sábado, 31 de março de 2018


31 DE MARÇO DE 2018
CARPINEJAR

Quando o ex ou a ex começa a namorar



Se vê que o ex ou a ex está feliz com alguém: deixe quieto. Não atrapalhe. Engula a aspirina do orgulho com copo dágua. O novo namorado ou namorada é um ferrolho. Lembra da brincadeira de polícia-ladrão da escola? Não é para continuar no encalço. Suspenda a perseguição dos pensamentos. Evite as canções de fossa. Mude de playlist.

Nenhuma alegria alheia deve servir de ameaça. Não está competindo com ninguém, ainda mais com irônico futuro relacionamento de uma história anterior. Não vale a pena ser insubstituível se pode ser inteiro sozinho. Desapegar-se é a única despedida sincera.

Não seja avarento com cismas e impasses antigos. Prescreveu a dívida assim que o ex ou a ex começa a namorar. Desative a vingança. Não mande mensagens e indiretas. Não cerceie com likes. Não teste o seu poder e sua influência por vaidade. Abandone a guarita de vigilância do Facebook.

Desaparecer é elegância. Desaparecer é grandeza. Desaparecer é caráter. Desaparecer é chique. Não alimente ressentimentos com grupo em comum de amigos. Não plante insinuações. Não agoure que a infelicidade volta para onde partiu.

As crises não foram resolvidas dentro da relação, não é de fora que enxergará uma solução. Ciúme é sentimento interno, inveja é sentimento externo. A inveja continuará desastrosamente a sina do ciúme, sem efeito algum.

Siga adiante. Tem lacunas que não têm mesmo conserto, incompreensões que serão silêncios. O que resta é a serenidade de desistir, em vez de remendos e costuras inúteis. O desespero apenas cria chantagens e distorções - não é conselheiro nem fiador.

Na hipótese de achar que o outro não é merecedor de paz, pense que a recente companhia não tem nada a ver com o inferno de vocês. Não envolva gente inocente num amor destruído. Pode machucar e ferir de modo desnecessário.

Pare de stalkear e comparar, pare a mandinga e a torcida macabra. Olhar o passado só traz torcicolo. Fixar-se no passado só gera cãibra.

CARPINEJAR

31 DE MARÇO DE 2018
CLAUDIA TAJES

CONTRASTES


São poucos, mas existem. Para alguns gatos pingados que conheço, bem que gostaria de dizer, olhando nos olhos, de cabeça erguida e diante de um bocado de testemunhas: você é uma pessoa horrível.

Se é que o ministro Barroso não chegou com aquele texto decorado de casa, como aventou um amigo, que capacidade ímpar de ofender com classe o excelentíssimo possui. Que bom uso da língua para um propósito considerado pouco nobre. Nos ambientes que frequento, nas - felizmente - raras vezes em que se armou um barraco, os xingamentos foram muito diferentes.

Vai te aquilo, filho daquilo. Ouvindo o ministro Barroso, a gente percebe que palavras bonitas com verbos bem conjugados ofendem muito mais do que um vulgar "vai tomar naquilo".

Mistura de mal com atraso. Pitadas de psicopatia. Bílis, ódio, mau sentimento, mal secreto.

Vossa Excelência é uma desonra.

Também tive meu dia de ministro Barroso em outra vida, na adolescência, quando o pai sempre rude de uma amiga rica - nós, os remediados, sempre tínhamos uma colega de aula rica que convidava para a piscina em sua casa - recomendou para mim e outro amigo, quando estávamos de saída: levem só o que é de vocês. Lembro direitinho de me subir o sangue. Com a verve digna de um ministro, respondi:

- A grosseria é apenas mais uma das desqualificações do seu caráter.

Mais tarde, contando o acontecido para meus pais, não fui compreendida. Devia mandar esse mal-educado se %*&+@+, exaltou-se meu pai. Devia chamar o desgraçado de %*&+@, disse minha mãe.

Tivessem eles estimulado minha finesse para ofender, quem sabe eu não estaria agora no Supremo Tribunal Federal, com auxílio-moradia, demais benesses do cargo e nada dos perrengues de hoje. Ah, as oportunidades perdidas.

Ipanema, cinco da tarde, 36 graus nos termômetros de rua. Na loja, botas que sobem pela perna até muito acima do joelho. Do lado de lá da avenida, a praia lotada como se fosse domingo.

O vestido que custa o preço de um carro popular, todo trabalhado nas peles, chama a atenção da senhora que caminha de maiô pela calçada.

Na vitrine decorada com fotos dos alpes nevados, o manequim entrouxado se equilibra em um esqui meio torto. Meninas e meninos com cabelos molhados passam segurando suas pranchas de surfe.

Duas amigas comentam: esse casaco é maravilhoso, mas só viajando para algum lugar muito frio para usar. Na loja ao lado, o casal de algum país nórdico compra pares e mais pares de chinelos antes de voltar para suas temperaturas abaixo de zero.

A coleção Outono-Inverno já chegou no Rio de Janeiro. Nem que seja para a gente apreciar as vitrines suando na calçada.

Vai parecer jabá, mas é utilidade pública. Da última vez em que usei o pacote de dados da operadora em viagem ao Exterior, a conta foi uma mistura de mal com atraso e pitadas de psicopatia. Daí apareceu um tal de chip que a gente compra antes de viajar, coloca no celular e fica acessando e-mail, usando whatsapp e entrando nas redes todas sem limite - e sem tomar um tufo depois. O meu comprei na Casa de Turismo e valeu muito. Ou melhor: valeu deveras.

CLAUDIA TAJES



31 DE MARÇO DE 2018
LYA LUFT

Uma gorda amada

O nome era Meg, mas nós a chamávamos de Gorda. Pela própria raça, tendia a ser roliça. Era mansa, preguiçosa, carinhosa, sempre atrás de mim pela casa. Deitava-se invariavelmente do meu lado esquerdo quando eu ia para o computador. Na sala, à direita da minha poltrona, onde eu podia fazer-lhe carinho e conversar com ela. Quando a comprei, há uns nove anos, era minúscula, com aquela carinha comovente de pug, olhos grandes, focinho achatado, rabinho enroscado. Com o tempo, cresceu mais do que o esperado, ficou difícil carregar no colo.

Quando tinha uns quatro anos, comprei-lhe uma irmã: Melanie, a spitz, ou lulu-da-pomerânia, uma raposinha mignon que se aninhou no meu pescoço quando a peguei na pet, e me seduziu imediatamente, incondicionalmente. Era em tudo diferente da Gorda: focinho fino, olhos de gazela. Melanie é uma raposinha que finge ser um cachorro, que pensa que é gente. 

Eram uma dupla engraçada, mas muito amigas: instalavam-se lado a lado na poltrona vermelha da sala, às vezes Melanie atormentava a pug com suas brincadeiras, puxando-lhe orelhas e rabo, ou acabavam dando suas corridinhas pela casa. Meg era a minha gorda melancólica, com aquele ar enternecedor da sua raça; Melanie, uma pluma de pelos longos sempre querendo colo.

No último ano, a minha Gorda amada começou a ter sérios problemas de saúde: respiração difícil, já não conseguia subir na poltrona vermelha, alergias fortes e resistentes a quase todos os muitos remédios, problemas em um ouvido, que por fim levaram a uma cirurgia delicada e longa. Era inevitável: mais de um veterinário consultado, melhor pet, melhor clínica, mas meu coração de mãe estava inquieto. Passou alguns dias numa excelente clínica, onde a gente a visitava. 

Todos estavam otimistas, a Gorda acabou voltando para casa, sacudindo aquele seu improvável rabinho enrolado. Mas não era mais a mesma. Muito cansada, pouca fome (antes, devorava o que lhe déssemos), sem vontade de brincar. Queria ficar perto da gente. Dormia, às vezes, no tapete junto da minha cama, cabeça sobre minhas Havaianas. Nós, preocupados e impotentes.

No sábado à noite, parecia mais cansada do que de costume. Quando fui ao seu quarto na manhã de domingo, meu peito gelou: não conseguia levantar mais. Tomei-a nos braços, ainda pesada, chamei socorro, voltou para a clínica, de onde seguidamente ligavam com notícias de que estava estável, no soro, e ficaria tudo bem.

Na noite desse mesmo domingo, Melanie, a raposinha, correu duas ou três vezes ao quarto da irmã e voltou nos encarando com seu focinhinho atento. Queria nos dizer alguma coisa, ela está sempre dizendo coisas. Na manhã seguinte, o telefonema da veterinária. Nem precisou dizer: "A Gorda morreu". Morreu de madrugada, parada cardíaca, tudo rápido, sem drama nem alarido, do jeito que sempre foi: mansa, quieta. Não sei se existe um céu de cachorros, de bichos, mas algo daquela sua energia bondosa continua por aí e pela casa. Vai ser cremada, vamos enterrar a urninha em algum lugar bucólico.

São muito humanos esses bichos de estimação criados conosco. Talvez alguns de nós devêssemos nos tornar mais caninos: sem tanta raiva e rancor, tanto conflito e neurose, mas com o amor incondicional e a paz que eles, os nossos pets, nos trazem.

LYA LUFT


31 DE MARÇO DE 2018
MARTHA MEDEIROS

Universo familiar


Recentemente, dois espetáculos levaram pais e filhos para o mesmo palco. Começando por Caetano Veloso, que tem se apresentado pelo Brasil com os seus garotos Moreno, Zeca e Tom num belo show que não tive a sorte de ver ao vivo, só através de pequenos vídeos postados nas redes sociais. Mas a Casa Ramil eu assisti.

Vitor Ramil e seus irmãos Kleiton e Kledir se apresentam numa espécie de roda de samba (mas que comporta milongas e outros gêneros) com seus filhos Ian e João e os sobrinhos Thiago e Gutcha - os sete como se estivessem na sala da casa do Laranjal, em Pelotas, onde nasceram e se criaram. Trocam conversa fiada em frente à plateia e tocam, afinados, canções de todas as épocas: desde Almôndegas até as composições dos mais jovens do clã. Experiência e experimentalismo juntos. Comovente.

Minhas avós, nos anos 30, não trabalhavam fora, não tinham acesso à pílula anticoncepcional, não tinham escolha a não ser fundar uma família pra cuidar: tiveram quatro filhos cada uma. Ou seja, tanto meu pai quanto minha mãe tiveram três irmãos e uma vivência rica em temperamentos a conciliar. Então, um dia eles se conheceram, casaram em 1960 e tiveram apenas dois filhos, que quando adultos também tiveram dois, cada um. A maioria das minhas amigas, idem, tem dois filhos. Algumas, apenas um; outras, nenhum. As pessoas passaram a ter mais o que fazer, e assim o universo familiar foi perdendo o formato de tribo e resumindo-se a uns gatos pingados.

Então, o que se vê no palco da Casa Ramil, além de um esbanjamento de talento musical, é o resgate de algo que não existe mais: o muito. Muitas histórias de vida abrindo-se para a renovação, muito passado em comum e muito futuro particular, muitas diferenças e semelhanças sendo administradas para o bem de uma convivência que nunca é fácil, muitas mulheres e muitos homens, muitos sobrinhos e netos, muitos cabelos, muitos estilos, muito ensinamento de pai pra filho e muito questionamento de filho pra pai.

Muitos sobrenomes iguais, muitos agregados somados à família nuclear, muito afeto segurando os desentendimentos, muita gente trabalhando pra coisa não desandar, muitos instrumentos pra cada um se manifestar, muitos endereços com uma mesma casa da infância pra lembrar, sinas diversas regidas pelo mesmo DNA. A potência da quantidade, do grupo, da massa. Muitos compondo um todo poderoso - deus virando parente, no meio deles, sem se fazer notar.

Casa Ramil é uma missa. É um banquete. É um réquiem que homenageia os familiões que estão desaparecendo e dando lugar às familinhas enxugadas por orçamentos curtos e lares apertados.

Casa Ramil é concentração antes do jogo. E é também o jogo jogado. E, por fim, é a celebração da vitória - eles vencem de 7 x 1. Nosso gol de honra é poder assistir a esse olé tão de perto.

Dia 5, quinta, às 19h, na Saraiva do Moinhos Shopping, estarei lançando meu novo livro de crônicas, Quem Diria que Viver Ia Dar Nisso. Minha família é pequena, então conto com vocês ; )

MARTHA MEDEIROS

Não existe alma gêmea

Eu sei que você quer que exista. Ficaria muito mais bonito eu fazer um texto bonito aqui, dizendo que existe alma gêmea, que em algum lugar a pessoa certa está te esperando. Uma pessoa que seja amor à primeira vista e que seja o preenchimento de todo o vazio emocional que você sempre sentiu. Uma pessoa que te complete e que faça isso de forma natural, não forçada, meio mágica. Essa pessoa não existe.

Vou dizer o que existe. Existe você bem e feliz e tão radiante que várias pessoas estão interessadas em você. Existe um ou outro hormônio, uma ou outra substância que funciona como mensageiro fisiológico, existe coincidência de encontros, cheiros e conversas que te deixam ainda mais feliz e confiante. De vez em quando, acontece. Mas não existe alma gêmea.

Porque nossa alma gêmea um dia acorda com cabelo desarrumado e um bafo terrível. Você descobre que a sua alma gêmea odeia sua série favorita, não gosta de viajar e tem nojo de sushi. E como pode ser sua alma gêmea se não gosta de voz e violão em bar? E você começa a pensar que talvez aquela ali não seja sua alma gêmea. Meu deus, minha alma gêmea está em algum lugar e eu aqui, com esse entulho!

Mas não existe. As almas se tornam gêmeas. Elas não nascem assim. Você vai abrindo mão de umas coisas, e a alma da outra pessoa abre mão de outras. Um aprende a comer comida japonesa, outro começa a simpatizar com música ao vivo. Um começa a acordar cedo pra tomar café da manhã junto, outro aguenta até meia-noite pra assistir filme abraçado. 

Um vai lendo os mesmos livros do outro. Um vai concordando com aquilo que você disse outro dia sobre aquela coisa que eu discordei na época. Um vai ficando meio parecido com o outro. Um vai pegando coisa do outro, outro vai pegando coisa do um. Tem vezes que dói um pouquinho, mas as almas vão ficando parecidas.

Vão ficando tão parecidas. Tão parecidinhas. Que coisa. Parece até que são gêmeas.
PIANGERS



31 DE MARÇO DE 2018
CLAUDIA LAITANO

velhos camaradas

Bromance é aquele tipo de palavra que nomeia algo que sempre existiu, mas, por algum motivo, nunca havia sido batizado antes. Neste caso, o laço de afeto e lealdade que une dois ou mais homens.

O termo é atribuído ao editor de uma revista de skate americana que, nos anos 1990, teria usado a expressão para descrever a amizade entre skatistas que passavam muito tempo juntos em um ambiente exclusivamente masculino. Nos anos 2000, a palavra caiu no gosto de jornais e revistas e acabou no cinema, virando uma espécie de subgênero de comédias hollywoodianas repletas de festas (de arromba), garotas (anônimas), cerveja (muita) - e rapazes dizendo bobagens, claro.

Enquanto o termo "sororidade", muito popular nos dias de hoje, encerra um sentido político evidente - união das mulheres em torno de causas comuns e apoio mútuo em situações de conflito -, ninguém associa a palavra bromance com conversa séria ou textão. Não procure no bromance reflexões sobre as diferentes formas de excercer a masculinidade ou pautas coletivas (direitos iguais para homens e mulheres na hora de calcular a aposentadoria ou decidir a guarda dos filhos, por exemplo). 

O bromance existe principalmente para celebrar a camaradagem e a liberdade para negar, ou adiar, os compromissos da vida adulta. O fato de algumas dessas comédias abusarem dos clichês de uma masculinidade meio bobalhona não parece incomodar os homens. E isso não porque todos sejam iguais ou tenham um fraco por comédias hollywoodianas de segunda linha, mas porque a ideia de uma visão distorcida ou simplória do gênero masculino não é um assunto que desperte muito o interesse, ou a indignação, dos rapazes. Significa.

O diretor Richard Linklater, que ficou conhecido pela trilogia Antes do Amanhecer, emprestou alguma densidade ao gênero com o filme Jovens, Loucos e Mais Rebeldes (2015). Com muitos elementos autobiográficos, o filme retrata a rotina de um grupo de universitários que aguarda o início das aulas, em um alojamento coletivo, no início dos anos 80 - uma espécie de "continuação espiritual" de Jovens, Loucos e Rebeldes (1993), ambientado nos anos 70 e no último ano da escola. Estão lá as festas, as garotas e a cerveja - e os rapazes dizendo bobagens -, mas também as sutilezas e os jogos de poder que vêm à superfície quando muitos homens dividem o mesmo espaço durante muito tempo. Digamos que o filme está para a amizade masculina assim como Antes do Amanhecer está para o primeiro amor: fácil de gostar e de se identificar.

Se Jovens, Loucos e Mais Rebeldes é sobre amigos descobrindo o mundo no início da vida adulta, A Melhor Escolha, filme mais recente de Linklater, em cartaz em Porto Alegre, é sobre a revisão do passado. Apesar do ponto de partida melancólico - o reencontro de três veteranos de guerra para enterrar o filho de um deles -, A Melhor Escolha de certa forma também celebra a camaradagem masculina. Mesmo quando a vida adulta e suas dores tornam as baladas mais raras, as garotas menos disponíveis e a cerveja mais controlada, a memória e o afeto são os últimos a sair da festa.

CLAUDIA LAITANO



31 DE MARÇO DE 2018
JJ CAMARGO


QUANDO A DISCRIMINAÇÃO MACHUCA

Georgina tinha 76 anos quando foi internada com derrame pleural, e os exames confirmaram a disseminação de um câncer de rim que tinha operado cinco anos antes.

Esse achado significava que houvera disseminação do tumor por via sanguínea e que nenhum tratamento local, como cirurgia ou radioterapia, poderia ajudar. No final dos anos 1990, o tumor de rim estava sempre no topo da lista dos cânceres que não respondiam à quimioterapia. Não tínhamos como saber se ela sabia disso, mas havia uma resignação e uma tristeza no olhar que sugeriam que sim.

Convivi com Georgina durante quase um ano e, nesse tempo, nunca ouvi uma queixa que fosse. Tinha trabalhado a vida toda como cozinheira em um hotel de luxo e não escondia o orgulho ao citar a lista de famosos que tinha alimentado. Sempre terminava relembrando a surpresa ao ser interrompida na cozinha pelo empresário Antônio Ermírio de Moraes, que não resistira a cumprimentá-la "porque nunca tinha comido um risoto tão gostoso".

E aí seguia explicando como fazia para dar o sabor com tomate seco e, no final, o queijo ralado para gratinar. Havia tanto orgulho em cada relato que se poderia supor que a culinária era a marca definitiva, e única, da sua vida modesta.

Mas ela tinha um trunfo guardado a muitas chaves: um filho, que conseguira formar com imenso sacrifício e que agora era engenheiro-chefe de plataforma na Petrobras em Campos. Fiquei muito surpreso com a existência dele, porque ela era a imagem da solidão e, com exceção de uma prima que aparecia a cada duas semanas, nunca se comentou de nenhuma visita.

Só soube da existência desse filho quando surgiu um porta-retrato na mesa de cabeceira, justo naquela fase triste em que os cuidados paliativos apontavam para o fim, a falta de ar se tornara insuportável, e o aumento da oferta de oxigênio, inútil.

"Não quero que meu filho me veja morrer. Ele que fique com a lembrança do tempo em que eu tinha saúde, para ser a mãe e o pai, que ele nunca conheceu. Eu só tinha 17 anos, e o senhor nem imagina o quanto era lindo meu alemão!"

Quando ensaiei o discurso do quanto era injusto privar um filho do convívio final com a sua mãe, ela me interrompeu: "Não é nada disso, doutor, ele não viria de qualquer jeito!".

"Mas por que não?"

"Ah, doutor, ele sempre me escondeu. No início, isso me magoou muito, mas depois aceitei, e acabei achando que ele tinha razão: não ajudaria nada um branquelo bonitão como ele ter uma mãe negra como eu!"
JJ CAMARGO


31 DE MARÇO DE 2018

DAVID COIMBRA

Onde foi que nós erramos



As pessoas não têm o hábito de se reunir e combinar: - Ei, vamos fazer um país?


Não. Em geral, os países se formam aos poucos, quase sempre por conveniências geográficas, sobretudo conveniências aquáticas. Se tem uma coisa de que nós, seres humanos, precisamos é de água. Dois terços do nosso amado corpo são formados por água, lembre-se. Então, quando vão se estabelecer, as pessoas procuram ficar perto dos rios. E assim as nações vão se constituindo.

Olhe o célebre caso do Egito. Heródoto disse que o Egito é uma dádiva do Nilo. De fato, o Egito só existe por causa das enchentes anuais do Nilo. O grande rio vinha do Sul para o Norte e inundava as duas margens, 15 quilômetros para um lado, 15 para o outro. Os egípcios, durante esse período, corriam para montes próximos e esperavam. Depois que o Nilo se retirava, deixava uma terra rica e fértil, onde os homens plantavam alegremente.

O Egito, assim, tornou-se um país estreito e comprido, todo ele erguido ao longo do Nilo. As outras civilizações não foram muito diferentes, tanto que se dizia que o Paraíso ficava entre quatro rios: o próprio Nilo, os irmãos Tigre e Eufrates e o Ganges. Foi nessa região que moraram Adão e Eva, que rastejou a serpente do Mal e que brotou a Árvore do Conhecimento.

Um país que fugiu a essa regra foram os Estados Unidos. Aqui, onde ora moro, eles praticamente fizeram o que escrevi aí em cima. Reuniram-se para fundar uma nação. É que os Estados Unidos são, mesmo, Estados que se uniram. Aquelas primeiras colônias inglesas, depois da independência, designaram líderes que debateram e escreveram uma Constituição, que vale até hoje. A partir daí é que o país foi sendo montado. O Texas, por exemplo, levou 10 anos para entrar na federação. É por isso que digo que a nação americana foi fundada antes do país.

E é aí que chego ao Brasil.

Desde a independência, o Brasil pouco se modificou territorialmente. Saiu a Província Cisplatina, entrou o Acre, nada muito traumático. Sobre esses 8,5 milhões de quilômetros quadrados de terra em que, se plantando, tudo dá, vive uma população que fala a mesma língua e que não enfrenta muitas vicissitudes naturais, como terremotos, furacões e eliminações da Copa do Mundo. Guerras de fronteira? Houve lá aquela quizília com o Paraguai, mas, depois disso, tudo foi mais ou menos tranquilo.

Era para ser fácil fazer um país, mas a questão é que nós, brasileiros, não conseguimos nos acertar quanto às regras que vão gerir nossa convivência. Vejo aquela campanha da Globo, Que Brasil Você Quer. As pessoas dizem que querem um país mais justo etc. Mas "como" fazer isso? Não há consenso, nunca houve.

Por essa razão, criamos regras de acordo com as circunstâncias. A Constituição de 1988, por exemplo, foi escrita no calor da redemocratização. "Temos ódio e nojo à ditadura", bradou Ulysses Guimarães ao aprová-la e, dizendo isso, disse tudo. Foi uma Constituição feita com paixão, não com razão. Só podia dar errado. Saiu um monstrengo político, administrativo e social. Um monstrengo bem-intencionado, verdade, mas, ainda assim, um monstrengo.

Nossas tragédias de 2018 começaram a ser urdidas em 1988. Não sabíamos exatamente que país nós queríamos; sabíamos que país nós não queríamos. E, em cima desse sentimento de negação, em vez de ser de afirmação, construímos uma proposta de nação leniente, centralizadora e irreal.

A Constituição de 1988 moldou um país torto. Está na hora de mudar.

DAVID COIMBRA


31 DE MARÇO DE 2018
EDITORIAL

A HORA DA RESPONSABILIDADE


As mais recentes denúncias e prisões estão apressando o fim do governo Temer, que, a nove meses para a posse do próximo presidente, vê ainda mais reduzidas as chances de reeleição. Apesar de a atual gestão perder força a cada dia, o quadro de enfraquecimento não pode, pelo bem do país, transformar-se em vácuo de poder. A História nos ensina que esse tipo de vazio é instantaneamente ocupado por aventureiros ou por radicais, um risco que se torna cada vez mais concreto em um país que assiste a uma preocupante escalada de violência em várias camadas dos seus tecidos político e social.

É nessas horas que homens e mulheres verdadeiramente comprometidos com o Brasil devem investir esforços na manutenção da estabilidade política e institucional. A instabilidade, porém, não deve servir de pretexto para a impunidade ou para travar as investigações sobre corrupção, o maior clamor da sociedade brasileira hoje. É preciso ir até as últimas consequências no combate ao crime que sequestrou a esfera pública nacional e à sua interação com a parte podre da iniciativa privada. Isso deve ser feito, porém, com absoluto respeito aos trâmites e às instâncias definidas pela lei.

O embate pelo poder é meio e não fim. O clima de intolerância representa ainda um risco extra, o de retirar da campanha eleitoral que se avizinha o debate sobre propostas para o futuro do Brasil, transformando as candidaturas em porta-vozes de ódios e antagonismos. Essa é a hora da razão, dos projetos responsáveis e das soluções possíveis.

Nos próximos meses, cabe ao presidente zelar pela política econômica e empreender a pouca energia que lhe resta na garantia de que o país siga no único caminho aceitável, o da transição pacífica de poder. Com a reforma da Previdência inviabilizada e com seus amigos atrás das grades, restam a Temer poucas opções.

É um bom sinal o fato de o país não parecer tão chocado pela prisão do círculo íntimo do presidente, o que já era previsível, dadas as evidências que vinham sendo expostas pela imprensa. A democracia brasileira vem resistindo a toda sorte de abalos, e é louvável que a vida do país siga da forma mais normal possível. Para isso servem as instituições: para garantir a normalidade individual e coletiva da nação. Qualquer tentativa de subverter esse imperativo da vida democrática deverá sempre ser repelido com veemência e sem hesitação.

EDITORIAL

sexta-feira, 30 de março de 2018


30 DE MARÇO DE 2018
ALMANAQUE GAÚCHO

Santa Felicidade


Do nosso colaborador Emiliano Limberger, recebemos a seguinte mensagem:


"Ao ler hoje, dia 7 de março, esta sua valiosa coluna, topei gratamente surpreso, no espaço dedicado diariamente aos santos do dia, com a menção a Santa Felicidade. A referência remete a esta bem-aventurada mártir (101-165) do século 2 cristão, relembrada com destaque em missas festivas como Natal e Páscoa, a par da rememorização litúrgica nesta data de 7 de março. Ocorre que este nome consta entre as tão pouco nominadas índias, inclusive guaranis, dos nossos Sete Povos.

No livro Conquista Espiritual, o padre Antônio Ruiz de Montoya SJ refere vários casos memoráveis em que figuram tais mulheres indígenas. No entanto, como acontece com outros autores, raramente constam os respectivos nomes ou cognomes. Já o padre Bernardo Nusdorffer SJ, provavelmente o mais cioso em termos históricos, na obra Relatório da Transmigração e Guerra Guaranítica, descreve episódio marcante nominando a autora da única profecia conhecida (até agora) de algum ente autóctone. 

Analisa ele, com muitos detalhes e fundadas circunstâncias, este singular fato, aliás pouquíssimo conhecido. Nome da indigitada: Felicidade (no original, Felicitas). Coincidentemente, ou não, ela assim foi batizada justamente na data martiriológica desta santa de mesmo nome, conforme usualmente pela Igreja, especialmente no passado.

Pois esta índia guarani, nascida na (futura) redução de São Cristóvão (atual distrito de Bexiga/Cruz Alta, antes Rio Pardo), comentada e descrita no primeiro livro a tratar dos episódios primordiais do atual território do Rio Grande do Sul (então Sete Povos - em suas duas etapas), enfrentou, usando trajes masculinos, os cruéis mamelucos na razia invasora, em Jesus-Maria (hoje Tapera, localidade no interior do município de Vera Cruz), no dia 3 de dezembro de 1637 (com cerca de 15 anos), quando abateu com certeira lança um índio tupi inimigo. 

Participou da vitória do Mbororé e, após, refugiou-se na banda ocidental do Rio Uruguai, estabelecendo-se em La Cruz. Em 1733, cerca de 20 anos antes da injusta e malfadada guerra contra os missioneiros, já bem velhinha, a índia Felicidade fez a estranha profecia. Previu ela: ?Mbaboçü Oiconé? (ruína total das Missões), e isso ficou registrado, em janeiro de 1755, em São Carlos, pelo padre Bernardo Nusdorffer. Este conteúdo foi conscienciosamente examinado pelos jesuítas da época, os quais a conheciam desde longa data, declarando merecer ela crédito.

Tanto assim, que providenciaram em fazer esta singular comunicação a Roma, acrescentando ter ela vaticinado a tragédia, com duração de 10 anos, que dizimou os núcleos dos Sete Povos, o que realmente aconteceu. Aquele que desejar conferir a veracidade deste ímpar prognóstico pode consultar o (manuscrito) Relatório da Transmigração e Guerra Guaranítica, sobre os Sete Povos, do jesuíta B.Nusdorffer, publicado pelo historiador padre Carlos Teschauer SJ (IHG/RGS)."

Colaboração de Emiliano Limberger, coordenador do Instituto Pró-Memória Sepé Tiaraju

RICARDO CHAVES

30 DE MARÇO DE 2018
DAVID COIMBRA

Como preparar uma nação



Há muitas maneiras de se fazer uma nação. Não existe uma única receita, como se fosse estrogonofe. Até porque nem estrogonofe tem uma única receita. Uns botam cogumelo, outros servem com batata palha e há quem flambe. Eu flambo. Sempre flambei e sempre flambarei.

Você diria, talvez, que para se fazer estrogonofe é preciso indispensavelmente carne, creme de leite e arroz, e para se fazer uma nação é preciso indispensavelmente pessoas falando a mesma língua em cima da mesma porção de terra. Quanto ao estrogonofe, você estaria certo. Quanto à nação, não. O povo judeu construiu uma nação que varou milênios sem dispor de uma porção de terra sua e sem uma língua identitária. O povo judeu fez sua nação usando como principal ingrediente um livro, a Bíblia. Não por acaso, os judeus são chamados de "o povo do livro".

Só que, é evidente, sem terra fica mais complicado. Melhor com.

Para se fazer uma nação, facilita muito se sua eventual porção de terra é cercada por água. Ou seja: se é uma ilha. A Inglaterra tem essa vantagem. Suas fronteiras não aumentam nem diminuem. É só aquilo, e pronto. Essa condição também é ótima para se defender, que o diga a Invencível Armada Espanhola, que foi vencida antes de chegar à terra da Inglaterra, no século 16.

Há uns quatro ou cinco anos, a Scotland Yard divulgou um número impressionante: a polícia londrina havia disparado apenas dois tiros em um ano. Espantoso para nós, mas não para os ingleses. Afinal, até o começo da era do terrorismo islâmico, os policiais britânicos andavam desarmados e não tinham medo de confronto com bandidos com metralhadoras e bazucas como no Brasil, porque é quase impossível contrabandear armas para a ilha. Por quê? Exatamente porque se trata de uma ilha. No Brasil, há de se vigiar uma imensa e porosa fronteira. Na Inglaterra, há só água.

O mesmo acontece no Japão, que não é uma ilha, são várias. Estando lá longe, onde o sol nasce, o Japão se beneficia da homogeneidade que lhe propicia o isolamento. Então, a taxa de crimes é ridícula entre os japoneses. Se um japonês acha uma nota de cem na rua, o que ele faz é levá-la à delegacia mais próxima. A polícia guarda a nota e, quando alguém chega dizendo que perdeu cenzinho naquele lugar, eles apresentam a cédula:

- Está aqui o seu dinheiro. Chega a ser irritante.

Portanto, se você pretender fazer uma nação, prefira usar uma ilha, como a Inglaterra, ou um arquipélago, como o Japão. Você também terá o proveito de que a população comerá muito peixe, o que é saudável e não engorda. Se bem que isso só funcionou no Japão. Na Inglaterra, eles inventaram aquele fish and chips, que não é saudável e engorda.

Mas, infelizmente, não há muitas ilhas disponíveis. A maior parte do planeta é de terra ligada a mais terra, os chamados continentes. É o nosso caso, do Brasil. Ainda assim, tivemos sorte: temos uma língua comum que nos diferencia de todos os outros povos do continente e a nossa porção de terra, em formato de um gracioso buquê de flores, torna lógica a definição geográfica do país. Além do mais, nosso povo é mais homogêneo do que nós mesmos acreditamos.

Existem, sim, tipos brasileiros com características próprias, forjadas em dezenas de anos de alquimia étnica. Note que, no Brasil, os fluxos migratórios se encerraram há quase um século. Só bem recentemente é que chegaram pequenos grupos de haitianos e africanos. De resto, somos os mesmos desde o século 19, enquanto que, nos Estados Unidos, por exemplo, o fluxo migratório não cessa nunca, apesar dos esforços de Trump.

Houve, porém, um problema que nos atrapalhou. Do qual tratarei amanhã.

DAVID COIMBRA


30 DE MARÇO DE 2018
RELIGIÃO

Vaticano desmente fala do Papa sobre o inferno


Uma declaração do papa Francisco publicada no jornal italiano La Reppublica repercutiu ontem. De acordo com o periódico, o Pontífice disse que "o inferno não existe". Em nota, o Vaticano contestou a afirmação. "O inferno não existe. O desaparecimento das almas dos pecadores existe", teria afirmado o Papa ao fundador do jornal, Eugenio Scalafari, 93 anos. "Aqueles que não se arrependem e, portanto, não podem ser perdoados, desaparecem", complementou, segundo o texto publicado na edição de ontem.

Em nota, o Vaticano contestou a afirmação e disse que o Papa recebeu o jornalista para uma conversa privada, mas que não se tratava de uma entrevista. "O que é relatado pelo autor no artigo de hoje (ontem) é o resultado de sua reconstrução, em que as palavras textuais pronunciadas pelo Papa não são citadas. Nenhuma aspa do artigo mencionado deve ser considerada, portanto, como uma transcrição fiel das palavras do Santo Padre", diz a nota.

Francisco já havia se encontrado outras vezes com Scalafari, que se considera ateu. Segundo o The Times, o jornalista, que se aposentou como editor chefe do jornal mas segue escrevendo textos, disse anteriormente que reconstrói as conversas de memória, sem tomar notas ou usar um gravador.

CERIMÔNIA DE LAVA-PÉS

Ontem, o papa Francisco celebrou mais uma vez a missa da Quinta-Feira Santa em uma prisão de Roma, na Itália, e comandou a cerimônia do lava-pés com 12 presos, entre eles dois muçulmanos, um judeu ortodoxo e um budista. Antes disso, fez uma breve reunião particular com os presos doentes da prisão de Regina Coeli.

- Cada um tem a oportunidade de mudar de vida e não tem de ser julgado - enfatizou o Pontífice, depois de acrescentar que ele próprio se considera um pecador, em uma homilia transmitida pela Rádio Vaticano.

Na tradição cristã, a Quinta- Feira Santa comemora o dia em que Jesus Cristo lavou os pés dos apóstolos e celebrou a instituição da Eucaristia na Última Ceia.

30 DE MARÇO DE 2018
ARTIGO

MARK E OS JORNAIS


É sintomático que o mentor e executivo-chefe do Facebook, Mark Zuckerberg, tenha escolhido os jornais para estampar, em anúncios de página inteira no domingo passado, seu pedido de desculpas pela quebra da privacidade de 50 milhões de usuários na entrega de dados à consultoria eleitoral Cambridge Analytica. Por que um dos impérios digitais do planeta, erguido em grande medida pelo desprezo à imprensa profissional, se valeria de nove títulos de edições impressas - três nos Estados Unidos e seis no Reino Unido - para apresentar um inédito mea-culpa? A razão pode ser resumida em um objetivo: a busca da credibilidade.

Gradativamente, os jornais deixaram de se posicionar como meios da era pré-internet que divulgavam notícias do dia anterior para, escorados em técnica jornalística e códigos de ética, transformarem-se em certificadores da realidade em uma era em que a difusão de informação virou de cabeça para baixo. Com seus anúncios, o que Zuckerberg sinalizou é que, para fazer frente à acelerada corrosão do submundo digital, ele também precisa ancorar a reputação de sua empresa em baías seguras, protegidas do vendaval de bits que varre o planeta e recria a realidade ao gosto do cliente e no engano do freguês.

Desde sempre, os jornais estão fundeados nas baías da confiança, em oposição às marés de notícias falsas e às fraudes nas métricas digitais que deturpam audiências e iludem a boa-fé de anunciantes. Por não aceitarem mais terceirizar sua reputação a loterias digitais, nas quais marcas consagradas podem acabar patrocinadoras involuntárias de conteúdos racistas, ofensivos ou apenas delirantes, é que mais e mais grandes empresas se distanciam do oceano selvagem das redes e buscam refúgio em enseadas confiáveis e resguardadas das tempestades virtuais.

Nunca é demais lembrar que jornais - bem como os demais meios que assumem suas responsabilidades diante da sociedade - estão no ramo do acerto e da precisão. Quando erram, o que é uma trágica possibilidade em um produto dinâmico e subjetivo, assumem sua falha e corrigem-na assim que a identificam. É uma atitude bem diferente da olímpica lavagem de mãos de plataformas digitais que, muitas vezes à custa da disseminação de falsidades, extraem o máximo de dados de usuários que não se dão conta de serem eles o produto final dos facebooks da vida.

MARCELO RECH

quinta-feira, 29 de março de 2018


29 DE MARÇO DE 2018
DAVID COIMBRA

Começa com ovos, termina em tiros


No ano passado, uma professora de Santa Catarina levou um soco de um aluno e foi parar no hospital. Nós a entrevistamos, no Timeline Gaúcha, e, enquanto o fazíamos, perguntei a ela sobre postagens que havia feito nas redes sociais: a professora, que é petista, elogiava uma aluna que jogara um ovo em Bolsonaro. Ela ficou furiosa com meu questionamento, disse que atirar ovo em Bolsonaro era um ato revolucionário e que eu era fascista. Em seguida, desligou o telefone.

Depois da entrevista, inúmeros petistas enviaram e-mails criticando a mim e ao programa. Segundo eles, lançar ovos em Bolsonaro era, realmente, uma atitude revolucionária.

Bem.

Agora, estão jogando ovos em Lula. E não é mais revolucionário: é fascista.

Da mesma forma, é revolucionário fechar ruas de Porto Alegre quase todos os dias em nome de uma greve ou de um protesto contra Temer, Marchezan ou Sartori, mas fechar estradas para impedir a passagem da caravana de Lula é fascista.

E, quando mulheres do MST invadiram a gráfica do jornal O Globo armadas de facões, dias atrás, foi um ato revolucionário. Já os tiros contra o ônibus de Lula foram terrorismo de fascistas.

Note que começamos com ovos e já estamos nos tiros. É assim que caminha a humanidade.

Neste ponto, leia com calma o parágrafo abaixo, para compreender bem o que estou escrevendo. Se for preciso, releia. É o seguinte:

O fato de alguém ter jogado ovos em Bolsonaro não justifica que outros joguem ovos em Lula. O fato de alguém ter bloqueado ruas em nome de uma greve não justifica que outros bloqueiem estradas para impedir a caravana de um candidato, mesmo que ele seja condenado pela Justiça. O fato de pessoas armadas com facões terem invadido um jornal não justifica que pessoas armadas com revólveres alvejem um ônibus com políticos dentro.

Estou enfatizando isso para que ninguém se confunda: não justifico as agressões à caravana de Lula pelo comportamento pregresso do PT em ações que infringiram a lei. Mas também não há justificativa para quaisquer ações que infrinjam a lei.

Você pode fazer manifestações contundentes dentro da legalidade. Houve muitas na história do país. Foram, inclusive, as mais importantes. As das Diretas Já, nos anos 1980. As do Fora Collor, nos anos 1990. E, as maiores de todas, as que pediram o impeachment de Dilma, em 2016. Nestas, num único dia, 6 milhões de brasileiros foram às ruas, algo inédito no Brasil e raríssimo no mundo. Talvez só a revolta de maio de 1968, em Paris, tenha reunido mais gente. Mesmo assim, os governistas diziam que aqueles milhões faziam parte da elite, imagine. Houve até quem contasse o número de negros nas manifestações (!).

Quer dizer: a minha manifestação é do bem, a sua é do mal; o ovo que atiro no seu candidato é democrático, o ovo que você atira no meu é fascista.

O Brasil é o país em que tudo pode. Todo mundo se sente injustiçado, e por isso todo mundo acha que tem direito a protestar como bem entender para corrigir a injustiça.

Está errado.

Numa democracia, o cidadão sabe que não pode fechar uma rua, não pode atirar ovos nos outros e, principalmente, sabe que não pode dar tiro em quem quer que seja ou no veículo de quem quer que seja. Numa democracia, a autoridade cumpre o seu papel, que é de reprimir e punir quem erra. E o cidadão aplaude. Porque sabe que o erro punido é o erro que dificilmente será repetido. Porque sabe que o governo eficiente é como o pai atento: ele não apenas dá quando é possível dar; ele cobra quando tem de ser cobrado.

DAVID COIMBRA

29 DE MARÇO DE 2018
CAMPO ABERTO

Ofensiva tenta barrar extinção da CESA


A pouco mais de 15 dias do prazo em que o projeto de lei para a extinção da Companhia Estadual de Silos e Armazéns (Cesa) começa a trancar a pauta da Assembleia Legislativa, o Sindicato dos Auxiliares de Administração de Armazéns Gerais (Sagers) promete intensificar a ofensiva para sensibilizar deputados a votarem contra a proposta do governo.

Na próxima semana, baterá de porta em porta em busca de apoio para a manutenção das atividades da companhia. Documento em que é questionada a iniciativa já foi enviado aos deputados.

- É um contrassenso, porque não há benefício com a extinção. Qual a vantagem de fechar? O Estado pagará o compromisso firmado no acordo trabalhista (referência à ação do piso da categoria)? - questiona Lourival Pereira, presidente do Sagers.

O governo, no entanto, está resoluto. A extinção foi sendo costurada ao longo dos últimos dois anos. O primeiro passo foi retirar a necessidade de realização de plebiscito para a extinção - aprovada em 2016 pela Assembleia. Agora, retomou o regime de urgência do Projeto de Lei 248/2017, que trata justamente do fechamento da Cesa.

- Tem sido feito esforço para diminuir passivo, resolver pendências e liquidar ativos. A extinção dá outra configuração jurídica à companhia - afirma o líder do governo, deputado Gabriel Souza (PMDB).

Conforme previsto no texto, se aprovada a lei, até 30 dias após sua publicação deverá ser convocada assembleia-geral de acionistas, na qual serão nomeados liquidante da Cesa e conselho fiscal e determinado prazo da liquidação.

Atual presidente da companhia, Claudio Cava Corrêa explica que caberá ao liquidante e ao conselho definirem qual estratégia será adotada para o fechamento.

Há dois cenários possíveis: a venda de todas as unidades, com o governo assumindo os compromissos financeiros que cabiam à companhia, ou a manutenção das filiais que são rentáveis (nove no total, incluindo três portuárias), permitindo a entrada de receita enquanto são negociadas as demais.

no radar

A Sociedade Rural Brasileira emitiu nota de repúdio ao projeto de lei aprovado por vereadores de Santos que proíbe a movimentação de carga viva na cidade. A entidade afirma que "ao tentar dificultar os embarques de animais nos arredores do porto de Santos, a medida causa insegurança para os pecuaristas brasileiros e prejudica compromissos comerciais do país". Diz ainda contar com o bom senso do prefeito para vetar o texto.

APESAR DOS NÚMEROS

Ainda que os números da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) mostrem recuo de 5,1% no faturamento das indústrias de máquinas e implementos agrícolas no primeiro bimestre deste ano em relação ao mesmo período de 2017, o setor mantém aposta no crescimento em 2018.

- Esse resultado não reflete o que o mercado está mostrando, o que tem se visto nas feiras, como o Show Rural Coopavel e a Expodireto Cotrijal - pondera Pedro Estevão Bastos, presidente da Câmara Setorial de Máquinas e Implementos agrícolas da Abimaq.

A projeção é de que haja expansão entre 5% e 8% neste ano. A entidade, que é uma das organizadoras da Agrishow, estende o otimismo para a feira que será realizada em Ribeirão Preto (SP). Nem mesmo a perspectiva de corte na taxa de juro do crédito agrícola no novo Plano Safra deve atrapalhar os negócios.

- Não se sabe quanto vai cair. E o preço da máquina poderá ser diferente do de agora. Outro detalhe é que não se sabe o valor do produto agrícola lá em julho, agosto - pondera Bastos.

Habilitada a inspecionar

É de Venâncio Aires a primeira empresa habilitada pela Secretaria da Agricultura a prestar serviços para a inspeção privada nas indústrias de produtos de origem animal sob fiscalização estadual.

O credenciamento da consultoria Compilar foi publicado no Diário Oficial de ontem. Segundo Joel Luiz Martins, diretor da empresa, dos três médicos veterinários em atuação, um tem experiência de 600 horas - o que o exime do curso teórico prévio. O número de profissionais a serem contratados, pondera, será proporcional à demanda.

Mais quatro empresas interessadas no credenciamento estão sob análise de comissão da secretaria. Também há um edital de chamamento aberto para entidades que queiram ficar responsáveis pelo treinamento teórico dos veterinários que atuarão na inspeção.

está agora Nas mãos do Ibama

A superintendência do porto de Rio Grande ainda tem expectativa de conseguir realizar a dragagem de manutenção antes da entrada da safra, mas o calendário está ficando cada vez mais apertado. O novo projeto para a limpeza foi entregue ao Ibama na terça-feira. O órgão federal não deu prazo para avaliação, mas Janir Branco, superintendente do porto, avalia que "um mês parece um tempo razoável":

- Eles sabem da nossa necessidade.

Com dificuldades para obter autorização para a dragagem completa, a superintendência optou por realizar a obra em etapas. Na proposta entregue, está prevista a retirada de 3,5 milhões de metros cúbicos de sedimentos. O volume foi determinado a partir de batimetria.

A última dragagem foi feita em 2013. O assoreamento do canal de passagem no porto faz com que, dependendo das condições meteorológicas, navios não consigam zarpar - o que ocorreu duas vezes no ano passado, durante escoamento da produção agrícola.

GISELE LOEBLEIN


29 DE MARÇO DE 2018
GERAL

Luiz Fux quer investigar produtores de fake news

PRESIDENTE DO TSE também pretende ouvir representante de companhia suspeita de uso ilegal de dados do Facebook para campanha de Trump

Preocupado com a proliferação de notícias falsas durante o período de campanha das eleições deste ano, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luiz Fux, informou ontem que vai pedir investigação de empresas que produzem fake news no Brasil.

Fux disse que vai convidar para conversa o representante no Brasil da empresa britânica Cambridge Analytica. A companhia entrou na mira de autoridades americanas e europeias sob a acusação de que obteve, ilegalmente, dados pessoais de milhões de usuários do Facebook, o que teria ajudado na elaboração de estratégias de marketing digital da campanha de Donald Trump à Casa Branca e do referendo do Brexit, que decidiu pela separação do Reino Unido da União Europeia.

- A notícia que recebemos é de que há representante da Cambridge Analytica no Brasil. Então, vamos querer saber basicamente duas coisas: o que eles estão vendendo e para quem. É um convite, não é uma intimação, mas já é uma atuação preventiva - disse Fux a jornalistas, depois de participar da sessão plenária do TSE.

O ministro também afirmou que o tribunal vai atuar em parceria com Ministério Público (MP) e Polícia Federal (PF) no combate à disseminação de notícias falsas nas próximas eleições.

- Por exemplo, suponhamos que você sabe que ali tem um equipamento que vai ser utilizado para difusão de fake news. Precisa ser apreendido - disse Fux.

O presidente da Corte eleitoral também vai pedir acesso a estudos elaborados pela USP e pela Fundação Getulio Vargas, que tratam respectivamente da proliferação de notícias falsas e da utilização de robôs em campanhas políticas.

- Há grupos que estão, digamos assim, na ponta dessa profusão de fake news. Vamos instaurar procedimento, que será remetido ao Ministério Público Eleitoral e o MP vai solicitar auxílio da PF para verificarmos qual tipo de material essas organizações têm à disposição - explicou Fux, que deixa o comando do TSE em 15 de agosto e será sucedido pela ministra Rosa Weber.

SOB PRESSÃO, REDE MUDA

REGRAS DE PRIVACIDADE

Mergulhado no escândalo sobre o suposto uso irregular de dados pela Cambridge Analytica, que em pouco mais de uma semana resultou no prejuízo de US$ 100 bilhões em valor de mercado, o Facebook anunciou mudanças na política de privacidade para dar aos usuários mais controle sobre suas informações.

Antes da entrada em vigor da nova regulação da União Europeia sobre proteção online, em maio, a rede social vai incluir novo menu para permitir edição e exclusão do que os usuários compartilham. Também possibilitará que baixem seus dados e transfiram para outros serviços (leia no quadro abaixo).

"A última semana mostrou o quanto precisamos trabalhar para garantir que nossas políticas sejam respeitadas, e ajudar as pessoas a entender como o Facebook funciona e as escolhas que elas têm sobre seus dados", afirmou a companhia em comunicado assinado por Erin Egan, vice-presidente responsável por privacidade, e Ashlie Beringer, diretora jurídica adjunta.

O Facebook também informou que, nas próximas semanas, vai alterar os termos de serviço e a política de dados da plataforma. "Essas atualizações são para aumentar a transparência, e não para obter permissão para coletar, usar ou compartilhar dados", garantiram os executivos no comunicado.

São esperadas para breve novidades quanto às medidas anunciadas pelo presidente-executivo da empresa, Mark Zuckerberg, entre as quais a investigação de aplicativos que tiveram acesso a grandes quantidades de informações e a comunicação às pessoas afetadas por apps que fizeram mau uso de seus dados. O dono do Facebook deve depor ao Congresso americano sobre o caso em sessão agendada para 10 de abril.


29 DE MARÇO DE 2018
L.F. VERISSIMO

Scandals


Não faz muito, uma controvérsia dominava as notícias e as conversas nos Estados Unidos da América. Era uma questão que envolvia semântica, lógica, anatomia e jurisprudência e dividia opiniões de costa a costa da nação. A dúvida era se sexo oral, sem penetração, podia ou não podia ser chamado de sexo. O presidente Clinton, acusado de ter tido relações sexuais com a estagiária Monica Lewinsky na sala oval da Casa Branca, defendeu-se dizendo que felação, tecnicamente, não era um ato sexual, o que imediatamente levou metade da população a procurar nos dicionários o significado de "felação", que conhecia por outro nome. 

Como o assunto não saía das manchetes dos jornais e dos noticiários de TV, pais de família se viram obrigados a explicar aos filhos o que era aquilo, provocando caras de nojo ("Eca!") ou de indiferença ("É só isso?") nas crianças. Temeu-se pela segurança do país, imaginando-se o presidente tendo que atender a um telefonema importante do Kremlin sendo felatado pela Monica.

- Alô, Bill. Yeltsin aqui.

- Ahn, yum, wow...

- Bill, você está sentindo alguma coisa?

- Yes! Yes! Yes! Quer dizer: não!

Clinton insistiu que ele e a estagiária não tinham mantido uma relação sexual, mas no máximo um comportamento parassexual, e conseguiu não ser empichado. Agora, outro presidente americano se vê envolvido num escândalo sexual. Donald Trump está sendo acusado por uma estrela pornô de ter exigido que ela assinasse um documento prometendo jamais revelar o caso dos dois, anos atrás, em troca de US$ 130 mil. 

A moça, cujo primeiro nome, falso, é "Stormy" - tempestuosa - diz que não assinou documento algum e que 130 mil é pouco. E, ao contrário da Monica, que não manteve exatamente um perfil baixo com sua notoriedade, mas nunca foi indiscreta demais, a Stormy está contando tudo. Há dias, foi a um programa de TV e fez até uma piada com o tamanho do pênis do presidente. Sim, esse é o assunto do momento na América. Trump não vê a hora de passar a tempestade.

L.F. VERISSIMO

quarta-feira, 28 de março de 2018


28 DE MARÇO DE 2018
DAVID COIMBRA

A entrevista de Moro e a sangria estancada


Moro devia dar mais entrevistas. É o momento para tal. Eu mesmo o entrevistei, tempos atrás, e ele parecia reticente, esquivava-se de assuntos pedregosos. Agora, não. Agora, como demonstrou na entrevista ao Roda Viva, na segunda-feira, expressa-se com fluência, clareza e naturalidade. Jamais se emocionou, jamais se irritou, exsudava segurança no que dizia.

Não conseguiu explicar a questão corporativa do auxílio-moradia, é verdade, mas nenhum juiz conseguiria, porque não tem explicação. De resto, o programa foi como um painel se abrindo diante do telespectador, com tudo bem posto, quase esquematizado.

Ontem, prestei atenção aos comentários dos críticos do juiz, que são, obviamente, os defensores dos políticos criminosos. Nem eles conseguiram encontrar defeitos no conteúdo do que foi dito por Moro. Limitaram-se à forma: a voz de Moro é irritante, ele é morno, os entrevistadores foram condescendentes, por aí. Irrelevâncias.

Um brasileiro que de fato quer o bem do Brasil, e não apenas de seu grupo político, não pode deixar de reconhecer a importância do trabalho de Moro e sua postura profissional e reta.

O programa marcou, também, a despedida de Augusto Nunes do Roda Viva. Augusto é um jornalista que desperta paixões e ódios devido a suas opiniões rascantes. Trabalhei com ele nos anos 1990, em Zero Hora. Foi trazido pela direção da RBS para quebrar certos paradigmas do jornalismo gaúcho, e, naqueles anos, o jornalismo gaúcho mudou. O texto e a apuração passaram a ser valorizados como nunca, e novo espaço foi aberto para repórteres talentosos, como o Marcelo Rech, o Nilson Mariano, o Humberto Trezzi e o Carlos Wagner, entre tantos outros de alto quilate. 

Na imagem, um monstro, Kadão Chaves, cuidava da fotografia, enquanto Luiz Adolfo fazia o planejamento gráfico. Eticamente, Zero Hora encampou uma revolução: naquele tempo, todos os veículos aceitavam que seus jornalistas trabalhassem também em assessorias de imprensa, em geral na mesma área de cobertura de suas editorias. O jornal proibiu o duplo emprego e inaugurou novo padrão moral nas redações.

É evidente que aquele era um sério problema ético dos jornalistas, mas ninguém se questionava a respeito, porque todos procediam assim. Ou quase todos. O que me leva a fazer uma relação com o caso do auxílio-moradia dos juízes. Esse benefício não era considerado imoral porque todos recebiam. Mas os tempos mudam, e é preciso se adaptar. Suponho que os juízes também se adaptarão.

Mas o tema do auxílio-moradia foi secundário na longa e histórica entrevista de Moro. O principal foi sua abordagem didática de assuntos nevrálgicos do Brasil, entre os quais o que, hoje, é o mais delicado: o julgamento do habeas corpus de Lula pelo Supremo, no dia 4. É esse julgamento que, na prática, decidirá acerca do cumprimento da pena a partir da segunda instância no país inteiro.

Moro foi preciso: seria muito bom se todas as instâncias da Justiça pudessem ser esgotadas com o réu em liberdade. Seria o ideal, porque haveria menos chances de se cometerem injustiças. Porém, da forma como funciona a Justiça brasileira, a proibição da prisão em segunda instância assegura o contrário: assegura o cometimento de injustiças, porque beneficia o rico e o poderoso, aquele que tem recursos para pagar bons advogados e arrastar o processo infinitamente, até ser beneficiado pela prescrição da pena. O julgamento do habeas corpus de Lula, por isso, é simbólico. Se for concedido, garantirá a impunidade no Brasil. E encerrará a Lava-Jato. A sangria estará estancada, como querem muitos. E tudo ficará como sempre foi.

DAVID COIMBRA

28 DE MARÇO DE 2018
ECONOMIA


Reajuste abaixo da inflação para piso regional teve aprovação unânime

NOVOS VALORES vão variar de R$ 1.196,47 a R$ 1.516,26. Texto seguirá para sanção de Sartori
Sem maiores dificuldades, o Piratini conseguiu ontem, na Assembleia Legislativa, a aprovação do novo salário mínimo regional pelo índice proposto. Por unanimidade, 46 votos a zero, os deputados concordaram com o texto de reajuste de 1,81%.

Com a correção, a menor faixa do piso passa a R$ 1.196,47 e a maior, a R$ 1.516,26 (veja quadro ao lado), quando o projeto for sancionado pelo governador José Ivo Sartori. Como a data-base do piso é 1º de fevereiro, empregadores deverão pagar as diferenças mensais na próxima folha.

O salário mínimo regional é referência para cerca de 1,3 milhão de trabalhadores informais ou que pertencem a categorias não contempladas em acordos coletivos ou convenções.

O projeto do governo, aprovado na Assembleia, não cobre a inflação do ano passado. No período, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) - indicador considerado para reajuste de salários - foi de 2,07%.

EMENDAS NEM CHEGARAM A RECEBER APRECIAÇÃO

As centrais sindicais e as entidades de classe pediam 4,17%, percentual que abrange a inflação de 2017 e as perdas salariais do governo Sartori em 2016, quando a correção também ficou abaixo do índice oficial. A reivindicação foi encampada em emenda apresentada pelo deputado Luiz Fernando Mainardi (PT).

- Nesse momento de enorme dificuldade, não podemos pedir algo inviável, mas também não pode ser algo que crie arrocho salarial e resulte em perda do poder de compra - justificou Mainardi.

Nos bastidores, a base do governo também ficou incomodada em conceder reajuste abaixo da inflação. O deputado Elton Weber (PSB) tentou negociar com o Piratini um índice maior, mas não encontrou ambiente receptivo na Casa Civil. Diante da negativa, junto a outros seis deputados apresentou emenda com correção de 2,95%, correspondente à inflação medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

- Pedi à Casa Civil que conversasse com as entidades patronais, mas o governo não fez esse gesto - lamentou Weber.

Antes da votação, o líder do governo, Gabriel Souza (PMDB), apresentou requerimento prejudicando as emendas de Weber e Mainardi e dando preferência à proposta oficial. Contados os votos, até mesmo a oposição acabou favorável ao projeto do Piratini.

- Queríamos que fosse um pouco mais do que esses ridículos 1,81%. Mas fomos derrotados. Mesmo que o reajuste tenha sido pequeno, é melhor do que nada - disse Mainardi.

FÁBIO SCHAFFNER


28 DE MARÇO DE 2018
ECONOMIA

CEEE TEM PREJUÍZO MENOR, MAS RISCO PERMANECE

BRAÇO DE DISTRIBUIÇÃO teve melhora de resultado com venda de terreno à CEEE-GT, medida que não se repetirá no futuro

Em dificuldades financeiras, o braço de distribuição da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE-D) reduziu o prejuízo em 83% em 2017. O resultado negativo no ano passado caiu para R$ 87,5 milhões - em 2016, havia sido de R$ 527,1 milhões, mostrou o balanço apresentado ontem.

A geração de caixa da companhia medida pelo indicador conhecido como Ebitda ajustado, ficou positiva em R$ 183,8 milhões em 2017. A virada foi comemorada pela direção da estatal, já que no ano anterior havia sido negativa. Caso ficasse no vermelho novamente, a CEEE-D perderia a concessão. É o que determina o contrato com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel): entre 2016 e 2020, o indicador não pode ser duas vezes negativo.

A empresa atribui o desempenho a uma combinação de fatores. Um é a transferência do terreno da sede, em Porto Alegre, para o braço de geração e transmissão, a CEEE-GT. A medida, que não terá reflexos nos próximos balanços e teve efeito apenas contábil, gerou receita de R$ 283,3 milhões para a divisão de distribuição, que enfrenta maiores problemas.

- A sustentabilidade é um processo que leva tempo. A CEEE-D é um paciente que ainda inspira cuidados. Mas não há como melhorá-lo sem melhorar as condições clínicas - comparou o diretor-presidente do Grupo CEEE, Paulo de Tarso Pinheiro Machado.

Outra medida que permitiu prejuízo menor foi a redução de 32% nos custos de operação. A despesa operacional caiu de R$ 1,1 bilhão em 2016 para R$ 751 milhões. O freio nos custos, declarou Pinheiro Machado, tem relação com iniciativas como diminuição do número de funcionários, que passou de cerca de 4,2 mil para 3,5 mil. A adesão a programas de regularização tributária também aliviou os cofres.

- Reduzimos custos com compra de materiais e investimos na incorporação de tecnologias - acrescentou o diretor de distribuição, Júlio Hofer.

LUCRO DA DIVISÃO DE GERAÇÃO E TRANSMISSÃO FICOU MENOR

Além do balanço da divisão de distribuição de energia, a companhia também apresentou o desempenho de seu braço de geração e transmissão. Em 2017, a CEEE-GT se manteve no azul, mas o lucro líquido caiu para R$ 395 milhões, redução de 57% ante os R$ 923,7 milhões do ano anterior.

Segundo a estatal, a queda é explicada em parte porque, em 2016, a receita havia sido inflada com compensações por investimentos feitos no passado. Em 2017, a CEEE-GT ainda encarou dificuldades com oferta de água para geração de energia e, por isso, teve de recorrer a fontes mais caras.

- A chuva é o grande indexador do setor elétrico. Quando chove, o preço da tarifa fica mais baixo. Quando isso não acontece, fica mais caro - comparou Pinheiro Machado.

Com as duas divisões, o Grupo CEEE teve lucro líquido de R$ 24 milhões, redução de 91% frente aos R$ 261 milhões de 2016 - redução também determinada pela compensação paga naquele ano.

LEONARDO VIECELI