terça-feira, 31 de janeiro de 2017


31 de janeiro de 2017 | N° 18756 
CARPINEJAR

A falta de controle


Não inventaram um portão eletrônico que se abre de longe. Por mais que os vendedores digam que é somente questão de uso. É uma balela. Todos os motoristas de meu bairro passam pelo constrangimento. Não há um objeto mais xingado do que o controle da garagem, mais do que o telefone tocando sem parar no sábado e domingo com oferta de telemarketing.

O controle ativado a distância é a maior mentira da civilização. Não compreendo como somos tão avançados em tecnologia e não resolvemos nem o controle neolítico da garagem, muito menos o interfone, sempre barulhento, sempre trocado semestralmente pelo síndico com a esperança de que “agora vamos resolver”.

Você aperta o comando a meia quadra, nada acontece, depois a 100 metros, 50 metros, 30 metros, 20 metros, 10 metros, e não abre. Você está beijando o portão e ele não se mexe.

Quer entrar rapidamente na garagem para evitar assaltos, mas não funciona a mágica. Eles vão dizer que é problema de pilha, a mesma desculpa. Mas o controle é novo, recente, o 15º modelo.

Desejam enganar quem, logo nós, peritos e velocistas dos controles de televisão e ar-condicionado?

Você aperta histericamente os dois botões (por que dois botões? Já sugere que um deles não é confiável).

Não há explicação, tenta encontrar um jeitinho no manuseio, pressionando bem em cima, nos ladinhos, segurando por três segundos, dando um toque rápido, mas nenhum sinal de levantar a grade. Daí você baixa a janela, fica estendendo o braço para fora desesperadamente, pedindo carona para a sorte. Começou a rezar. Começou a proferir o patético “abre-te sésamo”. Começou a delirar. Em seu medo, já foi sequestrado, coberto por um capuz, torturado e o seu cadáver repousa agora no porta-malas.

É muito tempo perdido, já estaria dentro de casa se o portão fosse manual como na infância.

É uma vergonha ter que sair, deduz que os vizinhos estão nas arquibancadas das janelas observando a sua incompetência. Só que não tem mais o que fazer. Apaga o veículo, puxa o freio de mão e perde a aposta consigo mesmo. Desce do carro. Desce e aponta o controle perto das barras, derrotado. E o portão sobe lentamente e você entra na boca aberta do prédio rindo de sua cara.



31 de janeiro de 2017 | N° 18756 
DAVID COIMBRA

Fiquei com pena do Eike

Sei que as pessoas estão sedentas de sangue, mas fiquei com pena do Eike Batista. Vê-lo de cabeça raspada, entrando no camburão da polícia, não me fez bem. Saber que, neste momento, ele está vivendo num cubículo precário, na companhia de outros cinco presos, não me traz alegria.

O próprio Eike admite ter errado, ele já insinuou isso. Ou até já deixou isso claro. É certo que deve ser punido, portanto. O problema é o que significa a punição por encarceramento em um dos presídios do nosso país.

Você, que está com a justa raiva da corrupção, haverá de gritar: dos outros você não sente pena?

Acontece que sinto. Nenhum ser humano merece viver num desses calabouços que o Estado brasileiro mantém. A diferença é que o criminoso do colarinho branco, o estelionatário, o vigarista comum, esses não são violentos e não estão habituados à violência.

Nesses casos, a punição é ainda mais dura. Eike precisará de muito estofo e muita têmpera para sobreviver.

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Medo de estupro

Entra, na categoria dos criminosos não violentos, Sérgio Cabral.

Outro dia, Sérgio Cabral foi visitado por um integrante do governo do Rio de Janeiro. Ele pediu que, “pelo amor de Deus”, o governador Pezão mandasse outro carro-pipa para abastecer o presídio.

– Quando havia água, eu era bem tratado – explicou. – Agora, faz dias que não tomo banho, porque tenho medo de ser abusado fisicamente pelos outros presos.

Ou seja: o ex-governador do Rio tem medo de ser estuprado na cadeia.

Exemplo

Tudo isso é terrível, é desumano e é uma tragédia brasileira, mas que, pelo menos, sirva de exemplo. Que, pelo menos, outros ocupantes de cargos públicos tenham medo.

O medo, nesses casos, é civilizatório.

Saída de Walace pode desacertar o Grêmio

O Grêmio perdeu a sua viga de sustentação. Walace é o tipo de volante que, com três passadas, atravessa a grande área de uma risca a outra. Ele tem senso de colocação, velocidade e técnica. Com ele na frente, Geromel pode arriscar-se a sair, como saiu para fazer a jogada do gol decisivo na Copa do Brasil, e até o chutão de Kannemann fica simplificado.

Walace é o volante mais parecido com Dinho que o Grêmio conseguiu, desde a década de 1990, uma pedra preciosa que só é descoberta de 20 em 20 anos.

Na Olimpíada, o ingresso de Walace na Seleção permitiu que Luan preparasse o jogo para Neymar e os dois Gabriéis. Foi Walace quem acertou aquele time.

Sua saída pode desacertar o Grêmio. Segunda divisão trouxe violência ao Inter

Nunca ter caído para a Segunda Divisão era uma distinção que o torcedor do Inter tinha. Servia de arma secreta nas discussões com os amigos gremistas. A flauta ia, vinha e, no fim, o colorado sacava o argumento decisivo:

– É, mas nós nunca caímos para a Segunda Divisão.

A perda desse trunfo foi, por isso, um desgaste, um estresse.

Mas faz parte do esporte. Títulos e quedas acontecem.

O que não pode acontecer é um revés extrair do torcedor o que ele tem de pior: a violência.

No ano passado, torcedores colorados atiraram um tijolo em uma mãe com um nenê no colo – aliás, uma mãe colorada.

No último domingo, vi, pela TV, um torcedor jogando no outro (aliás, colorado) uma pedra do tamanho de um punho de homem, a três metros de distância.

Isso mata um. Nenhuma desgraça esportiva é maior do que uma desgraça dessas.
31 de janeiro de 2017 | N° 18756ARTIGO | 
DENIS LERRER ROSENFIELD

A RIQUEZA DA CORRUPÇÃO

Os governos petistas apresentaram-nos uma longa lista de crimes, produto de seu modo mesmo de exercício do poder, saqueando cofres públicos e empresas estatais. Dentre seus coadjuvantes de luxo, encontram-se o ex-governador peemedebista do Rio de Janeiro Sérgio Cabral e Eike Batista, ícone desta era. Quem não se lembra das fotos de Lula e Dilma com esses personagens!

O ex-governador Sérgio Cabral, tão aclamado por suas UPPs, que se mostraram um engodo por sua falta de estrutura, amealhou, calculando por baixo, mais de US$ 100 milhões em contas no Exterior, perfazendo mais de R$ 300 milhões. Não espanta, portanto, que o Rio encontre-se nesta penúria, pois o exemplo de cima apresenta toda uma estrutura estatal capturada pelo crime.

Festas em Paris mostravam os comparsas esbanjando o que tinham surrupiado dos cofres públicos, dos recursos dos contribuintes. Expunham a quem queria ver a impunidade dos poderosos. A lei, pensavam, jamais se aplicaria a eles.

Eike Batista é outra expressão desta época de crime e impunidade. Foi erigido em símbolo do capitalismo petista, construindo um castelo de cartas ancorado em financiamentos públicos e em relações “privilegiadas” com órgãos estatais. Financiava campanhas eleitorais e irrigava os seus bolsos e os de seus companheiros.

Todos “ganhavam”, salvo evidentemente os brasileiros, que continuaram com sofríveis serviços públicos. As necessidades sociais do país seriam menores se os recursos fossem melhor administrados, com honestidade e probidade.

A Lava-Jato fez escola no Rio de Janeiro. O juiz Sergio Moro foi substituído pelo juiz Marcelo Bretas, cumprindo rigorosamente a lei. A era da impunidade, a depender desses juízes e promotores, acabou, apesar do esperneio de seus remanescentes, como o ex-presidente Lula. Contra todas as evidências, continua declarando que a lei a ele não se aplica.

Se for coerente, a sua tentativa de processar na ONU o juiz Moro deverá, então, em pouco tempo, se traduzir por colocar em questão boa parte do Judiciário brasileiro! É a volta pueril da medíocre máxima esquerdista de que a lei é somente uma mera expressão das relações de classe capitalista.

Logo, o crime está justificado!

31 de janeiro de 2017 | N° 18756 
EDITORIAIS

O AVANÇO DA INVESTIGAÇÃO


Agiu com coragem e firmeza a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ao homologar as delações de executivos e ex-executivos da Ode- brecht no âmbito da Lava-Jato. Ao fazer uso de suas prerrogativas para dar andamento célere à investigação, como solicitara o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, a presidente da Corte Suprema atende, acima de tudo, aos anseios da nação pela continuidade da operação que começa a atingir o núcleo político do esquema delituoso. Mantém, assim, antes mesmo da escolha do novo relator, o ritmo responsável e fundamentado que vinha sendo implementado pelo falecido ministro Teori Zavascki.

Falta ainda resolver a questão da manutenção do sigilo das delações, que ficou para ser resolvida pelo novo relator, a ser sorteado nesta semana. O tema preocupa o Planalto, interessado em evitar turbulências políticas às vésperas da decisão sobre o novo comando da Câmara e do Senado. A própria Odebrecht gostaria de ganhar tempo para atenuar os prejuízos provocados pelas denúncias de pagamento de propina em 12 países, incluindo o Brasil. Mas os cidadãos brasileiros querem saber quem efetivamente se beneficiou dos desvios de recursos públicos para financiar suas campanhas eleitorais ou mesmo para aumentar o patrimônio.

Seria frustrante para o país se, depois da inesperada morte do relator da operação no STF, os trabalhos fossem descontinuados ou enfrentassem um atraso além do previsto. A presidente do Supremo demonstrou ter consciência dessa expectativa, ao chancelar o pedido dos procuradores, reduzindo as razões para desconfianças. Espera-se, agora, que o novo relator, tão logo seja confirmado, continue dispensando ao assunto igual tratamento.

CONDENADOS À SOLTA

Num Estado em que, no período de 15 anos, o número de latrocínios – roubo com morte – aumentou 50%, só pode preocupar mais ainda a constatação de que nada menos de 5.116 presos estão soltos nas ruas por absoluta falta de espaço físico. Destes, somente 2.878 usam tornozeleira, que apenas informa a localização do apenado, mas não evita a criminalidade. Vagas em presídio são um pressuposto óbvio para que o poder público possa fazer justiça. E, embora não se constituam na única forma de acenar com mais segurança, não há como garanti-la sem enfrentar o caos prisional.

É inadmissível que, no mínimo há uma década, o Presídio Central de Porto Alegre venha sendo apontado como um dos piores do país, sem que nada tenha sido feito para reverter essa situação. É igualmente inconcebível que, de 101 prisões gaúchas, nada menos de 23 estejam interditadas, 16 delas por superlotação. Não há como pensar em recuperação de prisioneiros numa situação dessas, que só fortalece a atuação de organizações criminosas com livre poder de ação dentro e fora dos presídios.

Não é justo que a sociedade gaúcha fique exposta a riscos desnecessários, além dos muitos que já se mostram a cada dia mais preocupantes no cotidiano. O Estado não pode passar a ideia de que, diante dos problemas financeiros do setor público, se mostra conformado com a impunidade. É preciso enfrentar logo essas questões, melhorando as condições de atuação dos organismos policiais.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017



30 de janeiro de 2017 | N° 18755
PORTO ALEGRE

Tumulto por fechamento dos portões em concurso do MP

Uma confusão relacionada ao horário de fechamento dos portões causou tumulto no concurso para secretário de diligências realizado ontem pelo Ministério Público Estadual (MP-RS). Pelo menos 120 candidatos que fariam a prova objetiva na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) não puderam acessar os prédios da universidade.

A divergência não foi sobre o horário do fechamento dos portões – definido para 8h45min no edital do certame – mas sobre a quais portões o texto se referia exatamente. Acreditando que tratavam-se das entradas principais do campus, e não das entradas de cada um dos prédios, dezenas de candidatos ficaram no pátio da PUCRS aguardando chamamento e acabaram impedidos de realizar a prova. Indignados, muitos tentaram entrar à força e acabaram sendo detidos por seguranças. O salário inicial da vaga é de R$ 4,3 mil.

EXCLUÍDOS REGISTRARAM BOLETIM DE OCORRÊNCIA

Os concurseiros reclamam também que portões dos prédios foram fechados com vários minutos de diferença, prejudicando alguns candidatos e favorecendo outros.

– Fecharam as portas do prédio 50 depois das 8h45min, 8h42min eu estava no 2° andar do prédio 50 e uma fiscal deste andar me informou que fechariam a porta um pouco depois do horário, por que haviam aberto um pouco mais tarde do que o previsto. O horário da sirene da faculdade tocou com mais de um minuto de atraso em relação ao horário de Brasília, mas as portas do prédio 11 fecharam as 8h45min sem aviso prévio – conta o candidato Almir Martins.

Os participantes excluídos registraram um boletim de ocorrência (BO) sobre o ocorrido. Após duas horas de espera, foram recebidos pela banca do concurso que fez uma ata relatando os fatos, mas não deu garantias sobre a realização de uma nova prova.

– Estamos nos organizando para recorrer – afirma Ana Clara Vieira Bertaco, outra das candidatas impedidas de fazer a prova.

Por meio da assessoria de imprensa, a comissão do MP responsável pelo concurso reitera que o edital traz de forma clara que os participantes devem estar no local de prova no horário estabelecido e que eventuais reclamações serão analisadas em expediente interno.



30 de janeiro de 2017 | N° 18755 
CÍNTIA MOSCOVICH

O UNIVERSO NUMA CASCA DE NOZ


Muita gente já falou antes e muito melhor sobre Enclausurado (Companhia das Letras, 200 páginas), de Ian McEwan. Mas como bons livros devem ser relidos e comentados e recomendados, aí vai meu palpite – ainda mais em época de colocar a leitura em dia.

Aguardado com expectativa pelos muitos fãs do autor no Brasil – cultuado no mesmo altar de Paul Auster e Philip Roth –, lançado em outubro do ano passado e já em terceira reimpressão, Enclausurado (o título original é Nutshell) mantém um diálogo explícito com Hamlet (a casca da noz do título em inglês torna essa relação ainda mais evidente). Como na tragédia do príncipe norueguês, há uma traição e um assassinato: a grávida Trudy, em conluio com Claude, seu cunhado e amante, planeja matar John, pai do bebê com nove meses de gestação que ela traz no ventre e que, já se sabe, conta a história.

Sacada de ouro de McEwan, esse narrador, mesmo enclausurado na barriga da mãe, tornou-se apreciador de vinhos e, apesar de impotente, é observador privilegiado da história. Com discernimento e consciência que poderiam soar inverossímeis ou forçados em mãos menos hábeis, o feto-narrador percebe o mundo graças à percepção ampliada de todos os sentidos. Verdadeiro tour de force, a experiência das sensações contada a partir do ambiente líquido do ventre de uma mulher é surpreendente – e aqui não se fala em ponto de vista por motivos óbvios: tudo o que o feto vê são sombras baças do mundo externo.

Dono de uma técnica invejável e que é valorizada pela preciosa tradução de Jorio Dauster, McEwan tira o máximo proveito de seu incomum narrador. Há um humor que, mesmo sutil, é puro sarcasmo, com tiradas viperinas, secas, fleumáticas – que ganham o máximo de brilho nos momentos em que o casal de amantes se dedica ao sexo, atividade bastante frequente e que o bebê parece não apreciar muito.

Autor do magnífico Reparação, além de Amor Sem Fim, A Balada de Adam Henry e Jardim de Cimento, entre outros, McEwan chegou a um resultado que merece com justiça o sucesso que vem obtendo.


30 de janeiro de 2017 | N° 18755 
DAVID COIMBRA

Homem que bate na mulher

O parlamento russo, a Duma, aprovou uma lei que permite ao marido bater na mulher. Mas, atenção, há restrições: não pode deixar marcas e tem de ser uma única vez ao ano.

Segundo os deputados, a lei atende a uma tradição do país. Na Rússia, há um ditado que diz: “Se ele te bate, é sinal de que te ama”.

Entre os defensores da proposta, um dos deputados mais entusiasmados não é um deputado: é uma deputada. Uma mulher.

Uma contradição? Nem tanto.

Lembro de Yelena Isinbayeva.

Você sabe: Yelena Isinbayeva, a rainha russa do salto com vara. Já contei que a entrevistei na Olimpíada de Pequim. Os olhos lilases de Yelena ficaram a palmo e meio dos meus. Senti-lhe o hálito de menta e pensei: desta boca pequena só saem aromas de flores e ervas.

Verdade.

Mas saem também besteiras. Yelena defende as leis antigays da Rússia, e justifica:

– Aqui somos assim.

Agora repare: Yelena é uma mulher do mundo. Viaja por todos os continentes, conhece pessoas de todos os lugares. Não é uma camponesa do interior da Geórgia, que aceita apanhar por “amor”. Como se explica Yelena cevar ideias tão antigas?

A resposta caberá, também, para explicar a bizarra lei que dá ao homem o direito de bater na mulher.

É o Estado. Em outubro, será completado o centenário da Revolução Bolchevique. O Estado se tornou dono de tudo, na Rússia, desde que Lênin chegou à Estação Finlândia, em 1917, até o Muro de Berlim ser derrubado, no fim dos anos 1980. Muito tempo.

Quando o Estado é tão grande, o indivíduo se apequena. A noção de direitos, deveres e vida em sociedade fica terceirizada. Se o Estado é responsável por todos os regramentos da vida, você não toma iniciativa nenhuma. Porque é desnecessário e porque é inútil.

É o princípio da educação infantil. Quando o Bernardo se atrapalha em alguma tarefa e a Marcinha, boa mãe que é, vai lá e faz para ele, eu reclamo:

– Deixa o guri crescer!

É assim. Você tem de orientar o filho e, ao mesmo tempo, estimular sua independência.

Quando você faz tudo para o seu filho, quando dá tudo o que ele quer, quando só lhe diz sim, ele se tornará mimado, birrento e infeliz. E mais: ingrato. Há que se construir o equilíbrio entre cuidado e disciplina.

Da mesma forma, a sociedade. Por que a comunidade se organizará para o que quer que seja se o Estado faz tudo, ou diz que fará tudo?

Uma sociedade amassada pelo Estado age pouco e pensa quase nada. Dela resultam indivíduos embrutecidos, que, como crianças mimadas, são birrentos e infelizes.

O cidadão que toma a iniciativa e valoriza sua liberdade individual e sua privacidade valoriza também a liberdade individual e a privacidade alheias. Porque ele sabe que só será respeitado se respeitar.

Em países como a Rússia e o Brasil, o Estado é uma entidade situada acima do cidadão. O cidadão espera que o Estado resolva os seus problemas. Assim, qualquer mobilização só é feita para exigir soluções, não para encontrá-las. É cada um por si e o Estado por todos. Eis o fermento do egoísmo e da tacanhice, do preconceito e da violência.

Mas talvez este momento de crise do Estado brasileiro seja positivo. Talvez a sociedade compreenda que é preciso fazer por si própria para, enfim, crescer.


30 de janeiro de 2017 | N° 18755 
L.F. VERISSIMO

1017

Se medidas drásticas não forem tomadas agora para diminuir o aquecimento global, Mr. Trump, os efeitos disso se agravarão de tal maneira, que é impossível prever como será o mundo daqui a mil anos. O que nos leva a imaginar o que deveria ter sido feito há mil anos para impedir que chegássemos a este ponto. Como evitar, retroativamente, o processo que hoje ameaça a vida do planeta?

Deixa ver. Mil anos atrás. O ano de 1017. Um programa de conscientização do público teria que começar com recomendações para controlar o número de fogueiras e queimadas e diminuir o fogo nos fogões, e em hipótese alguma adotar aquela novidade, o carvão, que só traria sujeira e desgraça. O carvão, aliás, deveria ser proibido antes de as pessoas descobrirem o que era. 

Todos teriam que ser convencidos de que a mula, o cavalo, o boi, a carroça e, vá lá, a carruagem eram o máximo que se poderia desejar em matéria de transporte e que o melhor era mesmo acabar com aquela mania de ir de um lugar para outro. Todo mundo deveria ficar sossegado em casa e, principalmente, deixar de inventar coisas ou pensar em fazer coisas, acima de tudo coisas que produzissem fumaça.

Mas talvez 1017 já fosse tarde demais. Algum profeta do apocalipse teria que interferir vários milhares de anos antes e, com sorte, chegar à Idade da Pedra Lascada no local exato e na hora certa.

– Pare o que você está fazendo!

– Mas eu só estava...

– Inventando a roda. Ainda bem que chegamos a tempo. Você não tem ideia do que estava começando. Parando agora, você estará salvando milhões de vidas humanas. Estará salvando o próprio planeta. Desista. Invente outra coisa.

– Mas eu só estava fazendo uma mesa de centro.

– É o que você pensa. Estava inventando o automóvel, o engarrafamento, o monóxido de carbono, os cartéis do petróleo, guerras...

– Mas... – Faça uma mesa de centro quadrada. E outra coisa.

– O quê? – Nos leve ao cara que está descobrindo como fazer fogo.

– Por quê? – Temos que eliminá-lo.

domingo, 29 de janeiro de 2017



elio gaspari
29/01/2017  02h00

Prepotência de Eike servia à corrupção

Nascido na Itália, veio ainda criança para o Brasil, onde fez sua carreira jornalística. Recebeu o prêmio de melhor ensaio da ABL em 2003 por 'As Ilusões Armadas'. Escreve às quartas-feiras e domingos.

Em junho de 2011, o empresário Eike Batista admitiu que emprestara o seu jatinho Legacy ao governador Sérgio Cabral para que ele chegasse a um resort da Bahia para a festa de aniversário do seu amigo Fernando Cavendish, dono da empreiteira Delta. Interpelado sobre a eventual impropriedade do mimo, Eike vestiu o manto de homem mais rico do Brasil, oitavo do mundo, e respondeu:

"Tive satisfação em ter colocado meu avião à disposição do governador Sérgio Cabral, que vem realizando seu trabalho com grande competência e determinação. Sou livre para selecionar minhas amizades, contribuir para campanhas políticas, trazer a Olimpíada para o Rio (...) e auxiliar a realização de diversos projetos sociais e culturais do Estado".

Batista exercitava a superioridade dos poderosos. Ele sabia a natureza de suas relações com o governador e tinha certeza de que esse segredo jamais seria rompido. Entre 2009 e 2011 o casal Cabral voara 13 vezes nas asas de Eike, mas isso era apenas um aperitivo. Ele deslizara US$ 16,5 milhões para os bolsos de Cabral, sempre "com grande competência e determinação".

A sabedoria convencional leva as pessoas a acreditar que empresários muito ricos são também muito inteligentes. Os casos de Eike e de Marcelo Odebrecht mostram que às vezes a prepotência lhes embaça o raciocínio.

Eike não precisava ter assumido um tom principesco ao tratar do empréstimo do avião. Da mesma forma, em 2014, ao ser incriminado na Lava Jato, Odebrecht deu uma lição de moral à imprensa: "A euforia de se publicar notícias de impacto em período eleitoral extrapolou o razoável. (...) Neste cenário nada democrático, fala-se o que se quer, sem as devidas comprovações, e alguns veículos da mídia acabam por apoiar o vazamento de informação protegida por lei, tratando como verdadeira a eventual denúncia vazia de um criminoso confesso e que é 'premiado' por denunciar a maior quantidade possível de empresas e pessoas".

Tanto no caso de Eike como no de Odebrecht, as suspeitas de 2011 e 2014 revelaram-se conversas de freiras. A verdade ia muito além. Para glória da Viúva, Marcelo Odebrecht e seus 77 executivos tornaram-se "criminosos confessos". Eike irá pelo mesmo caminho.

Preguiçoso

Um conhecedor das mumunhas das corrupção revelou-se surpreso com os costumes de Sérgio Cabral. Segundo ele, o ex-governador foi um caso de corrupto preguiçoso.
Habitualmente os ladrões pegam a sua parte e vão em frente. Veja-se o caso dos milionários das petrorroubalheiras. Cabral, porem, usava seus doleiros para pagar contas corriqueiras, como IPTU, IPVA ou mesmo conserto de carros. Aí o caso não é apenas de corrupção, mas preguiça mesmo, pois nem isso ele fazia.

Francis faz falta

Paulo Francis morreu em 1997, mas está fazendo uma falta danada. Diversas idiossincrasias de Donald Trump parecem ter saído do almanaque do jornalista.
Ele ficaria feliz ao saber que o presidente americano quer que organizações internacionais como a ONU, Otan e OEA vão às favas.

Lota avisou

Em dezembro de 2012, quando o poderoso Eike Batista queria transformar a Marina da Glória num mafuá anexo ao hotel Glória, Lota Macedo Soares, a genial criadora do aterro do Flamengo que se matou em 1967, mandou-lhe um e-mail. Ela dizia ao bilionário que não devia pavonear sua riqueza.

O chinês Huang Guangyu e o russo Mikhail Khodorkovsky foram os mais ricos de seus países e acabaram na cadeia.

Eike achava que Lota era doida e que suas amizades nos governos municipal, estadual e federal resolveriam qualquer parada.

Saudades

No tempo do mensalão, o ministro Joaquim Barbosa era visto como uma encarnação do Tinhoso. Veio a Lava Jato e com ela o juiz Sergio Moro. Muita gente ficou com saudade de Joaquim Barbosa.
O juiz Marcelo Bretas, da 7ª Vara Federal do Rio, deixará poderosos marqueses do Rio com saudades de Moro.

Madame Natasha

Madame Natasha teve uma paixão juvenil por Mário Américo, um negro parrudo que acompanhou a seleção brasileira em sete copas do mundo como massagista. Chamavam-no "o homem das mãos de ouro".
Natasha está inconformada com o aparecimento da palavra "massoterapeuta" para designar massagistas.

Se alguém dissesse a Mário Américo que ele era um "massoterapeuta", talvez apanhasse.

Gandra é barbada 

Depois que foram conhecidas as opiniões do doutor Ives Gandra Filho sobre o papel das mulheres, o divórcio e o casamento de bípedes com quadrúpedes, ele se tornou uma barbada para uma cadeira na mais alta corte da Arábia Saudita.

Peña Nieto

A briga de Donald Trump com o México pode sair cara para quem der simpatia automática ao presidente Enrique Peña Nieto.

O doutor está no vértice de um regime corrupto (não é o único) e já foi apanhado com a mão na massa. Em 2014, uma equipe de jornalistas chefiada por Carmen Aristegui revelou que a mulher de Peña Nieto ganhara de um empreiteiro uma casa cinematográfica, avaliada em US$ 7,5 milhões.

Mexendo seus pauzinhos, poderosos mexicanos desempregaram Aristegui e outros dois colegas. (Ela continuou trabalhando na CNN.)

Em julho de 2016, Peña Nieto pediu desculpas ao povo mexicano pelo "erro" imobiliário. Levou dois anos para perceber.

Trumpistão

No dia da posse de Trump, sua secretária de Educação, a milionária Betsy DeVos, postou uma mensagem de 18 palavras. Cometeu dois erros de inglês e um de estilo.

MARCIA FORTES
29/01/2017  02h00
A diversidade unida na Marcha das Mulheres em Nova York

RESUMO Jornalista e galerista brasileira narra sua experiência na Marcha das Mulheres em Nova York, no sábado (21), um dia após a posse de Trump. Mais do que uma série de protestos feministas em diferentes cidades, o movimento foi capaz de reunir diversos grupos contra retrocessos ensaiados pelo novo presidente dos EUA.

"Show me what democracy looks like" (mostre-me o que é a democracia), entoavam dois meninos aparentando dez ou 11 anos, no seio da multidão na rua 42 em Nova York, em frente à estação Grand Central Terminal. "This is what democracy looks like!" (isto é a democracia), ecoavam as milhares de pessoas que os rodeavam naquele início da Marcha das Mulheres, no dia seguinte à posse de Donald Trump como presidente dos EUA. Mais de 400 mil pessoas caminharam ali, entoando canções e motes como "Love not hate makes America great" (amor, não ódio, torna a América grande).

Enquanto a passeata central de Washington era um mar rosa de vasta maioria feminina, em Manhattan a diversidade ganhou as ruas. Ali estavam muitas mulheres e muitos homens, pais e mães, filhos e filhas, crianças e adultos, jovens e velhos, casais gays, judeus e muçulmanos, presbiterianos e católicos, compondo uma rica aglomeração humana de todas as cores e raças. Isso é Nova York, a babel contemporânea que saiu para protestar contra a eleição de um conterrâneo que ironicamente não ecoa a variedade sociocultural de sua cidade, preferindo a ela uma retórica ufanista e populista.

Muitas mulheres usavam gorros orelhudos de tricô rosa (que imprimiram cor à passeata em Washington) distribuídos pela Planned Parenthood, associação que defende o uso de contraceptivos e o direito ao aborto. Ao estampar dizeres como "Vagina ataca de volta" e "Viva la Vulva", algumas faixas faziam acreditar que a manifestação era de fato sobre os direitos femininos vorazmente atacados por Trump (flagrado numa gravação em que se vangloria de forçar mulheres a fazer o que ele quer).

O presidente prometeu indicar para a Suprema Corte um opositor do direito ao aborto. Em resposta, cartazes pontificavam: "Faço o que eu quero com o meu corpo", "Os direitos das mulheres são os direitos civis da humanidade".

Grande parte das mensagens, no entanto, transcendia o tema feminista em busca de algo ainda maior –"Amor é justiça", "Não deixarei que medo e ódio me conduzam". "Role pra frente, e não pra trás", lia-se no encosto da cadeira de rodas de uma senhora.

O rapaz de feições árabes caminhava ao lado de um homem louro e empunhava o estandarte: "Orgulhoso de estar com meu marido". A senhora morena e latina exigia: "Respeta mi existencia o espera resistencia". Uma garotinha levava uma cartolina com a tocante inscrição "Don't deport my tía" (não deporte minha tia). Outra nos lembrava que "A vida dos negros importa", enquanto uma terceira apelava: "Acorde! A mudança climática é real". E alguém resumia a incredulidade geral: "Não acredito que ainda preciso lutar pelos nossos direitos básicos!".

minorias E pensar que todos esses discursos –que derivam de batalhas travadas ao longo dos últimos 50 anos nos EUA– não tinham até então nada que os alinhavasse... agora têm. São ramificações do politicamente correto portado pelas vozes de várias minorias. As minorias unidas transformaram-se numa única maioria que, não obstante as causas específicas nominadas, parecia dizer em uníssono: "Pare de pensar tanto em si mesmo".

O que se viu foi a ressonância do discurso de despedida do ex-presidente Obama: "Para nossa democracia funcionar do jeito que deve nesta nação cada vez mais diversa, cada um precisa atentar para o que diz Atticus Finch: 'Você nunca entende uma pessoa até considerar as coisas do ponto de vista dela, até entrar sob a pele dela e caminhar vestindo-a'. Para negros e outras minorias, isso significa ligar nossas batalhas pessoais por justiça aos desafios enfrentados por outras pessoas neste país. Não apenas o refugiado ou o imigrante ou o pobre camponês ou o americano transgênero, mas também o sujeito branco de meia-idade".

Obama enfatizou: "Para os nascidos nos EUA, significa lembrar-se de que os discursos estereotipados contra imigrantes de hoje já foram proferidos em relação a irlandeses, italianos e poloneses, que, dizia-se, iriam destruir o caráter fundamental da América. Mas, como visto, a América foi fortalecida pela presença desses recém-chegados".

Enquanto Obama cita Atticus Finch –o protagonista de "O Sol é para Todos", romance fundamental de Harper Lee que trata do preconceito racial–, Trump passa ao largo de referências literárias, cita Putin e incita o ódio ao imigrante ao planejar a construção de um muro na fronteira com o México.

Na passeata, um grupo de pessoas de meia-idade carregava a faixa "Construa escolas, não muros". Um cidadão negro rabiscou numa caixa do Fedex: "Sem ódio, sem muro". O mais emocionante era a atmosfera de paz. A manchete do "New York Times" na manhã seguinte classificou a passeata como "desafiadora, porém radiante". O clima era de afeto, não de cólera. Havia indignação, mas não exaltação. Em um cartaz, lia-se: "Sem revólveres, obrigada". Outro encapsulava o espírito da passeata: "Mais fortes juntos".

De repente, o sentimento funéreo e derrotista que me afligia desde antes no Brasil (e que fora agravado pelo resultado da eleição americana) transformou-se em alívio de estar ali, caminhando junto a meio milhão de pessoas em defesa de causas diversas, sem partir para a violência. No meio do mundaréu de gente, uma frase colorida se destacava: "O povo tem o poder de redimir o trabalho de idiotas".

O trajeto anunciado culminava na Trump Tower, na Quinta Avenida. Porém, a uma quadra de distância, policiais do Grupo de Reação Estratégica e voluntários do comitê organizador da passeata bloqueavam a passagem, informando que era necessário dissolvê-la ali mesmo. Uma fileira de policiais dobrava a esquina orientando calmamente as pessoas, que os seguiam serenas.

Penso no contraste entre os tumultuosos movimentos de direitos civis levados adiante em solo americano há décadas e o exercício democrático enraizado que se desenrolou naquele sábado. As batalhas travadas na formação da democracia americana viveram episódios decisivos em Nova York –os gays de Stonewall, o esfaqueamento de Martin Luther King–, essa cidade construída e habitada por imigrantes. Desta vez, as ruas foram tomadas pela determinação de defender uma variedade de direitos e escolhas ameaçados pela variedade de ataques de Trump, mas não pela determinação de atacar.

Penso em Gandhi e em sua resistência não violenta, na estratégia carismática de não odiar aquele que odeia, de não ser como ele.

Penso no novo filme de Martin Scorsese, "Silêncio", no qual o diretor questiona a imposição do cristianismo por jesuítas portugueses no Japão budista do século 17. O roteiro escapa da polarização entre mocinho e bandido, bom e mau, gerando uma ambiguidade maior no seio da qual todos parecem estar a um só tempo certos e errados. O longa encena um debate intelectual sobre diferentes visões de mundo.

Nos momentos finais, o intérprete japonês do inquisidor budista insiste com o padre jesuíta: "Ninguém deveria interferir no espírito de outro homem. Ajudar o próximo é o caminho de Buda e o caminho de Jesus também. Ambas as religiões são iguais nisso. Não é necessário sequestrar ninguém para um ou outro lado quando há tanto para compartilhar".

De volta à rua em Nova York, um cartaz avisava: "Lembre-se do futuro". Outro revelava inteligência refinada e complexa: "A dissidência é patriótica". Um axioma pelo qual se defende que o melhor país possível é aquele cujos cidadãos divergem uns dos outros, num ambiente de respeito mútuo.

O medo também compareceu: "Estou aqui porque estou assustada com meu país", lia-se nas costas de uma mulher. Mas o humor oferecia um contrapeso: "Trump has a tiny tower" (Trump tem uma torre pequenina). Assim como um lembrete que poderia ecoar para bem além das fronteiras americanas: "Caminhamos juntos".


MARCIA FORTES, 49, é galerista, editora e jornalista 



carlos heitor cony
29/01/2017  02h00

Mulheres e glória são conquistas problemáticas

RIO DE JANEIRO - Passou metade da vida atrás de mulheres. A outra metade desperdiçou em outros ofícios, inclusive o de não fazer nada. Mesmo assim, respondendo a enquete de uma revista, declarou-se feliz e garantiu que seria mais feliz ainda porque havia muitas coisas que nunca deveriam ter sido feitas; e as mulheres, umas pelas outras, davam para o gasto.

O perfil desse meu amigo pode definir metade da população masculina mundial. Mesmo assim, a única ocupação da qual se orgulhava e tirava proveito era andar atrás do mulherio disponível ou indisponível.

Napoleão Bonaparte, ao desfraldar suas bandeiras em Marengo (segundo historiadores sua maior vitória, superior à de Austerlitz), confessou ao general Ney que conquistar uma mulher era melhor e mais prazeroso que uma vitória num campo de batalha.

Confesso que é um bom desperdício, mas fico com a primeira opção. Tive um colega no CPOR, mineiro de Varginha, que, sem saber, repetia Napoleão: tudo que não fosse dedicado às mulheres era, não só um desperdício, mas perda de tempo e de energia.

Na verdade, as duas opções (mulher e glória) são conquistas problemáticas e, muitas vezes, inúteis. As mulheres traem, fazem exigências e dificilmente estão satisfeitas.

A glória é sempre relativa: os historiadores divergem a respeito. O próprio Napoleão, apesar de suas vitórias, foi chamado de carniceiro. E a glória, periodicamente, é discutida ou negada pela história e pelos próprios contemporâneos. Brutus matou César, e dom Pedro 1º, ao proclamar a independência do Brasil, teve uma diarreia e assim começou a escrever a nossa história num papel higiênico.

De minha parte não dou muita bola para a glória. Prefiro desperdiçar o meu tempo com coisas melhores, inclusive livros, charutos e mulheres.

sábado, 28 de janeiro de 2017



28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
LYA LUFT

O luxo do simples

Escutei na tevê essa frase tão óbvia e simples, que acabei achando um luxo: “Hoje em dia, a simplicidade é um luxo; e outro luxo é o tempo”. Postei no meu Face, muita gente marcou, pensa assim também. Fiquei elaborando isso com os botões que não uso: essa transformação para valorizar o simples – ainda que seja meio de mentirinha, porque em geral acaba sendo simples sofisticado – é na verdade uma coisa muito boa. Vira tranquilidade. 

Vira liberdade. É anticorreria, antiostentação, anti-ter-de-tanta-coisa. Não ter de obedecer a tantas regras, poder usar o aventuresco até na casa: cadeiras e copos desiguais de propósito, roupa descombinada, o estilo é o que agrada a cada um. Podermos viajar nas almofadas exóticas ou superdiscretas, tapete idem, folhagem enorme num grande vaso ou flor num copinho de cachaça, tudo ali do jardim ou do terraço, livro espalhado ou mal empilhado. 

Abrir a cortina e a manhã inaugurar a vida com sol, azul, e até o luxo de um leve nevoeiro baixo. E as amizades, ah, as amizades sem inveja nem ciumeira nem cobrança, nem ressentimento, quando dá a gente se encontra, inventa um happy hour, ou passa meses sem se ver mas continua se amando igual.

Quanto mais o mundo se complica com horários, compromissos, contas, impostos, serviços medonhos e política nauseante, fora as novas descobertas de milhões e milhões desviados enquanto as crianças não têm comida nem escola, e a bandidagem se diverte às custas da polícia e comanda o país, mais nós procuramos a paz. 

Uma certa paz, a paz possível. Ansiar menos pelos luxos antigos que exigiam uma dinheirama – não querer mais impressionar, mas nos sentirmos bem, de jeito leve. Vamos ter tempo de viver um pouco mais, não em anos, mas em felicidade, sem tantas exigências.

De momento, faço uma tradução de filosofia, sofisticada, mas tudo ao meu redor é simples, portanto é um luxo esse trabalho intenso que há tempos não fazia. Sem complicação. Sem resmungar. Até uma das funcionárias comentou: “A senhora está de novo muito tempo trancada no escritório”, e estou. Mas contente, porque se a crise exige mais trabalho, por outro lado foi minha profissão tantas décadas, e reencontro, nela, velhas alegrias.

Quando o difícil fica cada vez mais difícil na vida, podemos ser mais simples até no café da manhã: cada um prepara o que quer, depois bandejinha no colo cada um na sua poltrona, conversando, comentando notícias (haja estômago) ou olhando quietos as árvores com seu jogo quase sobrenatural de luzes e verdes. Porque para se amar, e estar feliz junto, não é preciso nenhuma aflição.

Isso enche meu coração: o luxo da simplicidade. Volta e meia um filho, filha, neto ou neta posta uma mensagem ou foto do seu iPhone pro meu, e a saudade já encolhe um pouco, pois no cyberspace estamos juntos. Nada daquele compromisso grave de tempos em que era dever visitar a avó, uma senhora de cabelo branco e vestido preto, a quem era preciso tratar com cerimônia – quando quem sabe ela estaria doida por uma brincadeira, uma risada, um encontro alegre?

Um luxo que dá um pouquinho de trabalho: desenrolar o fio cheio de nós das antigas complicações.



28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
MARTHA MEDEIROS

Praia é ponto de encontro sem hora fixa pra chegar, sem convite impresso, sem répondez s’il-vou-plait

Qual é a sua praia?


Quando penso nos melhores momentos da minha infância, a memória me transporta para Torres. Foi lá que, menina, peguei muito jacaré com uma planonda de isopor, fiz castelos de areia, pesquei peixinhos que eram colocados em baldes, participei de piqueniques, deslizei pelas dunas, joguei frescobol. Dia de chuva era um desassossego, não havia gibi que fizesse o tempo passar, mas não chovia tanto naquela época: quase sempre o sol dava as caras desde o início de dezembro até o final de fevereiro, um esbanjamento de dias bons. Eu voltava das férias parecendo um pedaço de carvão, só apareciam o branco do olho e os dentes.

Hoje não pesco peixinhos nem deixo a pele desprotegida, mas é ainda na praia que sou mais eu. A proximidade com o mar me põe no meu devido lugar: não importa o que eu diga, faça, escreva – sou um grão de areia. É o que somos todos, o tempo inteiro, onde quer que estejamos: grãos de areia. Meu ego não se abala, inclusive concorda.

Falando em areia: há quem acredite que a praia ficaria mais perfeita sem ela. Misericórdia àqueles que não lembram como é relaxante sentar numa cadeirinha embaixo do guarda-sol e fazer curtos caminhos com o calcanhar, para frente e para trás, tendo uma caipirinha gelada em mãos.

Pode-se ter em mãos um livro também. Pois é, me sinto obrigada a incentivar a leitura, mas sendo perigosamente sincera: praia não é lugar para ler, a não ser que você esteja sozinha numa enseada esquecida por Deus. Aí, até recomenda-se, para dispersar os maus pensamentos. Mas em dia ensolarado e com gente em volta, não consigo prestar atenção numa única linha. Leio, leio, leio à beira-mar, e quando volto para casa releio, releio e releio as mesmas páginas.

Praia é ponto de encontro sem hora fixa pra chegar, sem convite impresso, sem répondez s’il-vou-plait. Balada aberta ao público, sem paredes, sem holofotes, o sorriso valendo como ingresso. Boca livre.

Praia é pra quem está de bem com a vida, embaixada internacional da liberdade, pátria do chinelo de dedo, passarela do biquíni, congresso mundial da tatuagem. O Brasil tem 8.000km de orla pra ninguém morrer de tédio e muito menos de rabugice.

Inferno emocional? Até isso praia minimiza. Quem já não deu uma choradinha em frente ao mar, num final de tarde, processando uma ardente dor-de-cotovelo? Você, eu, todo mundo, diante de ondas que avisavam: nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia. Para o bem e para o mal, um mantra.

As minhas, além de Torres: Bombinhas, Quatro Ilhas, Praia do Rosa e Ipanema. Me viram crescer, por dentro e por fora. Não há quem não tenha ao menos uma como cenário da própria história.


28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
CARPINEJAR

Irmãozinho chegando


Depois do terrorismo familiar, estamos preparados para qualquer batalha. Quem é filho único não tem a mesma doutrinação militar.

Morar com irmãos exige resistência emocional. É fundamental suportar as oscilações dramáticas de uma vida coletiva, o que corresponde a errar, contornar o orgulho e pedir desculpa ou a de não assumir a falha, colocar a culpa no outro e fugir do castigo. São várias opções em cada cena, todas complicadas, com o diabinho e o anjo da guarda cochichando nas orelhas.

Além dos tradicionais e declarados bons sentimentos, existe o ciúme, a inveja e o medo, sentimentos que partem do insano ato de dividir brinquedos, a casa e os próprios pais.

Recordo a infância de Luiz Antonio. Ele era o segundo filho, sob a influência do conselho e da proteção do mais velho. A mãe estava grávida do terceiro rebento. A escadinha ganharia mais um degrau.

Luiz partilhava o quarto com o mano maior, distribuído em duas camas e um único armário. Não é que o primogênito lhe chamou para conversar sério.

- Olha, você notou que vamos receber mais uma pessoinha no nosso apartamento? Não terá espaço para você e será obrigado a ir embora.

O menino de quatro anos levou a sério a brincadeira. A ideia do orfanato da rua pesou em seus ombros. Enfrentou os meses finais da gestação de modo casmurro e lacônico. Mudou o seu comportamento na escolinha e na mesa. Mal falava. Mal ria. Mal fazia alguma pergunta com receio da clara resposta de despejo. O silêncio cobriu o seu semblante e não duvido que não tenha surgido a sua primeira ruga precoce.

Quando os pais foram para o hospital, Luiz tratou de fazer uma malinha. Botou dentro dela o pijama, o uniforme da escola, um par de kichute, as bolitas e o pião. Estava conformado com a partida.

Foi a mãe chegar com o bebê no colo que ele pediu licença, desculpou-se pela má hora e se despediu.

- Tchau, gente, amo vocês! - Que foi, filho? - Não há mais cantinho para mim, e o nenê é pequeno demais para dormir no chão. - Não, Luizinho, você fica e a gente arruma um jeito.

O pai resolveu a situação chorosa brincando, com espírito leve, acostumado a comandar a diplomacia dos meninos quando disputavam a bola e os talheres.

Já o irmão mais velho, malandro, pressentindo que sobraria para ele, ainda deu uma de herói e foi elogiado pela generosidade durante muito tempo:

- Pode ficar com a minha cama! Ninguém nunca soube a verdadeira história.



28 de janeiro de 2017 | N° 18754
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

O ABANDONO


O Ezequiel veio da emergência com o diagnóstico de pneumotórax, o que eliminou todas as burocracias e os impeditivos para a admissão imediata no hospital. Tinha o olhar triste e os ombros pesados de abandono.

Quando perguntado o seu sobrenome, houve o primeiro desencontro: o Rosling anunciado em um quase sussurro não coincidia com o documento amassado que carregava na carteira envolto num plástico sujo. Mas ninguém se importou com isso, porque, afinal, era só mais um brasileiro pobre em busca desesperada por um pouco de ar, e a prioridade era tentar expandir logo o pulmão direito e recuperar o fôlego. 

Os exames que se seguiram foram uma sucessão de desgraças. O pulmão não reexpandia, encarcerado que estava por um grande tumor, obra de um tabagismo de mais de 45 anos, e as tomografias detectaram implantes da doença no cérebro, no fígado e nas costelas. Menos de duas semanas depois, o Ezequiel morreu na enfermaria, rodeado por três desconhecidos cuja única afinidade era a miséria, no seu caso, agravada pelo abandono. 

Ninguém lembrava dele ter recebido alguma visita nesses vários dias em que os parceiros de quarto foram sendo renovados. Tampouco havia no prontuário alguma referência à família, e assim, a causa da solidão, sempre de construção rude e bilateral, no caso dele será arquivada como presumida.

Quatro dias depois da morte, a assistente social comentou que o cadáver continuava no necrotério e que nenhum familiar tinha respondido aos apelos para o resgate do corpo. Uma das muitas histórias de abandono que ocorrem com deprimente frequência nessa população que, na descrição dolorosamente verdadeira de JG de Araújo Jorge, morre tanto todos os dias, que quando finalmente chega o dia da morte, já não tem mais o que morrer. Não sei que fim deram ao que sobrou do Ezequiel. A morte dos zumbis não provoca comoção.

Na virada do ano, com o deslocamento maciço da população em direção ao litoral, as rádios colocam repórteres em pontos estratégicos para orientar os motoristas sobre como enfrentar a sobrecarga nas nossas estradas, onde é comum o relato de congestionamentos gigantescos, muitas vezes agravados pela insanidade dos apressados sem causa. A contagem do número de veículos por minuto passando por pontos determinados, a dimensão em quilômetros de retenção de veículos e a sugestão de horários mais propícios para o deslocamento em ambos os sentidos são de grande utilidade pública.

No meio desse noticiário, chamou a atenção uma advertência incomum. Os motoristas deviam ter redobrada atenção numa curva fechada para a esquerda, no quilômetro 5 da Estrada do Mar, porque havia um animal morto na pista da direita. Um cão de pelagem escura havia sido atropelado na noite anterior, e a remoção do corpo ainda aguardava a iniciativa das autoridades competentes. 

E então, o curioso da notícia, o cadáver tinha companhia: um cão branco, da mesma linhagem vira-lata, mantinha-se estendido ao lado do corpo, com a cabeça entre as patas dianteiras, velando o companheiro. As muitas tentativas dos passantes de removê-lo do local tinham fracassado.

Como se vê, nem todas as espécies animais abandonam seus parceiros.



28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
ANTONIO PRATA

RG E CPF DO ASSASSINO, POR FAVOR

Quinta-feira, 5 de janeiro, 19h27min, passando ao lado do estádio do Pacaembu, ouço uns gritos: do outro lado da rua, diante de um predinho, um homem e uma mulher se estapeiam. Um menino de uns oito anos, assustado, tenta separá-los. O homem está sem camisa e parece bêbado. Não consigo entender quem bate e quem apanha, pois se engalfinham num clinch e, arrastando o menino junto, somem porta adentro. 

A porta é de ferro, com retângulos compridos de vidro opaco, não dá pra ver lá dentro. Parece o depósito ou uma pequena garagem. Os gritos continuam, juntam-se a eles barulhos de coisas caindo. Ou seriam pessoas? Abre-se um basculante na lateral da porta, surge o rosto do menino, “Socorro! Socorro!”, mas alguém o puxa pra dentro. Fecha-se o basculante.

Penso em tocar a campainha, em arrombar a porta, mas me acovardo. Disco 190. Atendem rápido. Disparo pra atendente: “Oi, tem um casal se batendo e uma criança gritando ‘socorro’ na Rua Capivari, número xxx, bem na frente do portão 23 do estádio do Pacaembu”. Depois de alguns segundos: “Esse endereço é Consolação?”. “Não, é Pacaembu, Capivari, número xxx, bem na frente do portão 23 do estádio.” “O senhor teria uma rua de referência?” “Rua? Eu tô dando um estádio de referência!”

Algo atirado de dentro do prédio faz um buraco no vidro. Não ouço mais os gritos. “Eu preciso de uma rua de referência.” “Tá, Doutor Arnaldo. A Capivari é uma das ruas laterais do Pacaembu! Rua Capivari, número xxx!” Mais uns segundos. Os gritos voltam. Somem. Ouço barulhos. Não ouço a criança. “O senhor poderia me passar o CEP?” “Cara, eu tô vendo um casal se espancar e uma criança gritando por socorro, eu tô te dando a rua e o número e falando que é na frente do portão 23 do Pacaembu e você quer o CEP? A polícia não tem Google? Não tem Waze? Vai morrer alguém aqui! Vocês que têm que achar o CEP!”

A atendente, no entanto, tem tarefas mais importantes do que salvar a vida de uma criança de oito anos, de uma mulher ou de um homem, ela tem que defender o seu orgulho ferido. “Olha, se o senhor estivesse tão aflito assim o senhor descobria esse CEP pra mim.”

Desligo e disco 190 de novo. Falo a mesma coisa. O novo atendente tampouco parece ter ouvido falar nesse tal estádio do Pacaembu. Pergunta se a rua fica na Consolação. Dessa vez, digo que pode ser, que o Pacaembu é perto da Consolação, difícil existirem duas ruas Capivari tão próximas. Ele diz que vão mandar uma viatura. Chego perto da porta. Penso em tocar a campainha, em arrombar, mas me acovardo. Grito lá pra dentro “A polícia tá chegando! A polícia tá vindo!” e sigo pra casa.

Alguns quarteirões adiante, passa uma viatura. Eu aceno. Eles param. Explico a situação, me dizem que a ocorrência já foi atendida. Aliviado, me esqueço de perguntar o que aconteceu, se alguém foi preso, se alguém se machucou.

Em casa, meia hora depois, meu telefone toca. “Boa noite, o senhor ligou pra polícia militar relatando uma ocorrência na Rua Capivari, número xxz?” “Número xxz?! Não! Número xxx! Eu disse várias vezes o número!” Será que eles foram no número errado? Será que ninguém ajudou aquele menino? “Hm”, resmunga o atendente, não muito preocupado. “Certo. Escuta, essa Rua Capivari: por acaso fica em Itaquera?”




28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
DAVID COIMBRA

A arte de tirar a sesta

Os espanhóis fazem a sesta. E fazem sem remorso. Das duas às cinco da tarde, boa parte do país simplesmente dorme.

É admirável. Sempre quis cultivar o hábito da sesta, mas como lidar com o sentimento de culpa? Acho que foi o maldito sistema capitalista que inoculou na minha mente a irreprimível sensação de que a hora depois do almoço é para produzir. Produção, produção, produção. Bens de consumo, é isso que vocês querem, não é? A mais valia. O negócio de vocês é a mais valia!

Por causa dessa ardilosa filosofia calvinista, passei a vida reprimindo minha vontade de fazer a sesta. Mesmo assim, o corpo reivindica. O corpo não está nem aí para a ética burguesa.

Houve uma época, lá pelos 16 anos de idade, em que trabalhei no departamento de cobrança da J.H. Santos, uma grande loja de departamentos que havia em Porto Alegre. Eu não cobrava nada de ninguém, meu serviço era interno, de escritório.

A sede ficava ali na Otávio Rocha, em frente à Renner. Começava o trabalho bem cedo, pouco depois das sete da madrugada. Tinha de chegar, bater o ponto no oitavo andar e depois descer para a minha sala. Se não batesse o ponto no horário, descontavam o dia. Quer dizer: trabalhava de graça.

Era terrível, porque morava lá no IAPI. Então, precisava acordar cedo, praticamente ainda noite, uma dor. Resultado: depois do almoço, dava-me um sono, mas um SONO. Era invencível. Não havia nada que resolvesse. Tomava café e dormia com a xícara na mão, ia lavar o rosto e dormia no banheiro.

Eles me davam uns formulários para preencher, uma folha de papel com uns quadradinhos. Eu devia escrever uns números naqueles quadradinhos. Cristo! Os quadradinhos e os números começavam a se embolar na minha visão, as minhas pálpebras pesavam e a cabeça começava a se transformar numa bola de boliche. Estava quase afundando o queixo no peito e vinha o chefe de lá e desferia o maior tapa na mesa, PLÁ!

– Acorda, rapaz!

Eu levava o maior susto, pedia desculpas e seguia preenchendo os quadradinhos.

Lembro que, na época, li uma reportagem sobre a tradição da sesta na Espanha. Contava que muitas empresas mantinham caminhas aconchegantes em uma sala escura para os funcionários descansarem depois do almoço. Suspirei. A velha e boa Espanha.

O general Geisel fazia a sesta. Depois do almoço, ele subia para seus aposentos particulares no Alvorada, tirava o terno e a gravata, entrava em um pijama e dormia por exatos 30 minutos, ao cabo dos quais se levantava, vestia-se de presidente e ia despachar.

Pelé, no intervalo dos jogos, estendia-se no banco duro do vestiário e cochilava por 15 minutos. Em seguida, recomposto, voltava a campo e marcava mais dois gols.

E Churchill, que era de dormir pouco à noite, mesmo durante os ardores da II Guerra Mundial parava tudo após o almoço, repousava por meia hora e retornava à lida de charuto empinado, disposto a dizimar nazistas.

Já o meu avô, o sapateiro Walter, reservava 15 minutos para si mesmo depois da uma da tarde. Ele fechava a sapataria e ia para os fundos. Apagava as luzes, recostava-se em uma espreguiçadeira, ligava o rádio no Sala de Redação e adormecia ouvindo o Foguinho discutir com o Cid.

Pensando em tudo isso, convenci a mim mesmo de que devia vencer meus preconceitos e tentar praticar a sesta. Afinal, tenho repetido meus 16 anos e acordo para trabalhar quando ainda é noite.

Certo.

No primeiro dia, interrompi o texto bem na palavra “corajosamente”, tomei de uma colcha macia como uma carícia de mãe e fui para o quarto. Fechei os olhos. Senti o torpor dominar meu corpo. Afrouxei a resistência. Mas, depois de cinco minutos, sentei na cama gritando:

– PRODUÇÃO! PRODUÇÃO!

Aqueles cinco minutos me fizeram mal e passei o resto do dia me sentindo estranho.

Não repeti a experiência durante toda a semana, mas, dias atrás, atravessei a manhã escrevendo e preparando um feijão com linguiça, temperado apenas com alho e sal. Imodestamente, afirmo que produzi um caldo cremoso, com sabor de comida da avó. Em 20 minutos, fiz um arroz soltinho, aliás ótimo arroz, vindo da Tailândia. Cortei um tomate em fatias da espessura de uma moeda de um real e temperei com sal, limão e azeite de oliva. Acompanhei o repasto de uma, uma única taça de tinto da Califórnia. Saí da mesa suspirando, levando no rosto meio sorriso e meio olhar.

Então, sem nada premeditar, sem planejamento e sem solenidade, me estiquei no sofá da sala e, em um minuto, adormeci feito um gato no sol. Depois de um quarto de hora, despertei, sentindo-me muito, muito bem. Sentindo-me um espanhol. Voltei para o computador sabendo-me renovado. Olhei para a tela. Ataquei o texto, murmurando suavemente:

– Produção... Produção...



28 de janeiro de 2017 | N° 18754 
L.F. VERISSIMO

Prioridades

Futebol de praia. Sete para cada lado, perdedores pagam a cerveja. Todos amigos, tudo em paz. Mas o homem não teria chegado aonde chegou, na sua trajetória sobre a Terra, se não fosse um animal orgulhoso. Com a possível exceção do pavão, nenhum outro animal se ama como o homem. E aconteceu o seguinte: o Américo passou a bola pelo meio das pernas do Célio. Não uma, mas duas vezes.

Nenhum amor-próprio resiste a uma bola pelo meio das pernas. Que dirá duas. O homem aprendeu a conviver com as agruras da existência preservando o seu amor-próprio. Insucesso nos negócios, frustrações privadas e públicas – tudo faz parte dos desafios da vida moderna que o homem enfrenta com seu orgulho intacto, confiante em que os superará. 

Ou pelo menos que saberá explicá-los. É exatamente o orgulho que faz o homem vencer os grandes infortúnios e as pequenas indignidades e seguir em frente. Tudo pode ser absorvido ou justificado. Menos duas bolas pelo meio das pernas no mesmo jogo. Ainda mais as pernas de um brasileiro.

O Célio reclamou para o Américo:

– Não faz mais isso. – Qual é, cara?

– Pelo meio das pernas, não. – É brincadeira!

– Faz isso de novo e eu vou na sua pleura.

O Célio não sabia exatamente onde ficava a pleura, mas era onde bateria se o Américo passasse a bola pelo meio das suas pernas outra vez.

É preciso saber que os dois trabalhavam na mesma firma e o Célio era o superior do Américo. Poderia botar o Américo na rua. Pior do que um pontapé na pleura.

– Está bom, está bom – disse o Américo. – Não faço mais.

E foi jogar do outro lado, onde seu marcador seria, de preferência, um hierarquicamente inferior que ele pudesse driblar à vontade.

Mas aconteceu de o Américo ser lançado num contra-ataque pelo meio e ver pela frente, como último defensor do adversário, o Célio. E aqui entra outra característica do homem brasileiro, o seu peculiar senso de prioridades. De certa forma, um corolário ao seu pânico congênito de levar bolas por entre as pernas. E também uma questão de amor-próprio. Pois, se todos os homens se amam, o homem brasileiro ama algumas coisas em si acima de todas as outras.

Não se diga que Américo apenas seguiu seu instinto, sem pensar. Pensou muito, enquanto corria com a bola dominada na direção do Célio. Pensou no seu casamento, que teria de ser adiado se ele perdesse o emprego. Pensou nas vantagens para o seu bem-estar e o seu futuro se ele perdesse a bola para o Célio. 

E o Américo enfiou a bola entre as pernas do Célio e foi buscá-la lá na frente, para fazer um gol espetacular, escapando do pontapé que Célio tentava lhe dar por trás. O que é mais importante? Diga lá, brasileiro: a vida, o emprego, o salário garantido no fim do mês, o casamento, ou um gol perfeito? Um gol perfeito, claro.

Mas o Américo, afinal, não foi despedido. Célio não apareceu na firma na segunda-feira. Não foi mais visto. Levar três bolas pelo meio das pernas num único jogo é, parece, uma espécie de limite extraoficial da humilhação. Dizem que ele emigrou.