EUA vêm saboreando uma das menores taxas de desemprego da sua história, algo em torno de 3%.

O futuro desse modelo de transporte é incerto, mas o preço praticado por esses sistemas não se sustentará. Primeiro, porque o limite de tolerância dos investidores, quanto às empresas de aplicativos não proverem lucros, está chegando ao fim. E, segundo, a taxação das tarifas de aplicativos é uma das poucas alternativas para a sustentabilidade do sistema de transporte convencional.

Engenheiro de Transporte | dirigidaconsultoria@gmail.com - ANTÔNIO AUGUSTO LOVATTO

29 DE JANEIRO DE 2020
ARTIGOS

TAXAR O USUÁRIO DE APLICATIVO É INCONSTITUCIONAL



Novamente impõe-se o debate sobre regulamentação e taxação do serviço de intermediação de aplicativos de transporte em nossa capital, desta vez com caráter de urgência, para ser votado em dois dias, portanto sem debates públicos, nem mesmo na Câmara de Vereadores.

O tema já foi apreciado pelo Poder Judiciário: taxar os usuários de aplicativos de transporte para além dos impostos correntes, como ISS, é visceralmente inconstitucional, por não haver fato gerador e por significar bitributação, assim decidiram o STF e os tribunais ordinários, em especial o TJ-RS e TJ-SP.

Estima-se que os aplicativos de transporte foram a escolha do cidadão da região metropolitana de Porto Alegre aproximadamente 100 milhões de vezes entre 2015 e 2020. São muito mais de 1 milhão de gaúchos que optaram por esse tipo de transporte. Esse fluxo de viagens gerou para a prefeitura de Porto Alegre aproximadamente R$ 30 milhões de arrecadação de ISS, servindo para o pagamento de suas despesas correntes.

Lembre-se, regulação estatal não pode afetar o núcleo essencial da livre-iniciativa, privando os agentes econômicos do direito de empreender, inovar e competir e, portanto, a restrição desproporcional ao transporte individual de passageiros, também por essa razão, contraria a Constituição. A restrição do poder estatal sobre o funcionamento da economia de mercado é precisamente o que conduziu ao surgimento do constitucionalismo moderno. Ora, não se pode, em pleno 2020, reduzir a livre-iniciativa a mero capricho retórico do constituinte.

Parafraseando o ministro Luís Roberto Barroso no julgamento do STF que analisou a matéria, "a minha crença profunda hoje, analisando o Brasil, é que nós precisamos mesmo de mais sociedade civil, mais livre-iniciativa e mais movimento social e menos Estado. Um capitalismo com risco privado, concorrência, empresários honestos e regras claras e estáveis, propiciadoras de um bom ambiente de negócios".

PEDRO ZANETTE ALFONSIN

terça-feira, 28 de janeiro de 2020


28 DE JANEIRO DE 2020
ROSANE TREMEA

(Des)conforto

Naquela fatídica e inesquecível tempestade que completa "aniversário" de quatro anos amanhã, a maior parte dos porto-alegrenses ficou às escuras - 450 mil clientes, como a CEEE chama, tiveram cortes de energia. Por sorte, na minha casa, não faltou luz um minuto sequer. No último dia 15, forte, mas sem a mesma intensidade, o temporal que se abateu sobre a Capital deixou sem energia 300 mil, o equivalente a 46% dos moradores. E lá estava eu entre eles.

Fazia tempo que não experimentava algo que, na infância, era bem normal na minha terra natal. Bastava o vento soprar mais forte ou um acidente banal acontecer para que ficássemos sem luz na cidade abastecida por uma minúscula usina e com uma rede de distribuição precária. Dias e dias, às vezes. Era preciso improvisar, mas o fato não chegava a nos causar espanto.

No dia do casamento de um dos meus irmãos, uns 30 anos atrás, com uma festa preparada para uma pequena multidão, um poste da rede de alta-tensão foi derrubado e... tan-tan-tan... quase que a cerimônia teve de ser cancelada. Horas e horas de aflição depois, as gambiarras apareciam. Sem poder usar o secador, o cabeleireiro fez as mulheres da festa usarem uma espécie de uniforme: a maioria saiu do salão ostentando coques em tamanhos e versões variados. Era só o mais aparente dos improvisos. Por sorte, minutos antes do evento começar, fez-se a luz!

As memórias me vieram agora enquanto acendia velas decorativas em casa para iluminar a escuridão. Àquela altura, os (pequenos) inconvenientes haviam sido não poder abrir o portão (as maravilhas do mundo digital!), subir uns poucos andares a pé ou dormir sem ar-condicionado na noite calorenta. Mas, como as horas de cortes se sucederam, outros entraves apareceram: bem no início da manhã, a água acabou, e eu mal consegui escovar os dentes e lavar o rosto - minha imprevidência com estoques, de água que seja, não demorou a dar as caras.

Sem o carro deixado no estacionamento na noite anterior, fácil seria chamar um táxi ou aplicativo, mas quem dizia que o 3G funcionava (aliás, por que pago por um serviço 4G se nessas horas o que aparece na tela é 3?!). E a bateria do celular indo, indo... Nunca ando com dinheiro na carteira, e naquele dia por acaso tinha uma nota de R$ 100 novinha. Sorte! Mas pensei que poderia levar uma carraspana do motorista da lotação ou do cobrador de ônibus caso optasse por esse tipo de transporte. Embora atrasada, meu destino não estava distante, cerca de três quilômetros de casa. E resolvi seguir a pé, entre postes, fios e árvores caídos.

No caminho, fui pensando em o quanto é frágil esse nosso conforto de classe média. Em pouco mais de 12 horas, saí do cômodo mundo moderno e digital para um (quase) tempo das cavernas: sem luz, sem água, sem comunicação, sem transporte. Tão frágil quanto nós. Chegando ao meu destino, percebi que o tema das conversas de todas as pessoas era o mesmo: há quanto tempo cada um estava sem luz, como fez para se virar, como havia carregado baterias de celular, o que havia feito com os alimentos para não estragarem... E então uma delas deu a real: aquilo que para nós era um desconforto momentâneo (ainda ficaria umas quatro horas sem energia), para muitos é o dia a dia. Onde o mundo moderno e digital não chega, o tempo das cavernas segue sendo o agora.

*O colunista David Coimbra está em férias e retorna no dia 18/2 - ROSANE TREMEA - INTERINA


28 DE JANEIRO DE 2020
PERIMETRAL

A revolução de Marchezan


Se a Câmara de Vereadores aprovar os cinco projetos que o Executivo propõe, Nelson Marchezan entrará para a história como o prefeito que promoveu a maior revolução no transporte coletivo em uma cidade brasileira.

Porto Alegre deixaria o posto de capital com a passagem mais cara do país (R$ 4,70) - à frente de Belo Horizonte (R$ 4,50), Curitiba (R$ 4,50) e São Paulo (R$ 4,40) - para fincar seu nome na vanguarda internacional: a tarifa de ônibus cairia para R$ 2, estudantes pagariam R$ 1 e os trabalhadores teriam passe livre.

A questão é que, para bancar essa revolução, o pacote vem cheio de controvérsias. Não será fácil convencer os vereadores - nem a sociedade - a aceitar uma espécie de pedágio para todos os carros emplacados fora da Capital que entrarem em Porto Alegre. Cada veículo pagaria R$ 4,70.

Outra proposta arrojada é o fim do vale-transporte. As empresas passariam a pagar à prefeitura uma taxa, mais barata que o VT, por cada um de seus funcionários - inclusive pelos funcionários que não andam de ônibus. Com isso, todas as pessoas que trabalham com carteira assinada na Capital estariam isentas da passagem.

São ideias que precisam ser debatidas, que podem ser contestadas, mas seu mérito é serem justamente o que são: ideias. Com o sistema de ônibus à beira da falência em Porto Alegre - foram 56 milhões de giros de roleta a menos em 2019 -, não dá para ficar assistindo ao velório sem fazer nada. Discorda dessas ideias? Tudo bem, mas quais são as suas?

Em qualquer cidade onde o transporte coletivo funciona existe algum subsídio para financiar a passagem. Londres cobra pedágio dos carros que acessam a região central. Paris obriga as empresas a pagarem uma taxa por funcionário. Nova York vai exigir US$ 10 (R$ 42), a partir de 2021, de todo veículo que entrar no sul de Manhattan.

Aqui, outra proposta de Marchezan é taxar os serviços de transporte por aplicativo: eles pagariam R$ 0,28 por quilômetro rodado. Só essa medida, segundo a prefeitura, reduziria em R$ 0,70 o valor da passagem. E, vamos combinar, nada pode ser mais justo do que exigir algum retorno de empresas que, ao todo, têm 25 mil carros usando a malha viária da cidade. Qualquer banquinha de cachorro-quente paga para se instalar no espaço público - por que os aplicativos seriam poupados?

Tomara que a Câmara de Vereadores faça um debate maduro. Discordar é saudável, mas não para soterrar a discussão: é saudável para construir a melhor ideia.

PAULO GERMANO

28 DE JANEIRO DE 2020
+ ECONOMIA

Verdes ao vento

A conta de todas as operações de entrada e saída de dólares do Brasil fechou com saldo negativo de US$ 50,8 bilhões em 2019. O dado foi informado ontem pelo Banco Central (BC). Embora tenha sido o pior resultado desde 2015, o volume é metade do registrado em 2014 (veja gráfico).

Pouco mais de um quinto do rombo teve origem na saída de investidores que estavam em aplicações financeiras: saíram US$ 11 bilhões, quase o dobro de 2018 (US$ 6,4 bilhões).

Analistas relacionam esse movimento à diminuição no juro básico, que no ano passado foi de 6,5% para 4,5% ao ano, uma redução de dois pontos percentuais. Conforme o BC, o investimento direto, dinheiro que se transforma em novas operações e empregos, foi de US$ 78,6 bilhões, quase igual ao de 2018 (US$ 78,2 bilhões). Na semana passada, a Unctad, ligada à ONU, havia registrado alta de 26% nesse indicador, que acabou não se confirmando.

Só brancos, não

O banco de investimento americano Goldman Sachs anunciou que, a partir de julho, só vai aceitar como clientes na área de estruturação de ofertas iniciais de ações (IPOs na sigla em inglês) empresas que não tenham o conselho administrativo formado só por homens brancos. A decisão foi anunciada pelo CEO, David Salomon, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, e confirmada em entrevista à rede de TV CNBC no final da semana. No conselho da Goldman, há quatro mulheres em 11 integrantes.

MARTA SFREDO


28 DE JANEIRO DE 2020
CARPINEJAR

Leiteira de rosas

Jamais tinha recebido rosas, correspondia à primeira vez que uma mulher me mandava flores, fazia o joguinho de suspense de pedir o endereço sem que eu percebesse a intenção, perguntava onde estaria em determinada hora como quem não quer nada e mantinha as conversas por WhatsApp com uma normalidade impensável para alguma surpresa.

Foi uma quebra de gênero já no começo da relação. Beatriz me cortejava antes de qualquer decisão viril.

Acostumado a ser o protagonista, enfrentava a inédita vergonha de ser o presenteado com uma dúzia de rosas vermelhas incandescentes. Fiquei encabulado, pasmo, sem jeito. Corri para o cartão, com a convicção de definir o remetente e ansioso pelo buquê de palavras. Sempre que antevemos quem nos enviou, já é paixão. Acertar o autor do agrado significa cumplicidade firmada e expectativas correspondidas. É que a pessoa mora em nossos pensamentos antes mesmo de morar conosco.

A dedicatória destacava que o namoro representava uma democracia. Não existiam papéis definidos, éramos complementares.

Eu cumpri o ritual. Cheirei longamente o aroma, como se eu sofresse uma crise de asma naquele momento. Devo ter chorado, as lágrimas são as pétalas dos olhos. Devo ter postado imagem nas redes sociais agradecendo a oferta e marcando-a na foto. Devo ter explicado aos amigos o que vinha acontecendo. Fiel ao protocolo, liguei para ela entre suspiros e interjeições. Óbvio que disse que não precisava, mesmo descobrindo que eu precisava muito disso há muito tempo.

Todo homem merecia passar por essa experiência de imensa vulnerabilidade. Embalei o feixe de galhos como um bebê, com a inexperiência de um tio até pegar o jeito de pai.

Corri a buscar um vaso com água capaz de acolher a braçada de um jardim. Vi que não contava com nenhuma jarra bonita, e improvisei a minha responsabilidade de cuidador em uma leiteira.

Eu jurava que as rosas envelheciam juntas, parelhas, quando um botão abria, o outro vinha na sequência, mas não, desvendei que cada rosa tinha a sua particular maturidade. Não floresciam unidas. Cada rosa era um dia diferente de nosso relacionamento, disputando o espaço com movimentos próprios. Por semanas, pude discernir a dinâmica de vários nascimentos e temperamentos, manhã por manhã uma rosa se abria para mim. E aplaudia com as pálpebras o milagre da sobrevivência.

Havia rosas que gargalhavam, irrompendo da sua concha subitamente. Havia rosas tímidas, que jamais desfaziam o novelo.

Desfrutava da ciência do carinho como nunca: alisava o poder dos espinhos, cortava o caule mais apodrecido, ouvia o baque seco da tesoura como uma batida do coração ou de uma porta.

Quando as flores murcharam, recolhi as sobras em uma caixinha de madeira.

Aquela bandeja de pétalas que arremessei para cima de nossas cabeças durante o casamento partiram do primeiro buquê que Beatriz me deu. As rosas, então, voaram.

CARPINEJAR

28 DE JANEIRO DE 2020
INFORME ESPECIAL

Votem, senhores deputados


Votem logo e com suas consciências tranquilas, seja para qual lado forem. Não se pode agradar a todos. Há o futuro, há o Rio Grande, há as categorias afetadas e há uma conta que não fecha.

Uma vez o ex-governador Tarso Genro me disse, sem qualquer agressividade, quase em tom de brincadeira, mas daquelas brincadeiras que refletem uma convicção: "Vocês, colunistas, adoram dizer para os outros o que eles têm que fazer". Eu ri, porque de certa forma é verdade. A opinião tem dessas coisas, às vezes é meio dedo na cara. Não sei se serve de consolo, mas tento lutar contra, embora, às vezes, seja isso que deve ser feito, sempre no contexto de um debate no qual todas as vozes são ouvidas.

Fiz todo esse preâmbulo para, agora, ir ao ponto. O pacote do governador Eduardo Leite precisa ser votado logo. Parte do Rio Grande jaz paralisada, esperando pelo desfecho dessa longa negociação. Muitas vezes se criticaram medidas de governo enviadas à Assembleia e submetidas ao plenário numa velocidade de fazer inveja a Usain Bolt.

Dessa vez, não.

Os deputados precisam, pelo bem da causa maior que defendem, destravar o Estado. A indefinição afeta o humor e a rotina de categorias relevantes, que fazem parte da solução e jamais podem ser confundidas com o problema. Mesmo assim, se ajustes precisam ser feitos e dores sentidas, que seja logo. Deputados se movem, na maioria das vezes, pela lógica imediata do voto. O sistema impõe que seja assim. Questão de sobrevivência. Reside aí uma contradição. Parlamentares que deveriam olhar para o longo prazo são pressionados pela vaia e pelo aplauso imediatos. Então, senhores deputados, decidam. É para isso que a função de vocês existe. As cartas estão postas, o cenário é conhecido e as possibilidades também.

Ela não era colunista. Por isso, escolhi uma frase de Margaret Thatcher para fechar o texto:

"O Brasil é o país do futuro, mas para tanto é preciso decidir que o futuro é amanhã. E, como bem sabem, isto significa que as decisões difíceis têm que ser tomadas hoje".

Troque-se apenas, no caso, Brasil por Rio Grande do Sul.

TULIO MILMAN

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020



27 DE JANEIRO DE 2020
CAPA

Um crime no olho do furacão

"Salve-se Quem Puder" combina drama e comédia na história de três mulheres unidas pelo acaso após estada em Cancún

Com estreia hoje na RBS TV, a nova novela das sete, Salve-Se Quem Puder, promete muita aventura temperada com situações divertidas e inusitadas. Na trama de Daniel Ortiz, com direção artística de Fred Mayrink, um crime entrelaça o destino de três mulheres: a atriz em busca de fama Alexia Máximo (Deborah Secco), a batalhadora Luna Furtado (Juliana Paiva) e a patricinha Kyra Romantini (Vitória Strada).

Após presenciarem o assassinato de um poderoso juiz (Aílton Graça), conhecido pelo rigor no combate à corrupção, elas precisarão abandonar suas identidades e seus sonhos para ingressar no Programa de Proteção à Testemunha.

Alexia e Kyra embarcam no mesmo voo rumo à paradisíaca Cancún, um dos destinos turísticos mais frequentados do mundo, na costa do Mar do Caribe - as primeiras cenas da novela foram filmadas no México. Em um toque de metalinguagem, Alexia está viajando para dar início às gravações de sua participação em uma novela na Globo. Já Kyra tem como objetivo acertar os detalhes da celebração de seu casamento com o empresário Rafael (Bruno Ferrari) - ele deveria acompanhá-la, mas não consegue embarcar devido a problemas com seu passaporte.

Em um primeiro momento, ambas se estranham: ao descobrirem que estão hospedadas no mesmo resort, vão disputar a atenção prioritária de Luna, a jovem mexicana escolhida para recepcionar as duas hóspedes brasileiras.

Após testemunharem o crime e serem obrigadas a viver com novas identidades sob a custódia do Programa de Proteção à Testemunha, as três terão seus sonhos adiados. Mais: ainda terão de enfrentar um furacão em Cancún.

Em conversa com Zero Hora, Juliana Paiva conta que sua personagem foi abandonada pela mãe, Helena (Flávia Alessandra), quando tinha apenas quatro anos. As situações por que Luna passa ao longo da vida acabam fazendo com que a garota se torne responsável pela família, pois seu pai, Mário (Murilo Rosa), sofre um acidente de carro e perde parte dos movimentos.

- Luna toma as rédeas de sua família, uma vez que o pai é cadeirante e a mãe não está presente há anos. Então, é "ela pela família". Se não trabalhar, não tem o que comer dentro de casa. Ao mesmo tempo, tem um suingue mexicano. Costumo dizer que ela não usa salto alto, é pé no chão mesmo (risos), quase pé descalço - afirma a atriz.

União

Kyra tem o sonho da vida perfeita. Após o crime, contudo, Vitória Strada relata que sua personagem, uma "patricinha", como ela mesma define, terá de enfrentar uma realidade diferente. Com o nome mudado para Cleyde, ela precisará se refugiar em Judas do Norte, cidade fictícia ambientada no interior de São Paulo, ao lado de Luna (que passará a se chamar Fiona) e Alexia (que vai virar Josimara). A atriz gaúcha conta que, no início, devido às diferenças de personalidade, as três garotas não se darão bem. Depois, as coisas começam a mudar.

- O furacão une as três, e elas viram quase irmãs - resume Vitória.

Já Deborah Secco comemora a oportunidade de fazer uma personagem que, nas palavras da atriz, "se diverte com a vida":

- É uma mulher dramática, interessante, apaixonada, que ama comer, ama homens bonitos (risos). E acho que nós três conseguimos chegar na mesma energia, mesmo tendo personagens tão diferentes, conseguimos ter uma sintonia muito real.

JOSÉ AUGUSTO BARROS