quarta-feira, 31 de maio de 2017


31 de maio de 2017 | N° 18859
MARTHA MEDEIROS

  • Você é novo aqui?

    Entrei num estabelecimento comercial que não frequentava há uns três meses e reparei que havia funcionários que eu desconhecia. Entre eles, uma bela mulher, bem maquiada e produzida. Trans. Enquanto eu era atendida, conversamos rapidamente e estava tudo assim, natural como tem que ser, quando olhei para ela e perguntei: “Você é novo aqui?”.

    Tóóóóing. Ato contínuo, me corrigi: “Nova!!”. Mas o estrago já estava feito, o semblante dela fechou e eu fui etiquetada como um ser das cavernas que não sabe lidar com a diversidade. Logo eu, a pseudodoutora em condição humana.

    Voltei para casa chateada com o que aconteceu, me punindo em silêncio, e ao mesmo tempo percebi como é difícil a gente trocar o chip e adotar posturas mais avançadas. Crente de que estava com a cabeça feita em relação ao movimento transgênero, me dei conta de que esses atos falhos demonstram que toda uma cultura adquirida não se varre da nossa vida com uma simples vassourada. A faxina tem que ser mais pesada.

    Isso aconteceu na mesma semana em que muito se comentou a respeito de Laerte-se, o documentário sobre o cartunista que virou a cartunista. E faço uma confissão pública com a qual alguns se solidarizarão, mas o objetivo não é formarmos um gueto reacionário do contra, e sim questionarmos nosso comportamento a fim de evoluir: ainda tenho dificuldade de chamá-lo de “a” Laerte. Imagino que ela (tenho dificuldade de chamá-la de ela também) considere um ato de resistência manter seu nome de batismo em vez de trocar por Laís, Larissa, Laurel. Tem também o fato de Laerte ser uma identidade artística plenamente reconhecida e estabelecida no universo dos cartuns. Mas Laerte é nome próprio masculino. É como se tivéssemos que dizer a Roberto, a Milton, a Cassiano.

    Não é simples.

    No entanto, não sou feita apenas de instintos e costumes de estimação. Sou feita também de raciocínio, consciência e capacidade de me adequar a um mundo que não é mais o mesmo. É obrigatório reformatar nossas atitudes para abraçar essa sociedade plural que aí está e que hoje permite que tanta gente que antes vivia atormentada dentro do próprio corpo possa se sentir plenamente identificada com quem é – seja ele ou seja ela.

    “Você é novo aqui?” Todos nós somos novos aqui. Temos o direito de errar, mas o dever de aprender.

31 de maio de 2017 | N° 18859
POLÍTICA

Piratini convocará plebiscito para privatização de estatais

PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO para consulta pública deve ser enviado à Assembleia até o dia 15

O governo de José Ivo Sartori mudou de tática para conseguir a privatização de CEEE, Sulgás e CRM. Anunciou ontem que desistiu da proposta de emenda à Constituição (PEC) que acaba com a necessidade de plebiscito para vender essas estatais. Em vez disso, o Piratini enviará à Assembleia Legislativa pedido de autorização para realização da consulta pública, afirmou o líder do governo, Gabriel Souza (PMDB).

A solicitação de plebiscito deverá ser encaminhada até dia 15 de junho para fazer a consulta ainda neste ano. Conforme a lei estadual 9.207, de 1991, em ano não eleitoral, caso de 2017, o plebiscito deve ocorrer em 15 de novembro. Caso não consiga aprovar o projeto de decreto legislativo entre os deputados a tempo, a consulta será feita apenas em 2018 (confira o processo no quadro ao lado).

– Todas elas (CEEE, Sulgás e CRM), em maior ou menor medida, têm uma realidade de grandes problemas estruturais. São insustentáveis do ponto de vista da gestão ou não têm capacidade de investimento. E realizam atividades que não precisam mais ser feitas pelo próprio Estado – afirmou o governador José Ivo Sartori, em discurso divulgado pelo Piratini.

SEM MAIORIA PARA APROVAÇÃO DA PEC


Segundo deputados independentes, o governo tomou a iniciativa porque percebeu que não haveria apoio e votos suficientes para aprovar a PEC formulada pelo Executivo e que tramita na Assembleia desde o ano passado. Na reunião de líderes ontem de manhã, o Executivo tentou colocar em votação todas as PECs emperradas no Legislativo, mas não teve o apoio da oposição. O líder do PDT, deputado Enio Bacci, disse que a estratégia de impedir a votação em plenário das propostas polêmicas seria colocada em prática também nas próximas semanas.


– É melhor não colocar as PECs que retiram direitos em plenário. Não vamos correr o risco de serem aprovadas – justificou Bacci, em relação aos projetos.

Em seguida, os deputados aprovaram, por 36 votos a 17, projeto que altera o Fundo de Fomento Automotivo do Estado do RS (Fomentar-RS). A partir de agora, o Piratini poderá oferecer, em leilão, o direito de recebimento de ICMS a ser pago no futuro pela General Motors (GM). Assim, o governo antecipa a receita, mas para isso terá de conceder desconto para quem ficar com o direito de receber os impostos da montadora.

O governo ainda tentou pôr em votação duas PECs: a que exclui a guarda externa dos presídios das atribuição da Brigada Militar e a que muda o conceito de tempo de serviço público pelo de contribuição. Essa regra impede formas de contagem de tempo fictícias para a aposentadoria. Mas não houve quórum – havia presença de 32 parlamentares. Para aprovar uma PEC, é necessário mínimo de 33.

debora.cademartori@zerohora.com.br

O PROCESSO
Principais etapa para a consulta pública
-O Piratini propõe a convocação de plebiscito
-Na prática, cabe à Assembleia fazer isso, via decreto legislativo.
-Pela lei estadual 9.207, de 1991, a proposta poderá ser apresentada pela Mesa Diretora ou por um terço dos deputados (19 dos 55).
-O decreto é submetido à votação do plenário da Assembleia. Precisa de maioria absoluta (28 votos) para ser aprovado.
-Se o ato de convocação é aprovado, o presidente da Assembleia enviará ofício ao presidente do TRE solicitando providências para realização da consulta.
-Caberá ao TRE-RS organizar o processo e, ao final, proclamar o resultado, além de publicar resolução definindo todos os detalhes, esclarecendo pontos dúbios.
-Mesmo que a maioria dos eleitores aprove a venda, o governo precisará enviar projeto de lei à Assembleia Legislativa em caráter autorizativo. O texto terá de ser aprovado para que o processo tenha continuidade.
-Se a maioria do eleitorado decida por não vender as empresas públicas, o tema não poderá ser reapresentado pelo governo na mesma legislatura.


31 de maio de 2017 | N° 18859
DAVID COIMBRA

  • Wander Wildner e os novos moralistas

    O cantor gaúcho Wander Wildner estava se apresentando numa casa noturna de São Paulo, dias atrás, quando seu microfone foi desligado pelos próprios contratantes do show. Em seguida, eles praticamente o expulsaram do lugar. Alegaram que o cantor havia sido preconceituoso ao proferir a frase “já que nenhuma vadia me traz uma cerveja” e ao se referir a um atendente como “o nego que trabalha no bar”.

    Mais tarde, a casa divulgou uma nota de explicação:

    “A grande questão aí é estarmos dispostos a ouvir, aprender e não repetir os erros. E por isso mesmo não queremos tomar protagonismo dessa luta, não faz sentido, afinal não fizemos mais do que a obrigação em encerrar o show”.

    O texto é confuso, mas revela alguma coisa. Em primeiro lugar, a falsa humildade: eles dizem não querer “tomar protagonismo dessa luta”, mas posam de mestres da ética ao ensinar qual é, na opinião deles, “a grande questão”.

    Que bom que alguém me disse qual é a grande questão.

    Mas o que essas duas malredigidas frases realmente revelam é a covardia do ato. Wander Wildner defendeu-se em uma nota dizendo que quem o conhece sabe que ele não é racista ou machista. Não o conheço, mas sei que Wander Wildner é o tipo de artista que, fazendo um paralelo com a literatura, age como um Bukowski. Basta uma rápida busca no Google para encontrar, nas letras das músicas que ele canta, frases como:

    “Sozinho pelas ruas de São Paulo
    Eu quero achar alguém pra mim
    Um alguém tipo assim
    Que goste de beber e falar
    LSD queira tomar
    E curta Syd Barrett e os Beatles”.

    Ou: "Vou me entorpecer bebendo vinho
    Eu sigo só o meu caminho”.

    Ou ainda:

    “Eu admiro as mulheres que usam seus homens
    Fazem de tudo o que querem por dinheiro ou prazer
    Às duas da tarde, cinco da manhã no carro, na cama, em qualquer lugar
    Sempre a postos pra saciar alguém”.

    Wander Wildner, está cristalino, faz o gênero rebelde desbocado. Suponho que os donos da casa noturna sabiam quem estavam contratando. Por que, então, reprimiram o cantor no momento em que ele se comportava exatamente como se esperava que se comportasse?

    Porque é bonito. É uma delícia manifestar o seu ultraje diante do suposto preconceito alheio. Você prega a sua superioridade moral e, o melhor, a sua vítima não tem como se defender. O que ela poderá fazer? No máximo, fará como fez Wildner. Dirá, em contrição:

    – Fui mal interpretado, eu não sou machista, eu não sou racista.

    Não importa mais. Ele já foi apontado como sendo um monstro, já foi jogado aos tubarões. Mesmo que esteja certo, mesmo que tenha sido uma brincadeira, mesmo que seja apenas uma forma de se expressar, alguém o condenará: “Em 2017, não se admitem mais essas brincadeiras e essas formas de se expressar”.

    Em 2017, o que se tem é o novo moralista, é o vigilante da opinião alheia, é o juiz que condena sem nem ouvir a defesa. Estamos cercados de campeões da luta contra os preconceitos, gente de princípios elevadíssimos, que infla as bochechas para gritar que quer mudar o mundo. Estão conseguindo. O mundo, definitivamente, mudou.

31 de maio de 2017 | N° 18859
FÁBIO PRIKLADNICKI


  • UMA NOITE TRANS

    Era para ser só alegria, mas a noite de sexta começou com um suspense: faltou luz no bairro Independência pouco após o início do show Androginismo, do Coletivo As Travestidas. Felizmente, a energia logo voltou, e os trabalhos foram retomados.

    Assim, as artistas Gisele Almodóvar e Valéria Houston puderam apresentar o espetáculo do início ao apoteótico fim, em uma noite que será lembrada pelos privilegiados que chegaram cedo e conseguiram um ingresso para a sala intimista da Casa de Teatro de Porto Alegre. Embora a atração tenha sido divulgada, a sensação dos presentes era de terem sido convidados para um ato de resistência, colorido e contundente.

    Gisele Almodóvar é uma alter ego do ator Silvero Pereira, que tem desenvolvido um destacado trabalho no teatro e atualmente pode ser visto na novela A Força do Querer. Valéria Houston, bem, é Valéria Houston, cantora cada vez mais reconhecida pelo público gaúcho. Acompanhadas dos músicos Rodrigo Apolinário (teclado) e Rafael Erê (violão), elas apresentaram canções alusivas ao universo trans e à diversidade, começando pela música- título dos Almôndegas. Além da beleza das interpretações, a noite teve seus momentos de descontração e partes sérias, de denúncia à violência cometida contra pessoas trans.

    O Coletivo As Travestidas está no Rio Grande do Sul para uma turnê do ótimo espetáculo teatral Quem Tem Medo de Travesti, que teve aplaudidas sessões no fim de semana na Capital dentro do Palco Giratório Sesc/POA e circulará pelo projeto ArteSesc por Canoas (amanhã) e Passo Fundo (sábado), depois de passar por Montenegro (apresentação marcada para ontem). Merece, claro, uma análise à parte, mas tudo pode ser resumido em um conselho: assista.

30/05/2017 02h00hélio schwartsman


'Lettres de cachet'





SÃO PAULO - Ainda há juízes em São Paulo. Um desembargador teve o bom senso de revogar as "lettres de cachet" que, a pedido da prefeitura, foram expedidas por um magistrado de primeira instância, permitindo que equipes de saúde e a guarda municipal catassem à força aqueles que julgassem ser dependentes de drogas e os obrigassem a submeter-se a avaliação médica para eventual internação compulsória.

"Lettres de cachet", para quem não se lembra das aulas de história, eram as cartas seladas (secretas) assinadas pela coroa francesa que determinavam o aprisionamento ou a internação hospitalar de inimigos políticos, loucos, ébrios, prostitutas e outras pessoas indesejáveis. Em todos os casos, a privação da liberdade era automática e não dependia de julgamento. Essas epístolas se tornaram o símbolo das arbitrariedades cometidas pelo rei, um dos fatores que levaram à Revolução Francesa.

Traço o paralelo histórico na esperança de mostrar que a medida judicial que a prefeitura tentou implantar, ao enfraquecer as garantias individuais de todos, é um problema que vai além da cracolândia. Não seria difícil, afinal, argumentar que a internação, ainda que peque por autoritarismo, visa ao bem dos dependentes. Mais até, as pessoas que vivem nas áreas próximas às frequentadas pelos usuários de drogas têm direito a uma vizinhança menos inóspita.

É difícil discordar disso. Buscar uma resposta para o problema da cracolândia é um dever do prefeito e da própria sociedade. Mas qualquer solução precisa necessariamente estar de acordo com a lei e com a ciência. A iniciativa da prefeitura, infelizmente, contrariou ambas. Passou como um trator por cima dos direitos e garantias fundamentais e ignorou o que a psiquiatria tem a dizer sobre o papel das internações em casos de dependência. E tudo o que conseguiu foi propagar a cracolândia por outras áreas da cidade, multiplicando os transtornos sem nada resolver. 


30 de maio de 2017 | N° 18858 
CARPINEJAR

Bem depois

A dor da perda exige tempo para doer. Saber não é ainda sofrer.

Despedimo-nos de alguém por fora, pelas palavras, mas demora para se despedir por dentro, pelo silêncio e pela saudade. Demora a se desapegar pelos hábitos e pela rotina. Demora muito tempo para uma ferida encontrar a sua saída.

Uma coisa é dizer adeus, outra é não ter mais como telefonar ou visitar ou abraçar ou beijar ou partilhar uma casualidade fora de hora. Ficar sozinho é muito mais fundo do que falar sozinho.

Há conversas que só poderiam ser feitas com um ente que não existe mais. Com o confidente, morrem os nossos segredos. Morre parte de nossa intimidade. A voz prosseguirá apartada dos ouvidos prediletos.

Quando um amigo enfrenta a morte do pai ou da mãe, não me arrisco a elogiá-lo por estar reagindo com coragem. O susto da notícia não é a dor. A surpresa é apenas o começo do luto.

Os dias serão definitivamente diferentes dali por diante. Os sonhos serão as únicas lembranças novas daquela relação.

Por mais que a morte signifique um alívio, com o fim do sofrimento da pessoa amada, sentiremos a falta bem depois. Nenhuma justificativa preencherá a lacuna. Nenhuma religião amenizará a violência de não mais ver e ser visto.

A dor explodirá bem depois, quando ninguém mais comentará o assunto, quando todos continuarem com as suas urgências e o funeral já não provocar condolências.

A esperança confunde nas primeiras semanas, nos primeiros meses, nos primeiros anos, pois ela ainda se alimenta de um passado recente. Complicado quando a esperança também vai se apagando, e você percebe que “até um dia” dito pelo padre era uma metáfora, não acontecerá nesta vida, não terá chance de dizer mais nada, de repor mais nada. Por isso os familiares retardam ao máximo a visita à lápide querida, realmente acreditam que o morto surgirá de repente e que tudo foi um engano.

O velório e o enterro não machucam tanto porque se tem o corpo perto para chorar. O difícil é a lágrima na distância, a lágrima sem pele nenhuma pela frente, a lágrima órfã, a lágrima no futuro.

Triste não é seguir atrás do caixão até a terra, no cortejo melancólico pelos corredores de pedra, apoiado pelos colegas e conhecidos.

É seguir à frente do caixão na próxima década, após o portão do cemitério se fechar, tendo que cobrir um nome com as próprias lembranças e se virar com as perguntas.

A verdadeira dor da perda é falar sozinho. Enfrentar a loucura de falar sozinho.



30 de maio de 2017 | N° 18858
EUROPA 

Lisboa de cara nova

CAPITAL DE PORTUGAL é coroada Cidade Destaque de 2017 com série de novidades de design urbano e arquitetura que tem transformado o dia a dia dos portugueses e surpreendido os turistas

Lisboa é daqueles lugares que não exigem muito esforço para cair na graça do visitante. A arquitetura histórica, de pequena escala e quase despretensiosa, é responsável por grande parte do charme. Há alguns anos, porém, a cidade se abriu para a possibilidade do redesenho urbano. Fez um plano de reabilitação, encomendou novos espaços e repensou as áreas existentes.

A atividade chamou a atenção do Banco Europeu de Investimento, que liberou 250 milhões de euros para a capital portuguesa investir na renovação urbana até 2020. O resultado veio agora: Lisboa renasceu e foi eleita a Cidade Destaque de 2017. A coroação vem de um seleto júri de design e arquitetura da revista britânica Wallpaper, uma das mais renomadas do mundo.

– Essas iniciativas são uma boa maneira de expandir, renovar e estabelecer um diálogo urbano sensível e maduro entre o antigo e o novo, onde uma arquitetura de qualidade faz toda a diferença – diz o arquiteto e urbanista Marco Dudeque, que leciona na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Ele compara:

– Boa parte das cidades europeias já passou por algum tipo de renovação urbana. Talvez a mais conhecida se deu em Paris que, nas mãos do barão de Haussmann, passou por uma revolução urbana até 1870. Lisboa, nas últimas décadas, tem investido na construção de edifícios projetados por arquitetos de renome internacional, criando assim novos marcos urbanos e incrementando o turismo.

Para o arquiteto e urbanista português Miguel Baptista-Bastos, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, a premiação é justa.

– As novas edificações têm contribuído para a melhora da cidade e a maneira como ela é usufruída pelos cidadãos, trazendo novos estímulos – explica ele. – Lisboa é uma das metrópoles mais belas do mundo, não só pela sua história, morfologia, diferentes tipos de arquitetura no mesmo local, uma luminosidade única, como também por sua população, que é de uma enorme simpatia e tem um desprendimento muito salutar.

Confira algumas das novas edificações que redefiniram a linguagem arquitetônica da capital portuguesa, principalmente na região de Belém e nas proximidades do Rio Tejo.

CENTRO CHAMPALIMAUD

A Fundação Champalimaud é uma instituição privada de utilidade pública que se dedica a desenvolver pesquisas biomédicas, principalmente nas áreas de oncologia e neurociências. Em 2010, inaugurou um centro de mesmo nome para fomentar ainda mais pesquisas científicas multidisciplinares.

O projeto é do arquiteto indiano Charles Correa, que criou uma bela relação com a paisagem, devolvendo à cidade uma importante área na zona ribeirinha de Pedrouços, junto a Belém, onde o Rio Tejo encontra o Atlântico, como lembra o arquiteto Marco Dudeque.

O centro é formado por três grandes edifícios interligados e um jardim tropical.

– Neste edifício, percebemos de modo subliminar, porém, visível, a influência do arquiteto Álvaro Siza, nome que não pode ficar de fora quando se trata de arquitetura contemporânea em Portugal – destaca o professor da UFPR.

MAAT

O novo hotspot da cidade é o Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (MAAT), com projeto da arquiteta britânica Amanda Levete. Inaugurado em 2016 no local da antiga central elétrica Central Tejo, em Belém, o museu traz uma linguagem mais fluida e escultural, em que a arquitetura se mimetiza com o terreno em suaves curvas rampeadas, reconectando a cidade à orla marítima, como avalia o professor da UFPR Marco Dudeque.

Apesar do diálogo inteligente com o entorno, a obra de Levete parece com um monstro saído das profundezas do rio, já que sua fachada é coberta por um revestimento geométrico que lembra a pele de uma cobra. A obra custou um total de 17 milhões de euros, que foram subsidiados pela Fundação EDP, um braço empresarial da maior compa- nhia de energia de Portugal. Existem planos de transformar um grande reservatório de gás da região em um restaurante assinado pelo astro Philippe Starck.

MUSEU DOS COCHES

O museu público, que abriga uma das maiores coleções de carruagens do mundo, é o mais visitado de Portugal e precisou sair de um antigo palácio neoclássico do século 18 em meados dos anos 2000, quando a questão ganhou a pauta política.

O arquiteto comissionado foi o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, um dos últimos da heroica geração de modernistas brasileiros da Escola Paulista e o único brasileiro vivo a ter um Pritzker na prateleira, o prêmio de arquitetura mais importante do mundo. O museu continuou na região de Belém e assumiu a ideia de uma praia comunal, elevando-se do chão e criando um novo espaço público. Foi aberto em 2015.

Agência Gazeta do Povo -LUAN GALANI

DICAS DE QUEM MORA POR LÁ

Nascida em Cruz Alta, a jornalista Mariana Scalabrin Müller, 28 anos, está em Lisboa fazendo doutorado. A seguir, ela dá dicas muito legais para aproveitar a capital portuguesa fora das grandes atrações turísticas.

Fundação Gulbenkian

Fora do centro histórico está a Fundação Calouste Gulbenkian (gulbenkian.pt), um espaço lindo que reúne museu, teatro e jardim aberto ao público. Quem gosta de arte pode visitar a Coleção do Fundador, que tem obras de diferentes períodos e áreas. Arte egípcia, greco-romana, islâmica e do extremo oriente são exemplos do que você pode encontrar por lá. Todos os domingos, a partir das 14h, a entrada no museu é gratuita para a coleção permanente e para as temporárias. Também é possível só passear pelos jardins da Fundação, que tem entrada gratuita sempre. Muita gente aproveita os gramados da Gulbenkian para tomar sol, fazer piquenique ou trabalhar (o wi-fi é liberado!). Dá para chegar pela linha azul do metrô, descendo na estação São Sebastião.
Campo de Ourique

O Mercado da Ribeira (ou Time Out Market Lisboa) já é um dos lugares onde mais se encontra turistas em Lisboa. O que nem todo mundo sabe é que a cidade tem outros mercados fora da região central. Um deles é o Mercado de Campo de Ourique (mercadodecampodeourique.pt), reformado em 2013. O espaço é bem menor, costuma estar menos muvucado e tem opções gastronômicas para todos os gostos: bacalhau, carpaccio, hambúrgueres veganos e, claro, doces incríveis.

Sugiro aproveitar para visitar a Casa Fernando Pessoa (casafernandopessoa.cm-lisboa.pt), que fica a três quadras do mercado e vende livros e lembrancinhas do poeta. Se tiver sol, caminhe até o Jardim da Estrela, um parque que tem lago, brinquedos para crianças e um coreto fofíssimo. Fica a poucas quadras do mercado, também no bairro de Campo de Ourique. Quem estiver no centro histórico pode chegar até a região com o elétrico 28, famoso por estar sempre lotado e pelos furtos ocasionais. As outras opções são ônibus, táxi, Uber ou Cabify.



30 de maio de 2017 | N° 18858 
DAVID COIMBRA

Astronautas não tomam banho

Ontem foi o dia do centenário de Kennedy. Há um século cheio, mais um dia, ele nasceu nesta vizinhança, a duas quadras de distância. Sua primeira escola é a escola pública em que meu filho estuda. A mãe dele, Rose, era filha de um prefeito de Boston.

No filme Jackie, protagonizado pela inhugazinha Natalie Portman, Rose aparece pedindo que o corpo do filho fosse enterrado exatamente aqui, no solo antigo da cidade de sua infância, Brookline. Jackie torce o nariz:

– Brookline?... Brookline não é lugar para se enterrar um presidente...

Assisti ao filme em um cinema de Brookline. Quando se deu essa cena, a assistência caiu na gargalhada. Já eu fiquei meio ressentido com Jackie. Bem coisa de nova-iorquino, tamanho desprezo pela vida simples do interior.

De qualquer maneira, o que queria contar é que essa ligação de Boston com os Kennedy tornou o centenário assunto ubíquo na cidade. Há eventos relacionados a Kennedy por toda parte.

Lá na zona sul, à beira do oceano, há um museu que foi construído pelo irmão caçula de JFK, o senador Edward, conhecido como Ted. No museu, há um prédio que reproduz com exatidão o Senado americano. Ted acreditava na importância do Senado, tanto que foi eleito sete vezes, consagrando-se como defensor de causas progressistas, como o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo.

Mas o que interessa é que o museu de Ted Kennedy dedicou o fim de semana passado a um dos temas preferidos de JFK, a exploração do espaço. Homem de grandes ambições e grande arrojo, como sua mulher Jackie, JFK não se contentava com os continentes da Terra. Queria o universo.

Então, no belo museu à beira do mar, estava exposta até uma das cápsulas usadas em viagens ao redor do planeta e, no domingo, um astronauta da Nasa deu palestra. Como o meu filho está numa fase, digamos, espacial, lá fomos nós, ver o astronauta.

Foi interessante. O homem passou seis meses dentro de uma nave pendurada no vazio do espaço. Fiquei me imaginando em seu lugar, flutuando devido à falta de gravidade e vendo o nosso pequeno planeta azul pelo vidro da escotilha, até que ele contou que não há como tomar banho no espaço. Arregalei os olhos. Como é que é? O astronauta confirmou.

– A gente não toma banho – disse, com muita naturalidade, e enveredou por outra questão.

Já eu continuei naquela questão e dela não saí mais. Seis meses sem tomar banho? Meu interesse pela profissão de astronauta terminou ali. Não iria para o espaço se tivesse de ficar seis meses sem tomar banho.

Suponho que o ambiente da nave tenha se tornado desagradável com todos aqueles astronautas suando debaixo de seus macacões cor de prata e exalando diferentes fluidos corporais, mas esse nem seria realmente o problema. O problema é que o banho é um momento importante do dia. Um momento em que você se dedica inteiramente a você mesmo, remove com a água quente o peso e a poeira da jornada e, enfim, relaxa. Ah, agora estou pronto para um tinto suave e um livro denso.

Não trocaria o meu banho pelo espaço. Foi pensando nisso que tomei consciência da minha pequeneza. Não é só em relação ao banho. É em tudo. Pergunte-me:

1. Onde preferia estar? Num restaurante três estrelas de Paris ou numa mesa de subúrbio em Porto Alegre, bebendo chope com os amigos? Resposta: o chope e os amigos.

2. Que férias são melhores? Lugares exóticos na Ásia ou a mesma praia brasileira, na mesma casa, com as mesmas pessoas? Resposta: a praia brasileira.

3. A escolher: um milhão de dólares ou aquela casinha de madeira com pátio que descrevi semana passada? Resposta: bem, vou ficar com o milhão e comprar a casinha.

Não vou ser burro, também, né?

Em todo caso, admito que me falta essa ambição que torna os homens gigantes. A ambição de Jackie e JFK. Eu, ao contrário, não negocio a doce rotina dos dias pela glória sem paz. Nunca seria presidente. Nunca viajaria pelo espaço. Deixem-me aqui, que já tenho muito a fazer. Tanto que vou agora mesmo tomar um banho quente, para relaxar. Aquele tinto e aquele livro estão me esperando.


30 de maio de 2017 | N° 18858
ARTIGO | DENIS LERRER ROSENFIELD

JANOT E A LAVA-JATO

Como se isto já não fosse bastante, o perigo vem também de onde menos se suspeitava, a saber, do próprio procurador-geral da República. Esse, em uma ação intempestiva, sem os devidos cuidados legais, deu início a um inquérito contra o presidente da República.

Não se quer com isto dizer que o presidente não deva eventualmente ser investigado, mas tão somente de enfatizar que, se este é o caso, tal processo deve ser feito segundo os mais estritos parâmetros legais.

Entre esses, não consta abrir inquérito com um áudio não periciado, com frase que nem aparece na edição deste, e, sobretudo, utilizando o nome da Lava-Jato em uma operação que com ela não guarda nenhuma conexão.

Deveria, então, ter encaminhado o novo inquérito à presidência do Supremo para sorteio do relator. No entanto, ao ter aberto essa investigação com o ministro Fachin, teve a intenção de vincular-se a esse patrimônio nacional, como se precisasse dessa cobertura para melhor apresentar-se à opinião pública. Ocorre, porém, que, ao colar-se à Lava-Jato, transmitiu-lhe a pecha de arbitrariedade de seu próprio ato.

Ministros do Supremo, políticos e partidos avessos à Lava-Jato aproveitaram-se imediatamente da ocasião, trazendo novamente à tona o debate sobre a prisão dos condenados em segunda instância. Note-se que essa decisão é de enorme importância por ter dado um basta à impunidade reinante, com processos que se alongavam por anos, terminando por ser prescritos. Trata-se de uma tentativa de volta à impunidade que vigorava até então.

A situação do procurador-geral não está cômoda internamente. Começa a ser cada vez mais contestado. Não foi bem vista entre os promotores sua ausência de cautela ao questionar o presidente da República, sem ter, como assinalado, periciado o áudio que o incrimina.

Ora, o procurador Rodrigo Janot foi açodado e, agora, não passa dia que não procure se justificar, mormente através de artigos em jornais. Em seu afã de se explicar, torna-se ainda mais inconvincente. A sua arbitrariedade está sendo aproveitada para rotular a Lava-Jato de “arbitrária”. Prestou, neste sentido, um desserviço à nação.

*Professor de Filosofia

segunda-feira, 29 de maio de 2017


29 de maio de 2017 | N° 18857
ARTIGO

O DIREITO EM COLAPSO


Perdoem-me os apaixonados e fanáticos, este não será um escrito político. Vivenciamos tempos difíceis na República Federativa do Brasil. As notícias nos surpreendem a cada dia e, para além do que informam, traduzem o reflexo de um Direito absorvido pela política.

Revelam graves ocorrências, porém a maior parte delas obtida por meios ilícitos ou ilegais. Paralelamente a isso, tornam-se moeda de troca em colaborações premiadas. E se não bastasse a aceitação de provas ilícitas no acordo de colaboração premiada, os prêmios propostos são absolutamente ilegais, que significa dizer: não espelham os regramentos dispostos pela Lei 12.850/2013.

Mas afinal de contas, pensa a sociedade em geral, o que importa é que sejam todos presos, justamente porque a ilegalidade quando advém do poder público é aceitável, uma vez que os fins justificam os meios. Ou seja, o que importa mesmo é tomar conhecimento de que algo ilícito ocorreu, não importando de que forma foi descoberto, para que se tomem as providências cabíveis e não cabíveis, doa a quem doer.

Os fins não podem justificar os meios jamais, sobretudo quando está em jogo a segurança jurídica, sob pena de regressarmos a um Estado autoritário.

Ocorre que estes atropelos vivenciados pela politização do Direito poderão ocasionar a impunidade de diversos sujeitos justamente porque quando da colheita da prova não foi observada a legalidade. Para além deste risco, desenha-se situação preocupante sob a perspectiva jurídica: nova interpretação de legislações, ampliação das previsões legais e, consequentemente, a violação da separação dos poderes. É o preço que se paga por conferir ao interesse público respostas rápidas.

A Lava-Jato em algum momento se encerrará e deixará um legado questionável do ponto de vista jurídico. Decisões e colaborações premiadas em desacordo com a legislação vigente que servirão como precedentes ou modelos em casos penais futuros, nos quais talvez não figure qualquer autoridade política ou pública. E, então, fica a reflexão: serão possibilitadas todas essas “benesses”?

Advogada criminalista thais@lfcf.com.br


29 de maio de 2017 | N° 18857 
DAVID COIMBRA

Reinaldo Azevedo e meu filho

Vou contar sobre dois diálogos que tive semana passada. O primeiro, com meu filho. O outro, com o Reinaldo Azevedo.

Agora, no sábado, meu filho perguntou o que é comunismo. Tentei explicar de forma compreensível para um menino de nove anos de idade: comunismo é um sistema em que o governo dá às pessoas tudo de que elas precisam. Elas não pagam por casa, escola ou médico. Todas trabalham e têm as mesmas coisas.

– Mas essa é uma boa ideia! – ele concluiu.

Concordei: – É ótima. Pena que não funciona.

Ele ficou decepcionado.

– E por que não?

– Porque é um sistema em que tudo é muito igual, e as pessoas são todas muito diferentes. Na tua aula não tem alunos que reclamam que fazem bem as tarefas, mas a professora trata melhor outro que não faz tão bem?

– Ah! A Zoe é assim!

– Pois é. Se alguém trabalha mais e melhor, quer mais recompensa por isso. E se irrita se outra pessoa, que não sabe trabalhar tão bem, ganha o mesmo. Além disso, o ser humano inventa muitas coisas pra ganhar com isso. Se ele não tiver como ganhar, não vai inventar. O comunismo seria perfeito se as pessoas fossem perfeitas.

Ele ficou pensando.

Enquanto pensava, lembrei da entrevista que fizemos com o jornalista Reinaldo Azevedo dias antes, no Timeline, da Gaúcha. Reinaldo apregoou com veemência sua crença no liberalismo.

– Eu privatizaria tudo! – bradou. – Tudo! Petrobras, tudo!

Talvez fosse até bom para o Brasil ser comandado por algum tempo por liberais assim convictos, mas sei que, se mantido, esse liberalismo radical fracassaria pela mesma razão do fracasso inexorável do comunismo: a imperfeição do ser humano. Se o Estado não exercer vigilância severa em certas instâncias, os mais fortes inevitavelmente amassarão os mais fracos sem piedade.

Sabedor disso, questiono: por que você tem de se aferrar a uma única fórmula, se pode ter a chance de usar a que quiser, quando quiser? Não é a força a chave da evolução, é a flexibilidade. Assim, você pode dosar. Ora, entrega-se mais poder ao Estado, a fim de controlar um mercado que se tornou ganancioso demais; ora, dá-se mais liberdade ao mercado para gerar desenvolvimento e aliviar a pressão de um Estado que se tornou opressivo.

Flexibilidade é a palavra.

O dogma é emburrecedor, e não apenas na economia. Não acredito na funcionalidade ou na inteligência de nenhum dogma. Nenhum. Virou “ismo”, estou fora. Acredito no indivíduo com consciência de vida comunitária. No homem que preza sua liberdade, mas cumpre o pacto social. Naquele que defende sua privacidade ao respeitar a privacidade do outro. Não o individualismo, que aí é outro “ismo”: o indivíduo.

Já o idealista é um chato categoria “insuportável”, porque é um chato que anda com um arrazoado debaixo do braço para justificar sua chatice.

Mas até entendo o sujeito encontrar uma razão para a sua vida através de uma ideia, que, afinal, é abstrata e, por isso mesmo, mais elevada. Agora, achar uma razão de viver na defesa incondicional de uma pessoa, de um político, de alguém que o “idealista” às vezes nem conhece pessoalmente?

Por favor...

Além de demonstrar pobreza intelectual, isso é muito arriscado. Porque, como disse para o meu filho, as pessoas, definitivamente, não são perfeitas.



29 de maio de 2017 | N° 18857
PERIMETRAL | Paulo Germano

TCE REVELA BAGUNÇA NA SAÚDE 

Uma esculhambação fiscal e administrativa, com prejuízo aos cofres da Capital e aos pacientes do SUS, é revelada em uma minuciosa auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE). No relatório de 251 páginas, obtido com exclusividade pela coluna, os auditores analisam a gestão de medicamentos e materiais hospitalares entre 2013 e 2015, durante o governo Fortunati. Resultado: irregularidades em licitações, compra de remédios por valores exorbitantes, descontrole sobre a situação dos estoques, falta de farmacêuticos e infraestrutura insuficiente.

O processo foi julgado pelo tribunal na quarta-feira passada. Na decisão, o TCE determina que o atual gestor, o prefeito Nelson Marchezan, apresente em 60 dias um plano de ação para sanar a bagunça. É tão precário o armazenamento dos remédios – não há controle sequer sobre os prazos de validade ou sobre o consumo mensal –, que um paciente conseguiria retirar o mesmo medicamento em mais de uma unidade de saúde. Claro: como não há qualquer informatização, não há também comunicação entre as unidades.

O que mais assusta são os valores que a prefeitura andou gastando. Segundo os auditores do tribunal, eles representaram um prejuízo de R$ 2,2 milhões em relação à média nacional. Em 2014, por exemplo, enquanto Porto Alegre gastou R$ 0,42 por cápsula com o medicamento Gabapentina, o governo do Estado desembolsou R$ 0,20 pelo mesmo produto. E, enquanto a Capital pagou R$ 1,15 por comprido com o remédio Levodopa, o Consórcio do Vale do Caí só despendeu R$ 0,69.

Mas e as licitações? Não servem justamente para selecionar a oferta mais em conta? Sim, só que a administração municipal criou um controverso dispositivo chamado “cadastro de marcas” – que, conforme o TCE, é contra a lei.

Funciona assim: entre os requisitos necessários para um laboratório apresentar sua proposta, é preciso que ele esteja em uma lista de marcas previamente aprovadas pela Secretaria da Saúde. “A restrição à oferta decorrente desta exigência importou na realização de contratações mais onerosas (...), o que por sua vez diminui a capacidade do município de atender à demanda de medicamentos da população”, concluem os auditores no relatório.

Outro problema sério é a ausência de técnicos e farmacêuticos nas drogarias do município. Como a legislação exige a presença de um técnico, o Hospital Presidente Vargas, por exemplo, não consegue obter autorização do Conselho Regional de Farmácia para receber medicamentos dos fornecedores. “A ausência de medicamentos (no Presidente Vargas) gerou a necessidade de transferência de pacientes para outros hospitais”, diz o relatório.

Há uma série de outras deficiências, muitas “de caráter histórico”, conforme o conselheiro Cezar Miola, relator do processo, enfatizou em seu voto. Secretário da Saúde até fevereiro de 2015, Carlos Casartelli diz que precisa ter acesso ao relatório para se pronunciar com detalhes. Mas adianta que o “cadastro de marcas” era realizado apenas por servidores estatutários – técnicos da secretaria que, por meio de testes, concluíam que alguns produtos não apresentavam o princípio ativo que o medicamento deveria ter. Por isso, eram barrados das licitações.

Casartelli também afirma que coordenou um projeto de reposição de farmacêuticos, atendendo às recomendações do Conselho Regional de Farmácia.

– O controle de estoque, de fato, não é perfeito. A Procempa não consegue dar conta da informatização e, infelizmente, é preciso ter algumas prioridades – diz o ex-secretério.

A coluna não conseguiu contato com Fernando Ritter, secretário da Saúde de março de 2015 até o final da gestão Fortunati.

A CARA DA RUA

Com sete anos, já fazia coleção de caixa de fósforo, ingresso de cinema, maço de cigarro e tampinha de garrafa. Depois passei para moedas, cédulas, armas, aí me aposentei e resolvi vender. Hoje, só vendo mesmo, não coleciono mais nada. Só filhos – tenho seis.

Gilberto Spolidoro, no Mercado Público


29 de maio de 2017 | N° 18857 
L.F. VERISSIMO

64


Lúcia e eu nos casamos em março de 1964. Fomos morar num quarto e sala da Rua Figueiredo Magalhães, no Rio. Eu, sem emprego, tentava começar um negócio que só provaria minha total inabilidade para negócios. Vivíamos do dinheiro mandado de casa, o bastante para pagar o aluguel e pouca coisa mais. E éramos felizes.

Quando marcamos a data do casamento, me ocupei em saber o que o ano de 64 nos reservava. Não tinha nenhuma crença em desígnios ocultos, mas nunca se sabe. Encontrei uma lista num livro chamado Símbolos.

Descobri que 64 são os caminhos da cabala para o conhecimento.

Que a mãe do Buda era de uma família com 64 tipos de virtude.

Que 64 gerações separavam Confúcio do começo da dinastia Hoang-Ti.

Que Jesus Cristo era o 64º na linha de descendentes diretos de Adão, segundo São Lucas.

Que 64 mulas puxaram a carruagem fúnebre de Alexandre Magno.

Que 64 pessoas carregavam os restos mortais dos imperadores da China.

Que 64 são as casas num tabuleiro de xadrez.

E que 64, oito vezes oito, é o número da plenitude humana.

Deduzi que 64 era um bom ano para começar um casamento. Mal sabia eu…

A lista não dizia nada sobre o general Mourão.

A notícia de que as tropas estão na rua outra vez me enche, portanto, de revolta, mas também de nostalgia. Saudade não do golpe e do que viria depois, mas de nós, naqueles dias. Minha única atividade antigolpe, além de comprar o Correio da Manhã para ler o Cony, era preparar a fuga de uma tia que estava sendo hostilizada no trabalho, caso fosse necessário. 

Mas, quando penso em 64, penso no nosso pequeno apartamento na Figueiredo Magalhães, na festa que era quando sobrava algum dinheiro para jantar no Rondinela.

Não sei se teremos 64 de novo. Nem sei se a tropa já não foi, sensatamente, recolhida aos quartéis. Nossa juventude é que certamente não volta mais.

sábado, 27 de maio de 2017



27 de maio de 2017 | N° 18856 
LYA LUFT

Casas

Começo um novo livro, que chamo A Casa Inventada, deixando de lado por um tempo – de acordo com minha editora Record – o outro, que se chamaria Os Sentimentos Humanos, ou A Casa de Pandora. Pois estava empacado há semanas, me deixando aflita. O vento sopra quando quer, digo sempre, e não adianta lutar com ele: acaba nos derrubando e cobrindo de pó. 

Então, começando a montar a casa, que no meu livro será a vida, a casa da vida que um pouco inventamos, um pouco nos é imposta, leio na ZH de quinta o artigo do David Coimbra sobre casas. Bonito, comovente, tenso e sério como ele sabe fazer. Leiam: vale a pena.

E assim continuo aqui falando um pouco em casas: as que nos recebem quando nascemos, as que criamos para e com nossos filhos, caso os tenhamos, casas que podem ser no chão ou no alto de um edifício. Casa sendo “lar”, isto é, refúgio. Lá onde, apesar de discordâncias, brigas e chatices, nos sentimos abrigados. Esse é o meu lugar, assim como, no Exterior, pensamos no nosso país (pobre país, aliás...) como “meu lugar, minha gente”.

Talvez nem todos sintam isso, mas eu, conhecido bicho da minha toca e mulher da minha caverna, em todas as vezes em que estive em países civilizados, lindos, cultos, a trabalho ou a passeio, tratada a pão de ló, tive permanentemente essa sensação de que meu lugar seria, mesmo mesmo, aqui no Brasil. Esculhambado, colorido, hoje dolorido e preocupante, mas minha gente, minha fala, meu clima, minha alma, meu aconchego. 

Certamente não sou uma “pessoa do mundo”, antes uma espécie de caipira gaúcha, embora nutrida com idioma, livros, uns poucos costumes e comidas do país de origem de meus antepassados – que cá vieram há quase duzentos anos, portanto estamos bastante “amaciados” como brasileiros. Apesar do respeito e admiração pelo espírito de trabalho, ordem, beleza natural e maravilhas culturais, a terra de origem não é a minha casa.

Aliás, há muitas décadas luto contra uma “frau” enérgica, prática, que se põe à minha frente mesmo agora, mãos nos quadris, quando no meio da tarde estou sonhando acordada na minha poltrona da sala, vendo – sem realmente enxergar – a bela paisagem, ou as nuvens, fora: “O quêêê? A essa hora de pernas pra cima sem fazer nada?”.

Na verdade, já não me impressiona muito essa outra Lya, que às vezes assume a forma da mãe, avós, tias, no mínimo sempre de tricô ou livro na mão na hora de “não fazer nada”. Para mim, isso que Freud chamava “atenção flutuante” é hora de trabalho: quando as coisas se forjam e formam dentro de mim, lá nas areiazinhas meio inconscientes do fundo do aquário. De modo que estou nesses dias, semanas, meses talvez, inventando uma casa: com porta de espiar, corredor de espelhos, sala da família, porão das aflições, pátio cotidiano, jardim das crianças e um canto dos deuses...

Só eles sabem o que vai sair disso, mas eu vou em frente: neste computador, ou diante dessa janela, inventando como quem solta fumacinhas de um cigarro arcaico. Porque em tempos remotos, confesso, até eu fumei... “Você fuma de frescura”, diziam os amigos. Logo deixei sem sofrimento o cigarro, a frescura, o perigo de doença, o acúmulo de rugas, o cheiro que hoje me enjoa. Aliás, na minha casa inventada será proibido fumar. (Mas a nuvenzinha, essa era bem simpática.)

27 de maio de 2017 | N° 18856 
MARTHA MEDEIROS

Sexo e os sentimentos

Faz sentido dizer que sexo vale menos que amor? Essa hierarquia só existe para os excessivamente românticos, apegados aos contos de fada

Sexo é sinônimo de prazer. Erotismo, luxúria, pecado, sacanagem. O sexo traz em si um cenário de mil e uma noites de promessas, todas voltadas para a volúpia. Quem nunca praticou é tomado por fantasias libidinosas extraídas do cinema, das revistas masculinas e de piadas e relatos picantes que garantem não existir nada melhor na vida, para horror dos sentimentais e dos pudicos. Sexo melhor que amor? Heresia, fim do mundo.

Faltou dizer que sexo não é apenas prazer: ele é plural, dispara uma conjunção de sensações físicas de alta intensidade que comovem e podem nos levar à paixão – se não pelo outro, com certeza por nós mesmos, tamanho é o processo de autoconhecimento que ele aciona. Não estou falando, obviamente, dos encontros de uma noite só, as chamadas “one night stand”, em que mal se sabe o nome da pessoa com quem estamos e cuja finalidade é praticamente aeróbica, uma aventura para apimentar o cotidiano. Ato sexual não é a mesma coisa que relação sexual.

Quando há relação, todos os sentimentos do mundo invadem a cama – e de uma forma tão contraditória que começa aí o espanto e a graça da coisa. Podemos, em nossa rotina de trabalho, ser um funcionário obediente, cumpridor de horários, servo de nossos patrões, e à noite, na cama, sermos dominadores, entrando no jogo erótico de assumir o controle e dar ordens. 

Ou, ao contrário: depois de um dia liderando e estimulando vários profissionais, nos tornarmos submissos sobre os lençóis, a ponto de escutarmos palavras que normalmente nos ofenderiam e humilhariam, mas que, naquele momento, se prestam ao cenário e à cena: excitação resulta de alguma performance também.

Esta variação de comportamento, ao mesmo tempo inocente e indecente, só é possível porque temos a segurança de saber que naquele instante não haverá julgamento moral, e sim entrega absoluta – e rara. Sexo envolve plena confiança, ou ficaríamos travados, temendo cair no ridículo. Desperta a coragem para permitir que nossos desejos mais secretos sejam expostos e realizados. 

Exige compreensão do tempo que cada um precisa para se desnudar de seus pudores. Requer um olhar generoso e terno para a desinibição do outro e, sobretudo, inteligência – sim, inteligência – para lidar com tudo que há de estranho, ilógico e dicotômico neste embate íntimo. Costumamos valorizar o corpão (que a maioria não tem), mas uma cabeça boa é que faz toda a diferença entre o sexo vigoroso e o sexo protocolar.

Diante desta universalidade de sensações, faz sentido dizer que sexo vale menos que amor? Essa hierarquia só existe para os excessivamente românticos, apegados aos contos de fada. Não é por acaso que transar é sinônimo de “fazer amor”, pois é disso mesmo que se trata, de um êxtase emocional e não apenas físico (ainda que “fazer amor” seja uma expressão enjoada). Sexo pode ser bandido, perverso e impuro em sua essência, nunca em sua conotação. Em análise, sexo é sublime também.



27 de maio de 2017 | N° 18856 
CARPINEJAR

Regime semiaberto

Só a mulher pode decretar o início e o fim de seu regime. E o regime pode durar um mês, um trimestre ou apenas 24 horas. E você, marido, não precisa ser informado com um edital. E não procure tirar vantagem do fim da dieta, que ela pressentirá um duro boicote.

Eu venho enlouquecendo, mas agora já estou entendendo. Quase entendendo.

A minha mulher avisa que está de regime. Vejo que a geladeira será uma horta dali por diante. Não há de comer nada de doce e suntuoso na frente dela. Sumirão as latas de leite condensado e creme de leite. Eu me preparo para a hostilidade bélica, a guerra civil dos talheres. A casa terá uma cobertura extra de linhaça, aveia e flocos. Os passarinhos farão banquete e aparecerão em bando.

Quando me adapto à ideia e passo a respeitá-la com esforço e obstinação, vejo a esposa na cozinha mexendo um brigadeiro com a colher de pau. Tento não demonstrar susto. Se eu perguntar se ela não estava de dieta, ficará brava. Lembrarei que quebrou o voto de abstinência. Faço cara de feliz, e ela me oferece. Comemos raspando a panela.

Aproveitando o embalo, de noite, dou a dica de uma pipoca para assistirmos a nossa série na Netflix. Ela me encara, furiosa:

– Estou de dieta, esqueceu?

Não ouso argumentar, mesmo com a nitidez do brigadeiro nas papilas gustativas de minha língua. Ok, deve ter voltado ao esquema dos grãos. Sigo a rotina espartana. De repente, na semana seguinte ela prepara um pudim. Mastigo, paranoico, com medo de sua reação. Meus olhos são pontos de interrogação e remela. Continuo com as minhas palestras, viajo e recordo de trazer a cocada de sua preferência. Penso em agradá-la. Ela, então, me fuzila:

– Esqueceu de novo que estou de dieta? Você nunca me ajuda...

Ela desencadeia e encerra e renova a reeducação alimentar num passe de mágica. O prazer surge num clarão, a culpa logo corrige a consciência e põe uma pedra no assunto. A sensação é de incoerência e perplexidade, que perdi alguns capítulos importantes da novela.

Para não errar, toda a mulher está de regime. E nunca está de regime. Compreendeu? É sempre regime semiaberto: livre, mas nem tanto. Jamais acertarei o dia do indulto.



27 de maio de 2017 | N° 18856
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

AMOR E RESPEITO: O QUE VEM ANTES?

As escolas de todos os níveis têm recebido críticas crescentes pela maneira com que têm participado da educação dos nossos filhos. Com essa perspectiva fantasiosa, a decepção é completamente previsível: está sendo atribuída à professora de 40 alunos, sentindo-se ameaçada, trabalhando em ambiente desfavorável e com carga horária abusiva, a função de educar os rebentos que não conseguiram ser domesticados por dois pais amorosos e dedicados, apesar de lhes oferecerem um convívio adocicado, amoroso e pretensamente estimulante.

O ser humano não é um animal acomodado ao meio em que foi aleatoriamente inserido. Pelo contrário, é um contestador nato que aparentemente descobre, ainda no útero, que dando uns pontapés consegue uma posição mais cômoda e já nasce gritando e esperneando, e aprende logo no primeiro dia de vida a importância do choro como arma poderosa para tratar a fome e o desconforto de uma fralda suja. 

Como é completamente dependente de ajuda, porque de outra forma não sobreviveria, a paparicação inicial é inevitável. Como faz parte da natureza humana, ele tende a se acomodar às circunstâncias favoráveis, mas acomodação não educa ninguém, precisamos preparar nossas crias para a vida real, que começa a mostrar a cara ainda na primeira infância. É quando se descobre que nem sempre haverá alguém para servir, que chorar não ajuda e espernear só parecerá ridículo. Nesta fase é que se qualifica o pimpolho para o convívio social e o mundo. 

Pois é exatamente nesse estágio da vida que as mudanças na estrutura familiar da modernidade têm se revelado ineficientes. Com ambos ocupados com a atividade profissional, os pais esperam que creche não só ocupe e proteja os rebentos, mas, na medida do possível, oferte os ensinamentos básicos de sobrevivência para a selva social que os aguarda. Num momento crítico da educação da criança, quando ela deveria aprender a identificar os limites do direito de cada um, imposto pela civilidade, o que mais se vê são pais iludidos com a ideia de que precisam se fazer amar e que o resto será mera consequência. Claro que assim a criança será deseducada com a percepção tola de que sempre terá tudo o que quiser. E que ter mais ou menos dependerá apenas da veemência dos pedidos.

Dona Joana viuvou muito cedo e criou quatro filhos homens, que tinham entre cinco e 11 anos quando o marido morreu. Impressionado com a disputa de desvelo com que o quarteto cuidava da mãe quando adoeceu, não resisti em perguntar-lhe qual era o segredo dessa conquista de afeto tão evidente. Ela demorou para responder, e interrompeu a minha primeira tentativa com uma frase pouco convincente: “Esses filhos foram um presente de Deus para compensar minha perda!”. 

Dias depois, às vésperas de uma cirurgia de risco, ela espontaneamente retomou a conversa: “Não foi nada fácil, doutor. Meu filho mais velho era uma peste e a má influência sobre os menores só atrapalhava. Imagina que um dia, aos 14 anos, inventou que eu tinha que lhe dar uma moto. Disse-lhe que não daria de jeito nenhum e que não falasse mais no assunto antes dos 18 anos. Ele, então, me provocou, retrucando: ‘Então não espere que lhe ame até os 18 anos’. Aquilo me doeu, doutor, mas tive forças para dizer: ‘Meu filho, meu dever de mãe não é me fazer amar, mas me fazer respeitar. Porque amor é uma escolha que farás adiante na vida, mas respeito é pra hoje e é uma obrigação!’.”

Dois dias depois, ele esperou os irmãos dormirem, entrou no meu quarto, se pendurou no meu pescoço, sem dizer uma palavra, e choramos abraçados até que ele adormeceu. Daí em diante, ele foi o pai de quem os pequenos já nem lembravam muito bem”.

Não sei por onde andará a Joana e sua prole, mas que frase aquela: amor é escolha, respeito é obrigação.



27 de maio de 2017 | N° 18856 
MÁRIO CORSO - Psicanalista

PARA ONDE VAMOS?

Um dos meus prazeres é ler revista velha, bem velha, de pelo menos uns 20 anos. Para quem, como eu, gosta do mergulho no passado recente, existem dois santuários ecológicos para esse espécime que se salvou do lixo: consultórios de dentistas e casas de praia. Paira um mistério sobre por que territórios tão díspares tendem a aglutinar essas preciosidades, mas assim é.

Encontramos nessas revistas celebridades esquecidas, subcelebridades extintas. Como fomos dar bola para essa gente? O visual, então, esse diz tudo, as roupas, antes elegantes, nem brechó aceitaria. No vestuário, a moda e sua efemeridade são mais visíveis e risíveis.

Sensacionais mesmo são os anúncios de carros fantásticos que hoje são sucata. TVs de tubo incríveis, com uma definição nunca sonhada, do tamanho de uma lavadora e peso de um piano. Ofertas de computadores ultramegaplus em tudo, menos potentes que o celular que está no teu bolso. No setor saúde, nunca falta a notícia da cura iminente do câncer, o regime definitivo para emagrecer, ou remédio para a calvície. E, ainda, o vaticínio de tendências que nunca aconteceram, o proselitismo de certezas que se desfizeram em poeira, ideias revolucionárias de gurus que se mostraram puro modismo.

Nessas páginas, encontramos profecias sobre qualquer coisa, menos os fatos que realmente deram uma nova cara ao mundo: a internet, as redes sociais, os games, o smartphone, o Google, o multiculturalismo, o início do derretimento da fixidez das identidades de gênero. Somos o futuro que ninguém previu.

Desse encontro, tiro duas teses. Primeira: ninguém realmente sabe para onde vamos. Segunda: nos levamos demasiado a sério. Daqui a 30 anos, alguém vai pegar uma revista de hoje e enxergar-nos exatamente como vemos o passado: apegado a quinquilharias como se fossem o máximo, elogiando ideias tolas, acreditando estar no cruzamento cósmico de algo muito especial. O exercício dessa leitura não é saudosismo, mas para entender o exagero de como percebemos o presente. Aproveito como uma imprescindível lição de transitoriedade.

A inflação do presente nubla o essencial. A revista velha nos devolve um momento congelado, onde o ontem ainda mostra-se como presente e por isso captamos como ele se via superestimado. Porém, não é apenas o passado, mas porque já vivíamos, como seguimos fazendo, percebendo a realidade um tom acima. Somos assim, tentamos fazer uma narrativa épica onde às vezes só há repetição, inventamos uma densidade histórica para as banalidades. Uma tentativa de viver numa época especial; afinal, é a que nos tocou. Recentemente, vejo muita gente opinando que vivemos a maior crise econômica e política da história do Brasil. Bom, se você não estudou História, é mesmo.



27 de maio de 2017 | N° 18856 
DAVID COIMBRA

Cem centímetros de glúteos

“Cem centímetros de glúteos!”, foi a manchete que dei no Timeline de sexta, antecipando o tema que abordaria no bloco seguinte do programa. Achei que largar assim aquela frase, “Cem centímetros de glúteos!”, seria impactante. Deixaria os ouvintes ansiosos para saber a respeito e meus colegas, o Potter e a Andressa Xavier, decerto não ficariam menos curiosos, sobretudo o Potter, que aprecia glúteos de bom tamanho.

Minha ideia era ler o release que havia recebido sobre uma modelo brasileira chamada Luana Caettano, eleita Musa do Barcelona. O texto informava: “A morena é dona do maior bumbum da Espanha, o que acabou lhe rendendo o apelido de ‘Bumbum Catalão’, o qual carrega com muito orgulho.”

Embora não tenha ficado claro, concluí que o que ela “carrega com muito orgulho” é o apelido. Ou seja, se você for a Barcelona e passar pela Luana Caettano, pode dizer “E aí, Bumbum Catalão!”, que ela vai gostar.

Pensei realmente que todos se entusiasmariam em saber que uma brasileira é dona dos maiores glúteos da Espanha, título que me parece bastante expressivo. Cem centímetros, afinal de contas, é um metro, a altura de uma criança de cinco anos de idade. Dispor de glúteos com essa dimensão me parecia algo digno de nota.

Mas, quando comecei a dar a informação, o Potter me cortou:

– Ah, mas eu tenho cem centímetros de glúteos!

Aquilo já arruinou-me o entusiasmo. O Potter não tinha de ter me dado aquela informação. Porque, no momento em que ele falou, os glúteos do Bumbum Catalão fugiram da minha mente e foram substituídos pelos do Potter. Não, não, vade retro, eu não queria pensar nos glúteos do Potter! Tentei me concentrar no Bumbum Catalão e seguir com o texto, mas a Andressa observou, até com certo enfaro:

– Ora... Qualquer uma tem cem centímetros de glúteos...

Qualquer uma... Senti certa admiração pela colega. Mas é claro que ela estava se referindo às brasileiras. Andressa poderia dizer: qualquer brasileira tem cem centímetros de glúteos e o Potter também. Eu acreditaria nela, devido ao nosso sabido apreço pelos glúteos.

Sempre pensei que isso tem algum significado. Não deve ser por acaso que a palavra “bunda”, tão redonda, tão globosa, tão perfeita para definir essa região do corpo humano, nasceu no Brasil. É uma história conhecida: muitas das escravas que foram trazidas da África vinham de Angola e Luanda, onde se falava o idioma mbundu. Eram mulheres belas, de longas pernas e nádegas generosas, porém sólidas. Os portugueses salivavam quando as viam e comentavam entre si:

– Que bunda!

Isto é: as bundas eram admiradas pelas bundas que tinham e, assim, as bundas das bundas, que antes não eram chamadas de bundas, mas de nádegas, tornaram-se bundas, conceito que passou a abranger não apenas as bundas das bundas, mas as bundas de todas as mulheres e também dos homens.

Esse cadinho de raças, que é o Brasil, aperfeiçoou a arte do drible, do passe de trivela, da lavagem de dinheiro e as bundas das mulheres. Hoje, encontramos loiras com bundas de negras, e quando isso acontece é a glória.

Agora, una a genética privilegiada pela miscigenação à tecnologia dos exercícios para os glúteos nas academias e o que resulta? Sucesso internacional, como a moça que ganhou o título de Bumbum Catalão, com seus cem centímetros desprezados pelo Potter e pela Andressa.

Continuo não desprezando aqueles cem centímetros, embora tenha sido desprezado no programa. Meus colegas fizeram pouco caso da minha informação. Descartaram-na em um minuto e já se puseram a falar de algum obscuro deputado. Tudo bem, seguirei em frente com minhas convicções. Continuo pensando que nosso amor pelos glúteos produziu algo na nossa psiquê. Continuo desconfiando de que somos um subproduto da bunda. Desenvolverei melhor essa tese. Mas não contarei minhas conclusões para o Potter e a Andressa. Fiquem eles com seus deputados.