segunda-feira, 29 de julho de 2019


29 DE JULHO DE 2019
CLÁUDIA LAITANO

Lavrando a alma


Em uma gelada manhã de inverno, um pai agasalha a filha de três anos antes de saírem juntos para ir até o supermercado. Pai e filha conversam e se divertem pelo caminho. No caixa da loja, o pai se distrai tirando as mercadorias do carrinho e perde a menina de vista por alguns instantes. Quando procura por ela, percebe que a filha desapareceu. Esse é o ponto de partida do romance A Criança no Tempo, de Ian McEwan, que dá forma a um dos piores pesadelos de pais e mães. O livro, na verdade, vai além, abordando de forma ampla a maneira como nossa época lida com a infância, mas muita gente considera o argumento simplesmente intransponível.

Todos temos nossos limites - terror, violência explícita, tortura psicológica... - mas, nos últimos tempos, parece haver uma epidemia de sensibilidade exagerada em relação ao tratamento de determinados assuntos na arte. Os americanos batizaram de "trigger warnings" (algo como "avisos de gatilho") os sinais de alerta que acompanham obras que

podem vir a ferir suscetibilidades. Os "trigger warnings" costumam aparecer onde menos se espera: Simba sofrendo com a morte do pai em Rei Leão, Chapeuzinho Vermelho sentindo-se ameaçada pelo lobo, Harry Potter sendo maltratado pelos tios... Tudo potencialmente devastador. Ou assim pensam alguns.

O extremo oposto da sensibilidade exagerada é a eliminação de todas as sutilezas. Ali alimenta-se a ilusão de que é possível domesticar o potencial transgressor da arte classificando as obras conforme uma noção particularmente estreita de moral. Segundo esse ponto de vista, uma cinebiografia de Irmã Dulce sempre será melhor do que a de Bruna Surfistinha - não importando se o diretor do filme é Bergman ou Mazzaropi.

Aristóteles dizia que a tragédia nos fascina pelo seu poder catártico. Vivendo as emoções dos heróis trágicos como se fossem nossas, de alguma forma purgamos esses sentimentos e nos libertamos deles. Gosto da ideia de que a arte lavra nossa alma, tornando-a mais fértil para sentir e compreender o mundo a nossa volta. Li A Criança no Tempo sentindo cada excruciante detalhe da dor de Stephen e Julie, pais da pequena Kate. Não porque gosto de sofrer, mas porque gosto de autores que nos convidam a contemplar o abismo. E voltar.

CLÁUDIA LAITANO


29 DE JULHO DE 2019
DAVID COIMBRA

O que aproxima Bolsonaro de Sócrates

Com o inexorável passar do tempo, Bolsonaro vai se acostumando com a Presidência. O que não significa que tenha compreendido o que é ser presidente do Brasil. Não compreendeu ainda, mas sente-se mais confortável na função e, por isso, está mais confiante. E mais propenso a falar o que pensa. Eis o problema.

Bolsonaro sempre foi um homem com baixa capacidade de filtragem de opiniões. O que lhe vem à cabeça rapidamente desce para a boca, sem grandes obstáculos. Talvez seja ele também um fruto das redes sociais, que estão sempre solicitando o nosso alvitre sobre tudo.

Vá saber.

O fato é que Bolsonaro está falando sem parar, e isso tem sido uma experiência assustadora para quem ouve. Nos últimos dias, foi como se estivéssemos em um tiroteio. Bolsonaro nos metralhou com disparates verbais sem descanso. Foi bala vindo de todas as direções, impossível não ser atingido por uma: filmes como Bruna Surfistinha não devem ter financiamento por causa da família brasileira, governadores do Nordeste são "paraíbas", não existe fome no Brasil, Miriam Leitão não foi torturada, a questão ambiental é para veganos que só comem vegetais, a recusa a responder sobre a carona para parentes na aeronave da FAB, a defesa do trabalho infantil, não deveria ser exigido exame na concessão de carteira de motorista e, finalmente, Glenn Greenwald "pode pegar uma cana".

Meu Deus!

Por favor, não me chame de petista só porque estou apavorado com esse espancamento opinativo. Sei que Bolsonaro se justifica por ser oposição eterna ao PT e que, quando alguém o critica, o argumento sempre é a lembrança de algo que Lula fez. Tipo: "Ah, você está falando que ele persegue o Greenwald, mas o Lula também quis expulsar um jornalista americano do Brasil". É verdade. O Lula fez muita coisa errada. Mas não é com o Lula que devemos nos preocupar agora. Lula está preso.

Já Bolsonaro governará por mais três anos e meio. O risco de que ele passe a fazer as coisas que diz é enorme. O que pode nos salvar?

Eu sei o que pode nos salvar. O próprio Bolsonaro mostrou o caminho. Basta se perguntar: qual é a melhor área do governo?

Resposta: é a economia. Você pode não concordar com a pauta liberal de Guedes, mas ele sabe o que está fazendo, ele entende do assunto, e sua receita, ao fim e ao cabo, tem chance de dar certo.

Vem então a segunda pergunta: por que esse setor do governo funciona? Segunda resposta: porque Bolsonaro admitiu que não sabe nada de economia. Ele reconheceu a sua ignorância e fez o correto: cercou-se de quem sabe.

É isso que Bolsonaro precisa entender: a sua própria ignorância. Sua profunda, sua imensa ignorância.

Compreenda que não estou ofendendo Bolsonaro. Estou compreendendo que ele tem preconceitos porque não conhece acerca do que fala. Não é por maldade, é por desconhecimento. Ele não conhece a questão ambiental, ele não conhece a história de Miriam Leitão, ele não conhece os estudos mundiais sobre segurança no trânsito, ele não conhece muita coisa.

Bolsonaro, portanto, é um ignorante, o que jamais será um mérito, mas também não é nenhuma falha de caráter. Ninguém sabe tudo sobre tudo. Mesmo a pessoa que sabe muito sobre muito sabe pouco. Donde a necessidade de mais calar do que falar. E de se consultar com quem sabe. Isso seria mais do que prudência; seria inteligência. Seria se espelhar em um dos homens mais sábios da história do mundo, o velho moscardo Sócrates, que vivia a repetir: "Eu só sei que nada sei".

DAVID COIMBRA

sábado, 27 de julho de 2019



27 DE JULHO DE 2019
LYA LUFT

Trocando sinais

Tenho falado e escrito sobre dramas ou alegrias no convívio humano, amigos, amores, família (que significa amor e amizade também).

A dificuldade de comunicação é uma realidade, por vezes pungente, outras até cômica, ou ainda dramática. O filho ou amigo que de repente se queixa: “Aquela vez você me disse isso, e me doeu tanto, que ainda não consegui esquecer”. Mas quando foi isso? Uns 10 anos. Cinco. Mais ainda. E a gente se espanta: “Mas que loucura! Eu jamais te diria isso! Aliás, nem uso essas palavras!”.

Um dos dois tem razão, jamais saberemos qual, pois memórias são muitas vezes fantasias, não só em crianças, em adultos também. Tudo se confunde um pouco nas névoas do tempo, análise e terapia podem mostrar isso. Quanto sofrimento por engano, quanta chateação vã.

E mesmo que a gente tenha dito aquilo, ou feito aquele gesto, ou virado as costas e ido embora, hoje já não somos aquela pessoa de anos atrás: podemos estar piores, mas muitas vezes mais mansos, mais amorosos, mais generosos, porque mais sofridos.

Mais experientes, o que em geral nos torna mais tolerantes, menos críticos. (Ou não.) Enfim, o que pretendo aqui é comentar, mais uma vez porque é sempre real e frequente, essa troca de sinais confusos, esse desencontro entre a intenção de quem dá ou faz, ou diz, e o que recebe, sente, sofre – com ou sem razão. Muito conflito assim se desenrola injustamente, tolamente, porque mal-entendidos, enganos, nos atropelam a cada hora neste labirinto numa floresta que é o dia a dia.

Além de tudo, há tantas visões do mundo, tantas interpretações dos fatos mais corriqueiros, quantos seres pensantes existem: cada um com sua disposição: cética, otimista, trágica ou indiferente. Feliz ou tristonha. No fundo, a vida é um teatro, e um cenário com muitas portas, que estavam ali – ou que nós desenhamos. Mas, aqui e ali, abrem-se para encontros que nos transformam, nos tranquilizam, ou nos servem e servirão de apoio, porto, acolhida e força. Além daqueles que nos destroem, nos fazem adoecer, nos rasgam ao meio, ou por alguns momentos nos sombreiam com surpresa e decepção.

Somos em parte vítimas, em parte autores, desse teatro simples e terno, ou louco e trágico, ou maravilhoso. Nos vestimos nos camarins, rimos ou choramos atrás das cortinas. Também vendemos entradas; às vezes, vendemos a alma.

Atropelos, tolices, dramas ou mal-entendidos, embora criados por nós, dificultam essa tarefa existencial, que precisa de resistência, calma, audácia e fervor – e de alegria, quando aprendemos a contornar as armadilhas e nos construímos, do jeito que dá, do jeito de cada um, muitas vezes com alguém.

Da mesma forma que entre amigos, família, amantes, ou meros conhecidos, todos trocamos sinais – também eu e meus amigos imaginários de agora: meus leitores. Por isso, escrevo.

LYA LUFT

27 DE JULHO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

Um projeto de passado


Em 1970, eu tinha nove anos e a certeza de que vivia no melhor país do mundo: não havia violência, fome, desemprego, só paz e amor. Um general assumiu a presidência e dali por diante eu cantarolava pela casa uma música que dizia "Ninguém segura a juventude do Brasil". Nos adesivos dos carros, lia-se "Brasil, ame-o ou deixe-o". Se alguém não gostava daquele paraíso, tinha mesmo que sumir, pô, que ousadia se queixar de uma nação próspera e pacífica. Ganhamos a Copa do México, ninguém perdia um capítulo de Irmãos Coragem e eu rezava todas as noites, agradecida a Deus pela sorte de ser brasileira - aliás, o que Ele também era.

Em 1980, eu tinha 19. Fazia a faculdade de Comunicação e namorava um colega que não parecia em nada com um galã de novela. Assistia aos filmes do Godard, tinha Simone de Beauvoir na mesa de cabeceira e cantarolava Beatles e Rolling Stones. Colecionava uma revista chamada Pop e ainda estava impactada pela peça Trate-me Leão, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone. Pela TV, acompanhava a volta de exilados políticos (Gabeira, Brizola, Betinho), entendendo finalmente que aquele país da minha infância era um paraíso de fachada - não havia liberdade. Seguravam a juventude do Brasil, sim, com tortura e desaparecimentos súbitos. Já não rezava.

No curto espaço de 10 anos, deixei para trás a alienação e entrei na vida adulta, bem menos cor-de-rosa, porém mais verdadeira e interessante. E a partir de então, fui moldando minha mentalidade à medida que o mundo mudava, e como mudou. Se antes mulheres eram obrigadas a trocar de sobrenome ao casar, logo passaram a praticar livremente sua sexualidade e a ganhar seu próprio dinheiro. Depois da ditadura, vieram eleições diretas. Viajar ficou mais fácil. 

O cinema brasileiro se fortaleceu, escolas promoviam Feiras do Livro, veio a TV por assinatura e seus múltiplos canais. As alterações climáticas provocaram consciência ambiental, a internet revolucionou a forma de se trabalhar e se relacionar, o preconceito contra homossexuais diminuiu. O politicamente correto, mesmo chato, ajudou a civilizar as relações. Passamos a ter acesso ilimitado à informação, evoluções na ciência e na medicina, mais proteção aos animais, inúmeros movimentos pró-aceitação das diferenças. O mundo avançou, mesmo aos trancos, mesmo ainda com muita violência, mesmo ainda com desigualdade. Avançou porque todos nós - cidadãos, instituições, nações - temos um projeto de futuro.

Ninguém em sã consciência investe num projeto de passado. Não é natural, não é racional, não é inteligente. Portanto, que sigamos abrindo portas e janelas, arejando nossas cabeças, saudando o novo, aprimorando o que ainda não está bom, amadurecendo nossas escolhas - crescendo, enfim. Com alegria, liberdade e confiança. Enfrentemos as dificuldades inerentes a toda caminhada, em vez de apoiar um retrocesso piegas, simplório e mal-intencionado, que só visa nos iludir com um mundo que não existe mais.

MARTHA MEDEIROS


27 DE JULHO DE 2019
CARPINEJAR

Bicho de duas cabeças

Apaixonado esquece tudo. Como se a memória anterior não valesse mais, só porque a pessoa com quem vem saindo não estava nela antes.

Apaixonado perde celular, chaves, fones, carregador, cartão de crédito, identidade - é um caos ambulante. Tem grande chances de entrar no Serasa pela primeira vez, por atrasos em suas faturas.

Quanto maior o apagão, maior a paixão.

No momento em que conheci Beatriz, a minha esposa, eu permaneci com o olhar boiando, a ver navios, a ver aviões, a ver unicamente o próximo encontro com ela.

Cheguei ao extremo de esquecer uma mala na portaria do hotel. Estava em São Paulo para uma palestra. Na hora do check-in, peguei a minha mochila e segui embora, para Porto Alegre. Abstraí que estava com bagagem. A amnésia foi tão grave que percebi o lapso apenas quatro dias depois. Ou seja, embarquei sem nenhum sofrimento, sem sentir nenhuma pontada de remorso por estar deixando algo para trás. A fissura não tem passado. E não me desesperei para localizá-la, não queria mesmo perder a mulher de minha vida. O meu foco se destinava a um rosto, apagava todo o resto.

Resisti a uma época de vultuosa displicência. Não sei como não fui preso. Comprei roupas em uma loja e parti sem pagar, na maior cara-de-pau. O atendente correu em meu encalço pelo shopping para avisar que não havia acertado o valor. Tentei entrar em um carro que não era meu no estacionamento, disparei o alarme em minhas vãs tentativas de arrombamento e chamei o seguro por não estar conseguindo abrir a porta. Também faltei a reuniões de negócios, cabulei aniversários de amigos, não retornava as ligações para ninguém... Empilhei vexame em cima de vexame. E nenhum incidente estragava o meu bom humor. Tudo o que acontecia de errado tornava-se história para mostrar a Beatriz o quanto ela estava se envolvendo com um louco. Louco por ela.

Se paixão é desmemória, o amor é o contrário: excesso de memória. Não esquecemos mais nada e passamos a cobrar e fiscalizar o outro. Trocamos de extremos. Substituímos a leveza pela possessividade. Não aceitamos enganos com a mesma facilidade de antes. Não perdoamos a mínima mudança de hábitos. Ficamos em cima controlando o que cada um faz e deixa de fazer. É um estresse da intimidade, um excesso de visibilidade que beira à neurose. Temos ataques quando alguém perde algo. Já soltamos os cachorros: "Não presta atenção, não dá valor ao que tem, não se importa, onde anda com a cabeça". Armamos escândalo quando um dos dois deixa vencer a data de um boleto. Telefonamos para os amigos quando o celular anda desligado. Contamos os minutos, os trocos, numa completa avareza de viver.

Para quê? Deveríamos nos apaixonar de novo e sempre por quem a gente ama. Para perceber que objetos vão e vêm, desde que resista ao nosso lado aquele com quem escolhemos nos casar.

CARPINEJAR


27 DE JULHO DE 2019
CLAUDIA TAJES

A tinhosa

Tudo certo para uma noite muito esperada, nada de festa, sexo e loucuras, algo muito melhor do que tudo isso junto. Uma noite de sono. O banho deixou na pele aquele cheiro reconfortante de sabonete que se espalha pelas cobertas, a coluna vertebral enfim terá seu prêmio por segurar no osso - literalmente - mais uma jornada: o colchão. Não foi um dia fácil, os dias não têm sido fáceis. Nada que se compare ao perrengue que tantos vêm passando, mas o cansaço é forte. Você decide que não vai ler, nem espiar a vida excitante dos outros nas redes sociais. Então puxa o edredom até a cabeça, apaga a luz, fecha os olhos para antecipar a delícia de não existir por algumas horas. E continua acordado.

Por que ela aparece assim, do nada, sem aviso, sem convite? Sem ter dado uma pista de que surgiria no escuro do quarto, na beirada da cama? Insônia, sua bandida. Danada. Safada. Pulguenta. Filha do tinhoso. Sua coisa ruim.

Quanto mais você lembra que precisa acordar cedo, que não se beneficiará sequer da função soneca do despertador, a corda no pescoço no dia seguinte, mais espaço ela ocupa. No início, seu otimismo acredita que a visita será breve. Tão logo termine de se culpar pelo trabalho que não terminou, e sofrer pelos boletos que não pagou, vai fechar os olhos e entrar naquele estado maravilhoso do nada, a alma fora da tomada. 

Vã esperança. Você já pensou no trabalho, nos boletos, na discussão com a colega de escritório, nas provas da faculdade, na lição de casa que o seu pequeno não fez, na ração da gata que você não comprou e até na roupa que esqueceu dentro da máquina. Só lavando de novo para tirar o cheiro de cachorro molhado que, talvez seja paranoia sua, já dá para sentir no quarto.

Insônia, sua infeliz. Miserável. Medonha. Diabólica. Pérfida. Capeta. Sua biltre.

Agora ela já não é visita, chuta suas canelas, faz bololô nas cobertas. A você resta a bordinha da cama, como quando seu marido abre os braços na queen size. Ou quando a sua namorada executa, dormindo, o espacato que faria o cotovelo da Daiane dos Santos doer. Ficar insone ao lado de alguém que rapidamente passa para o estágio mais profundo do sono significa se adaptar ao que sobra, alguns centímetros de área, um pedaço de lençol. De pouco adianta cutucar aquele/aquela que, ao seu lado, ressona. O sono alheio é egoísta, é mertiolate na ferida.

Mequetrefe. Pulha. Sacripanta. Sórdida. Chata de galochas. Futre. Nóxia. Tóxica. Insônia, sua mistura de mal com atraso e pitadas de psicopatia.

Você faz o seu Esta é Sua Vida em looping e, a cada edição, entram mais personagens que o certo seria não lembrar. Vontade de processar uns e outros pelo sono perdido. Talvez a sua advogada encontre alguma brecha na lei para isso. Aos poucos você entra na fase dos planos mirabolantes. A exaustão é tamanha que as ideias mais estapafúrdias parecem saídas perfeitas. 

O Macedo acaba de dar bom dia para os ouvintes no rádio. Alguma claridade já atravessa as frestas da persiana. Justo agora que a cama parece abraçar e que vem um calor tão bom do corpo ao seu lado. Aliás, se não fossem os roncos, você diria que era um corpo mesmo, nenhum outro sinal vital há horas. Seus olhos pesam, pesam, pesam até fechar. Por alguns instantes, a cabeça vazia. Até que o despertador toca.

Insônia, sua desalmada. Sem serventia. Insensível. Perversa. Malévola. Moléstia da peste. Malvada. Se vier deitar comigo esta noite, vê se me traz um bom assunto para a coluna da semana que vem. Sua celerada.

CLAUDIA TAJES



27 DE JULHO DE 2019
LEANDRO KARNAL

O HUMANO E O DIVINO

Se sua religião não permite o riso, recomendo evitar esta crônica. Descrevo caso verídico e, quase sempre, a realidade é ofensiva para gente pudica. Siga por sua conta e risco. Perante todos os tribunais, posso garantir: tudo é expressão fiel dos fatos. Fora a tentativa de redação mais retórica, estamos diante da verdade.

Eu estava dando curso em uma pós-graduação no Sul. A instituição é católica e dispõe de uma capela no campus. Estudioso de arte religiosa e admirador de arquitetura sacra, dediquei o intervalo do almoço para conhecer o local.

A solução do espaço é de rara felicidade. Nem repetia algum neogótico estranho nem se aventurava em uma modernidade além do plausível. O espaço fora concebido em forma de tenda com um belíssimo mosaico junto ao altar. Vitrais modernos, claridade, luz e nosso olhar dirigido com habilidade para um vórtice ao alto. Tudo me agradou no ambiente cercado de verde. Fiquei ali por quase uma hora decifrando as imagens e lendo sobre o projeto na internet. O frio intenso da rua não chegava ao interior. Era um espaço silencioso e que convidava à reflexão.

Minha descoberta parecia ter outros adeptos. Jovens universitários entravam, persignavam-se, faziam genuflexões variadas (os códigos católicos têm menor padronização do que outros credos) e passavam alguns minutos imersos em oração.

Havia um suave entra e sai da sacra e silenciosa atmosfera. Um rapaz chamou minha atenção, pois entrou e ficou alguns metros à minha frente. Ajoelhou-se no chão de pedra fria e lá se quedou, extático. Era um asceta moderno, um penitente talvez, certamente um ser sem artrite ou problemas nas articulações.

"A graça supõe a natureza", dizia o grande Tomás de Aquino, outro afeito a ambientes universitários e piedade. Já tendo tomado notas para uma futura escrita sobre arte sacra, eu apenas admirava a capacidade daquele fiel em permanecer tanto tempo com as patelas (as antigas rótulas) pespegadas à dura pedra.

Como diria um sábio confessor na minha juventude, "o inimigo é ardiloso". Quando eu já me preparava para sair do mundo diáfano e transcendente, o orante cometeu sonoríssimo flato. Foram sons prolongados e com variações de timbre e intensidade quase musicais, seguido de repiques menores à guisa de contratema aos estampidos iniciais. A duração foi inacreditável, e, graças à acústica do lugar, de efeito redobrado. Aquele som tão humano, seguido de acre e sulfúrica exalação pestilenta, surpreendeu-me muito. Era algo que não combinava com a cena, ou, usando o verbo que aprendi em São Paulo, não "ornava".

E o autor do "atentado"? Como ele reagiu à, digamos, "involuntária" confissão de humanidade? Nada parecia denunciar que aquela alma se perturbara com a interferência do corpo. Talvez sua mente flanasse entre coros de querubins, indiferente aos males da Terra, inclusive aos danos causados. Nenhuma reação, abismada leitora e estupefato leitor. Nada! Ele continuava de joelhos, mãos postas em oração e olhos cerrados. Nem sequer um discreto risinho, uma tosse ou um rubor, tão comum em autores dessas infrações, denunciaria ser ele o réu incontestável do delito de lesa-sociabilidade. Estivesse lotado o ambiente e nunca se diria que partiu daquele místico tão pútrida emanação.

Saí às gargalhadas e rindo segui para a sala. Contei o caso a um amigo que levantou hipótese inaudita. E se a graça pedida com tal fervor tivesse sido, exatamente, essa? E se o foco da dedicação mística tivesse relação com o incômodo de um intestino preso e, tendo demonstrado a capacidade de sacrifício corporal, ele tivesse obtido aquilo que anelava? Não imaginaria tal dado, porém, se fosse verdade, eu teria presenciado uma ação direta do divino, ou, se preferirem, um milagre. O que meu olhar incrédulo supunha ser uma profanação poderia ser o atendimento de um sincero e justo desejo. Supus delito, poderia ser prece ouvida.

Nunca saberei se eu estive diante de alguém com incontinência gasosa ou uma pessoa agraciada por forças superiores. A capela continua lá, linda na sua singeleza. Alunos e professores passam rapidamente pelo local. Somente eu, aquele devoto e Deus fomos testemunhas do ocorrido. Sendo cético, em um processo de canonização futuro, meu depoimento teria um valor enorme. Como o poeta Gonçalves Dias, "meninos, eu vi". Aliás, vi, ouvi, cheirei, fugi e ri.

O humano se insinua em tudo. Na Teologia, o plano de Deus tece urdiduras complexas com a percepção dos homens. Sob "a espécie da eternidade", o que presenciei foi um sopro passageiro, com o caráter duvidoso da expressão para o caso. A religião é maior do que um cronista irônico ou até do que um orante flatulento. A piedade sempre superou as falhas individuais. Seria o caso de evitar o cacófato e deplorar "fé demais"? Deveríamos recriminar o rapaz pela conduta inadequada no local? Melhor perdoar com misericórdia o caráter humano que, afinal, nos irmana e iguala. Ainda que nem sempre em locais sagrados, todos já imitaram o devoto. É preciso manter a esperança e, provavelmente, um pouco de humor.

LEANDRO KARNAL


27 DE JULHO DE 2019
COM A PALAVRA

"SÓ NO BRASIL EXISTE PRISÃO EM CASA. É UM SISTEMA QUE FUNCIONA MAL."

Entrevista | FAUSTO DE SANCTIS - Desembargador, 55 anos, Hoje juiz do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em São Paulo, foi o responsável pelas operações Satiagraha e Castelo de Areia.
Juiz responsável pela Satiagraha e a Castelo de Areia, operações da Polícia Federal que antecederam a Lava-Jato, Fausto De Sanctis condena o vazamento das conversas entre integrantes da força-tarefa, publicadas pela imprensa há mais de um mês. Para ele, os diálogos só servem como "curiosidade" - acessados de modo ilegal, sequer podem ser periciados ou considerados provas, afirma.

Polêmico, Sanctis viu suas duas principais ações serem anuladas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e se indispôs com ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Hoje desembargador no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), em São Paulo, concedeu entrevista por telefone a ZH de seu gabinete na Avenida Paulista.

- Não falo de casos concretos - alertou, no início da conversa.

Durante uma hora, defendeu os colegas da Lava-Jato e criticou o STF. No passado acusado de parcialidade (assim como Sergio Moro), diz que a influência política não se dá sobre o juiz de primeiro grau, mas sobre os ministros da mais alta corte do país.

A OPERAÇÃO CASTELO DE AREIA FOI UMA ESPÉCIE DE ESBOÇO DA LAVA-JATO, MAS QUE NÃO ATINGIU A MESMA REPERCUSSÃO. O HOUVE DE DIFERENTE?

A Castelo de Areia buscava a corrupção sistêmica, exatamente o que se descobriu na Lava-Jato - uma rede de grandes empreiteiras com conexões políticas que desvirtuavam os princípios das leis de licitações. Mas, na época, não existia esse apoio popular que a Lava-Jato obteve. Pouco a pouco, por conta das operações do passado, a população começou a tomar conhecimento da existência de uma corrupção sistêmica. E não existiam os mesmos instrumentos, como o uso das mídias sociais de forma livre, com críticas e questionamentos das decisões públicas. Esse uso permitiu a contestação pública de atos de autoridades políticas ou do Judiciário. Assim, quebrou-se o controle da informação, porque a mídia social não permite o filtro da informação dada à população. Na época, havia um certo controle por boa parte da imprensa. A Castelo de Areia enfrentou esse obstáculo, de não ter o apoio da população em ver o caso e considerá-lo grave, para dar uma resposta à altura da organização criminosa que havia no Brasil.

OS MÉRITOS DA LAVA-JATO PASSAM PELO APOIO POPULAR?

Há também a crise econômica, que notabilizou o momento da Lava-Jato e permitiu essa insatisfação popular. Na Castelo de Areia, havia crescimento econômico, as pessoas não estavam preocupadas com a corrupção porque estavam em um ambiente satisfatório. A corrupção dos agentes públicos, aliada à crise econômica decorrente dessa corrupção, provoca a manifestação pública, a insatisfação. Estudos mostram que a satisfação econômica faz com que as pessoas fiquem alheias ao combate à corrupção. Hoje, a população sabe que qualquer desvio de olhar para as instituições vai a favor do ambiente da corrupção. Esse combate é um trabalho permanente de vigilância social sobre as ações das autoridades públicas.

NESSES MOVIMENTOS, SURGIU A FIGURA DO EX-JUIZ SERGIO MORO COMO SUPER-HERÓI. O SENHOR CONSIDERA ESSE PROTAGONISMO POSITIVO?

Diante dos escândalos revelados pela Lava-Jato, a população ficou carente de líderes políticos. Aí, passou a eleger outros líderes. Todos aqueles que estão combatendo de maneira legítima o status quo acabaram sendo vistos como heróis. Eu também passei por isso e não acho correto. Quando a população identifica heróis, ela também identifica vilões. E esses vilões estão cada vez mais claros.

A SATIAGRAHA E A CASTELO DE AREIA ACABARAM ANULADAS. AO OLHAR PARA TRÁS, O QUE O SENHOR TERIA FEITO DIFERENTE?

Nenhuma decisão minha foi como hoje, quando as autoridades judiciais tomam uma decisão e, após dois meses, vem uma liminar contra a decisão colegiada, aí a decisão colegiada não vale mais, passa a valer outro entendimento... Essa insegurança jurídica propiciada pela alta cúpula tem desacreditado o Judiciário no Brasil e no Exterior. Para mim, que tenho dado palestras no Exterior, é constrangedor. Em termos de eficiência, a Lava-Jato é considerada o único exemplo institucional da Justiça brasileira. E é atacada por todos os lados.

MAS O SENHOR TERIA AGIDO DIFERENTE?

As decisões foram baseadas na minha experiência doutrinária e jurídica. Todas foram confirmadas pelo mensalão e pela Lava-Jato. Estive à frente de várias investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, quase nada foi anulado. Toda a Satiagraha, por exemplo, foi anulada porque a transcrição da interceptação telefônica, feita por agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), foi considerada irregular. A Castelo de Areia foi anulada porque a interceptação teria começado com uma denúncia anônima. Mas havia delação premiada, um procedimento que estava em curso em outra vara especializada e investigações preliminares da polícia. Anulações ocorreram, mas, hoje, acredito que não ocorreriam por causa da vigilância social e da comunicação entre o Judiciário e a população.

O SENHOR QUER DIZER QUE PROVAS OBTIDAS POR MEIO ILEGAL PODEM SER USADAS EM PROCESSOS?

Pela história da jurisprudência brasileira, não pode, de forma alguma. Recentemente, o ministro Gilmar Mendes, do STF, decidiu soltar uma pessoa acusada de tráfico de entorpecentes porque a polícia teria extraído o conteúdo de seu WhatsApp sem autorização judicial. A pessoa foi solta, e a prova, considerada nula. Pela jurisprudência do STF, toda prova originada de ilicitude está contaminada. É ilícita.

O SENHOR COSTUMA DIZER QUE, PELOS MÉTODOS TRADICIONAIS, UMA INVESTIGAÇÃO DE LAVAGEM DE DINHEIRO NÃO TEM RESULTADOS. QUAIS SÃO OS MÉTODOS EXCEPCIONAIS?

Os métodos tradicionais eram aqueles que todo mundo sabia que existiam na polícia - instauração de inquérito, chamamento de testemunhas, apreensão de documentos. O cenário mundial estimula os organismos a usarem métodos especiais de investigação, previstos em convenções contra corrupção da ONU. Sem eles, não se apuram esses crimes sofisticados. Esses só são descobertos quando passamos a usar interceptações telefônicas, captação ambiental, delação premiada, informante do bem e agente infiltrado.

O PAÍS ENFRENTA UM MOMENTO DE DESCRÉDITO NO JUDICIÁRIO. PEDIDOS DE UMA LAVA-TOGA, POR EXEMPLO, TÊM SIDO RECORRENTES EM MANIFESTAÇÕES. COMO RECUPERAR A CONFIANÇA?

As pessoas agem por incentivos ou desincentivos. Quando são incentivadas a agir de forma correta, assim o fazem. E a grande maioria da população é de pessoas corretas. Elas esperam das instituições a concretização da democracia, uma ação equitativa do Estado de direito. A lei tem de valer para todos, sem exceção, e o Judiciário está aí para afirmar que a igualdade de tratamento deve prevalecer. Quando existe tratamento dual pela Justiça, há descrédito nas ações da própria Justiça, a ponto de deslegitimá-la e causar risco à democracia. Muitos defendem posicionamentos em prol do princípio da inocência, da não culpabilidade, do contraditório e da ampla defesa. São argumentos muito bons, mas a arte de julgar é de direitos e deveres, não só de direitos. No Judiciário, a pretexto de defender a inocência, a não culpabilidade, a ampla defesa e o contraditório, muitos estão em defesa das suas tentações internas e do ganho de dinheiro fácil, indo contra a ideia de democracia. A democracia é reconhecida por aquilo que constrói, e não pela vitalidade das estruturas institucionais. O Brasil tem instituições há anos, mas que nunca fizeram face à corrupção. Pelo contrário, em nada a contiveram ou preveniram. Uma das funções do Judiciário é realinhar incentivos e desincentivos e, a meu ver, os incentivos para que as pessoas não se corrompam está quebrado. A população pode não entender uma decisão específica, mas entende o conjunto. Ela entende que, por detrás de decisões maravilhosas em defesa de princípios democráticos, está a mensagem de que a corrupção compensa, defendendo a elite política e econômica que sempre esteve no poder e criou essa mazela entre ricos e pobres do Brasil.

O SENHOR COSTUMA DIZER QUE A INFLUÊNCIA POLÍTICA ESTÁ NO STF, E NÃO NOS JUÍZES DE PRIMEIRA INSTÂNCIA.

O que se espera de uma corte constitucional de Justiça é tecnicismo. Quando se mistura técnica com política, é muito complicado. Nos EUA, discute-se o lobby no Executivo e Legislativo. Grupos se dirigem a políticos para conseguir leis vantajosas. Na teoria, o Judiciário, por não agir por agenda própria, mas por distribuição, seria menos vulnerável. Mas hoje há lobby também sobre o Judiciário, para que as interpretações favoreçam grupos econômicos que atuam com corrupção. Quando o Estado é substituído por poderes sociais e políticos paralelos, pode se criar uma situação insustentável da democracia formal. Há alto risco de o crime organizado tomar de vez o poder. Vimos isso nos anos recentes, com relação ao crime econômico, mas há a possibilidade de que o crime envolvendo tráfico de drogas, milícias, tome o poder aos poucos. Essas brechas de interpretações jurisdicionais têm permitido a impunidade, e, quando se fala em impunidade, se fala em estímulo. Estamos em um Estado institucionalmente falido, chegando à paralisação da luta contra a corrupção.

QUAL É A SOLUÇÃO?

O reforço da sociedade civil. Atualmente, há um movimento de repensar o que funciona. Agora, para repensar o que não funciona não há movimento. O abuso de autoridade, incluído nas 10 medidas contra a corrupção, tolhe a independência dos juízes, essencial em qualquer país. Esse movimento foi visto com preocupação pelos organismos internacionais. É preciso reforçar os institutos que permitiram a descoberta da corrupção - a delação premiada, o juiz independente de primeiro grau. E não, por exemplo, estabelecer o juiz das garantias, que tem o poder de rever as decisões de primeiro grau. Vão sendo criados instrumentos que burocratizam aquilo que já é ruim para destruir aquilo que está funcionando. Também querem controlar as delações premiadas, sempre gerando escândalos: "Olha, fulano foi pressionado para fazer delação". Espera lá! Estamos falando com réus adultos, assessorados por advogados, acompanhados pelo Ministério Público e por um juiz. A palavra do delator não vale nada sem prova complementar. Tentam colocar isso como escândalo no país.

NA SUA AVALIAÇÃO, O PRÓPRIO SUPREMO TEM VALIDADO ESSE MOVIMENTO?

Isso gera descrédito na população. Não é possível um poder sem amadurecimento, com todas as vênias possíveis, ficar decidindo de modo diferente de tempos em tempos. E não porque houve um aperfeiçoamento, mas por movimentos do Judiciário. Isso é muito sentido pela população. No Exterior, é constrangedor falar sobre as decisões do Judiciário brasileiro. Quando se fala que, no Brasil, o réu não pode ser algemado, é motivo de risada, de escárnio. Só no Brasil existe prisão em casa. É um sistema que funciona mal. No final, a corrupção tem gerado prisões domiciliares, a pessoa mal sente o que fez, não há arrependimento. Na Lava-Jato, políticos não tiveram consequência nenhuma até o momento, a não ser um que foi condenado pelo STF (deputado Nelson Meurer). Fora isso, a Lava-Jato, que se iniciou em 2014, depois de cinco anos e meio, não tem nenhuma prisão após o recebimento de 193 denúncias pelo Supremo.

HÁ POUCO MAIS DE UM MÊS, DIÁLOGOS ENTRE SERGIO MORO E DELTAN DALLAGNOL VÊM SENDO DIVULGADOS PELA IMPRENSA. É COMUM ESSA COMUNICAÇÃO, FORA DOS AUTOS, ENTRE JUIZ E PROMOTOR?

Conversas sempre existem na Justiça. O estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) determina que é direito do advogado contatar diretamente o juiz. No Exterior, já ouvi que o Brasil é o país dos advogados. Tem de haver a paridade. Se o advogado tem acesso direto, o MP também tem. Conversas existem, o que não pode existir é antecipação de decisão judicial. Não estou falando desse caso concreto, mas, por vezes, há uma tentativa de sondagem do juiz, querem saber a probabilidade de um pedido. No caso do Intercept, trata- se de invasão de privacidade, que não é tolerada pela Constituição. Se você permitir invasão virtual, você também vai permitir invasão física. Imagina alguém invadir a casa de um juiz para tentar descobrir algum documento? É a mesma coisa. Se isso for permitido, vamos invadir a casa do juiz e extrair a confissão de que ele condenou um réu injustamente. Hoje, estamos falando de Lava-Jato. Depois, poderemos estar falando de crime organizado envolvendo PCC ou Comando Vermelho. Qual juiz vai decidir livremente se isso for respaldado por um Judiciário que sempre condenou a ilicitude da prova produzida quando obtida ilicitamente? É grave. Quando se investe contra o juiz ou o MP, está se investindo contra a democracia. A pretexto de defender valores democráticos, na verdade está se indo contra a democracia. Toda prova produzida é nula, porque não pode ser objeto sequer de perícia. Se essa violação absurda de conversas privadas for legitimada, vai se permitir uma ilegalidade brutal contra a democracia. O material do Intercept pode ser a título de curiosidade. Nada mais do que isso. As instituições, se derem vazão a isso, estarão dando um tiro no pé. Hoje, são Moro e Dallagnol. Amanhã, pode ser qualquer um.

ALGUNS JURISTAS TÊM DITO QUE ESSES DIÁLOGOS PODEM SER USADOS PARA ANULAR A SENTENÇA, SE COMPROVADA A SUA VERACIDADE E A PARCIALIDADE DO JUIZ.

Entendo totalmente diferente. No Brasil, as pessoas não aplicam a lei. Pela lei, o acesso ao conteúdo só pode ser por decisão judicial. Não sei nesse caso específico, mas, quando eu expedia buscas e apreensões, autorizava judicialmente o acesso ao conteúdo. Não faz sentido apreender um aparelho se você não pode autorizar o acesso ao seu conteúdo. Para evitar nulidades, eu permitia mediante decisão judicial. Agora, sem autorização judicial... Me desculpem esses juristas, mas estou reaprendendo o Direito Processual Penal.

EM TESE, UM JUIZ QUE SUGERE INVERSÃO DE ORDEM DE OPERAÇÃO, DÁ DICA DE TESTEMUNHA E PEDE INCLUSÃO DE PROVA EM UMA DENÚNCIA NÃO ESTÁ SENDO PARCIAL?

Isso que foi obtido pelo Intercept foi obtido por invasão, por hacker. Conversei com uma pessoa dentro do MPF. Ela revelou que uma conversa privada de duas pessoas, dois membros do MPF, que em nenhuma hipótese divulgaram a conversa, foi noticiada pela imprensa. Parece que houve hacker invadindo sistema. E o hacker é muito bom, tanto para invadir quanto para manipular prova. Então, não posso aceitar isso como prova, nem o teor, para saber se é real. Nem se pode fazer perícia numa prova obtida ilicitamente, então, não tem validade para nenhum efeito. Agora, nem tudo que o juiz Sergio Moro fez eu teria feito. Tenho outros entendimentos. Mesmo assim, você não pode tirar o mérito do Moro, que tem uma história de coragem e combate ao crime. Você não pode destruir um trabalho positivo porque discorda de algo pontual. Não é papel do Judiciário julgar juiz. Precisamos de uma jurisprudência que oriente o juiz, e não o desoriente. De nada adianta termos pessoas engajadas no combate ao crime se o Judiciário, com suas decisões, torna o sistema tímido e inoperante, desestimulando as ações dos demais órgãos.

MORO É CRITICADO PORQUE, SUPOSTAMENTE, AO SE TORNAR MINISTRO, TERIA SE BENEFICIADO DAS SUAS PRÓPRIAS DECISÕES. O SENHOR CONCORDA?

Não posso falar especificamente, mas acredito que são decisões pessoais, fruto de um acúmulo de circunstâncias. A Lava-Jato exige exclusividade, o que gera um cansaço absoluto, físico e mental. É um cansaço injusto, porque muitos inimigos do juiz de primeiro grau não são os réus, mas o próprio sistema, por conta de vaidades. Até hoje sofro com isso. As pessoas querem puxar para baixo quem fez um brilhante trabalho. Acredito que ações como a tomada pelo ministro são fruto de uma série de situações. Talvez, entre elas, esteja o cansaço e a vontade de ir para outras frentes. Cheguei a ser cogitado para sair do Judiciário e nunca aceitei. Nunca quis desacreditar o que fiz. Dou palestras há anos e não cobro. Até estou repensando, porque sei de autoridades judiciais de Brasília que cobram. Elas dão aula, algumas têm até institutos de Direito e ganham por isso. Agora, quando é revelado que uma pessoa da Lava-Jato teria ganhado... "Ó, que surpresa." Espera lá! Se vamos discutir ética, vamos discutir de baixo para cima e de cima para baixo, e não pontualmente, para destruir uma operação.

MESMO DENTRO DA LEI, O SENHOR CONSIDERA ÉTICO COBRAR POR PALESTRAS?

Juízes e promotores estão legitimados a dar aulas. É a única coisa que podem fazer: dar aula e ganhar por isso. Palestras também são consideradas atividades docentes. Isso não significa que a pessoa agiu incorretamente na sua função. Se as pessoas querem ouvir determinadas autoridades, de que adianta não cobrar? Quase todos cobram. Isso é legítimo, natural, e se discute como se fosse um escândalo.

MÉRITOS E CRÍTICAS À LAVA-JATO SURGIRAM EM MEIO À POLARIZAÇÃO DO PAÍS. O SENHOR CONCORDA QUE ESSA SITUAÇÃO INFLUENCIA A ANÁLISE DA OPERAÇÃO?

Agora, com tudo o que está acontecendo, não é momento de repensar o sistema em termos de aperfeiçoamento de legislatura. Temos boa parte do Congresso condenada pela Lava-Jato ou em vias de ser. Esse mesmo Congresso está julgando o juiz com essas mudanças legislativas, para a punição do magistrado independente e imparcial. O momento é único para o combate à corrupção. Não há abusos, não se verificou nenhum abuso relevante que justifique esse movimento. Está se aproveitando desse escândalo criado forjadamente para desacreditar todos, poupar pessoas que estão presas e evitar novas ações.

O PRESIDENTE DO SUPREMO, DIAS TOFFOLI, SUSPENDEU INQUÉRITOS COM DADOS DO CONSELHO DE CONTROLE DE ATIVIDADES FINANCEIRAS (COAF). QUAL O IMPACTO DESSA DECISÃO NAS INVESTIGAÇÕES EM ANDAMENTO NO PAÍS?

Não posso falar do caso concreto, mas a comunicação de operações suspeitas é a espinha dorsal reconhecida mundialmente no combate à lavagem de dinheiro. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) determina que não se pode invocar sigilo que inviabilize a rápida troca de informações para esclarecer o crime de lavagem de dinheiro. Se não seguir isso, o Brasil vai ter problemas. O Coaf tem uma função muito específica de filtrar e repassar comunicações suspeitas. Não pode virar um órgão inútil a partir de decisões que obrigam a autorização judicial.

DÉBORA ELY


27 DE JULHO DE 2019
DRAUZIO VARELLA

O RISCO DE DEMÊNCIA

Pesquisa britânica recém divulgada investigou associação entre genética e estilo de vida. Anos atrás, os poucos que chegavam aos 60 anos eram chamados de sexagenários. Hoje, quando morre alguém com 70, dizemos que morreu moço.

Uma pesquisa recente mostrou que, ao completar 50 anos, pessoas que não fumam, bebem com moderação, praticam atividade física com regularidade, adotam dietas com mais vegetais e menos gordura animal e mantém o peso corpóreo na faixa saudável terão expectativa de viver em média mais 38 anos se forem homens, e mais 43 no caso das mulheres.

O preço a pagar pelo privilégio da longevidade, no entanto, extrapola a questão da Previdência Social, uma vez que a prevalência de enfermidades crônico-degenerativas aumenta com a idade. Entre nós, o custo é mais alto, porque envelhecemos mal: cerca de 90% dos brasileiros chegam aos 60 anos com pelo menos uma doença crônica.

Nesse universo, as demências ocupam lugar de destaque. Nem tanto pela prevalência - hipertensão e diabetes são muito mais prevalentes -, mas pelas consequências devastadoras, pessoais, familiares e sociais.

Diversos pesquisadores avaliaram a influência do estilo de vida na instalação dos quadros demenciais que ocorrem ocasionalmente, em indivíduos sem antecedentes familiares. Aprendemos que existem vários fatores capazes de aumentar esse risco: fumo, sedentarismo, dieta pobre em vegetais e rica em gordura animal, abuso de álcool, falta de estímulos cognitivos, distúrbios do sono, dificuldade de engajamento social, traumatismos cranianos e até a poluição.

Por outro lado, os avanços da genética levaram à identificação de mais de 250 mil variantes de genes associadas ao risco de demências. A presença delas, explica o número de casos concentrados em determinadas famílias. Para os portadores desses genes, bem como para filhos, netos e sobrinhos de pessoas com Alzheimer e outras degenerações cognitivas é fundamental saber se a tendência genética pode ser contrabalançada, por meio de mudanças no estilo de vida.

Acaba de ser publicadA na revista JAMA uma pesquisa conduzida por D. Llewellyn no Reino Unido para responder A essa pergunta.

Os autores acompanharam durante 10 anos 196 mil pessoas com mais de 60 anos, inscritas no UKBiobank study, que procura identificar fatores causais de enfermidades que incluem câncer, doenças cardiovasculares, depressão, demências e outras.

No material estudado no UKBiobank, foram identificadas 250 mil variantes genéticas que podem aumentar o risco de patologias demenciais. De acordo com o número de genes alterados, os participantes foram divididos em três grupos: escore genético alto (risco maior), intermediário ou baixo.

Em relação aos hábitos de vida, os autores isolaram apenas quatro variáveis, consideradas protetoras em relação às demências: 1) não fumar; 2) adotar dieta saudável; 3) não beber mais de 14g de álcool diárias, se for mulher, ou mais de 28g diárias se for homem; 4) praticar 150 minutos semanais de atividade física de moderada intensidade ou 75 minutos semanais de atividade intensa.

De acordo com a obediência aos itens citados, os participantes também foram classificados em três grupos: favorável (três ou quatro itens), intermediário (dois itens) e desfavorável (nenhum ou um).

Entre os participantes com risco genético alto e estilo de vida desfavorável 1,78% desenvolveram quadros demenciais, no período de 10 anos, enquanto nos do extremo oposto - risco genético baixo e estilo de vida favorável - apenas 0,56% o fizeram, ou seja, três vezes menos. Mesmo no grupo de risco genético alto, a adoção das medidas favoráveis fez cair o número de casos de demência, de 1,78% para 1,13%.

Os resultados revelam que genética e estilo de vida estão independentemente associados ao risco de apresentar demência. A adoção de estilos de vida saudáveis reduz a probabilidade, tanto nas pessoas sem casos na família quanto naquelas com predisposição genética.

Este foi o primeiro estudo que investigou a associação entre risco genético e fatores modificáveis na rotina diária, na incidência de quadros demenciais.

O fatalismo dos que dizem "não vou escapar, meus pais tiveram Alzheimer, minha avó, também", deve ser substituído pela disciplina de praticar atividade física, adotar dietas com mais vegetais e menos gordura animal, não fumar de jeito nenhum, beber pouco e ler muito. Realizado com maiores de 60 anos, esse estudo deixa evidente que nunca é tarde para começar.

DRAUZIO VARELLA


27 DE JULHO DE 2019
JJ CAMARGO

UMA TRAGÉDIA BRASILEIRA

O tiroteio de Cristal provoca uma reflexão sobre a vida bandida. A solidariedade é um pré-requisito para a sobrevivência no mundo do crime, sempre em sobressalto pelos fantasmas do medo e da vingança. Um parceiro deixado para trás equivale à assinatura de um contrato de morte, que todos os envolvidos sabem que se cumprirá, não importa quanto tempo demore.

Muito se diz que essas pessoas deviam ser exterminadas do convívio social por serem irrecuperáveis, e que a pena de morte seria a única solução para interrompê-los. Os proponentes dessa estratégia de redução da criminalidade ignoram que a pena de morte só atemoriza quem dá valor à vida, o que não passa nem perto dos sentimentos de quem cresceu à margem dos elementos fundamentais para quem projeta ser feliz. Sem isso, só lhes resta a ânsia da autopreservação, nosso primeiro instinto. Quem banalizou a morte não tem nenhum apreço pela própria vida, muito menos pela dos outros.

Na vida bandida, a única lei vigente é tentar alongar a sobrevida, admitindo-se que o sonho de velhice é uma utopia. Quem presta atenção nas imagens dos nossos presídios percebe imediatamente que lá não moram velhos. E isso não decorre de progressão de regime. Nada disso. A maioria, aliás, tem grande chance de ser executada antes mesmo que a extensão da sentença tenha sido formalizada. O que significa que a nossa pena de morte já existe. O que devia encabular uma sociedade civilizada é que ela foi homologada de um jeito muito selvagem, que não segue os ritos legais dos países desenvolvidos.

Neste recente e trágico episódio de tentativa de resgate de parceiros do crime, cercados pela polícia, certamente muitas das loucuras que resultaram na morte de inocentes tiveram como objetivo demonstrar o quanto se deve valorizar a parceria no crime, pressupondo-se com isso igual fidelidade, se e quando, algum dia, os papéis se inverterem. A ideia de colocar familiares no carro para dar ao traslado um ar de respeitabilidade domiciliar teve um toque de criatividade cinematográfica, e que provavelmente teria funcionado se o intento de furar a barreira policial não tivesse sido à noite e o veículo não portasse vidros fumê tão densos que tornava seu interior indevassável.

Depois da identificação das placas monitoradas pela polícia, a partir da ultrapassagem da primeira barreira, o tiroteio subsequente, ao melhor estilo Bonnie & Clyde, era completamente previsível. O fato constrangedoramente inesperado foi a presença entre os alvos de um menino e duas mulheres, cujo maior crime foi, talvez, ignorar os sinais de sociopatia dos seus amados, que culminou com suas mortes, anunciadas desde o dia em que o destino os aproximou.

Nessa aventura surreal, nada comoveu mais do que a morte do garoto de quatro anos, atingido por três tiros, um dos quais implodiu-lhe a cabeça. E então, do meio do quase nada que sobrou daquela família, emergiu uma avó, que apesar de destroçada na sua essência, encontrou forças para um gesto de extrema generosidade: doou os órgãos do garotinho muito amado, e com isso evitou que famílias desconhecidas fossem poupadas da dor de também perderem as suas crianças. Velando o filho, que aparentemente no desespero pelo tamanho da desgraça não encontrou melhor saída do que o suicídio, e no limite do sofrimento, ela colocou uma única condição: que lhe devolvêssemos logo o corpo do netinho inocente, para que ela pudesse, ao menos, enterrá-los juntos.

JJ CAMARGO

27 DE JULHO DE 2019
DAVID COIMBRA

A russa do quinto andar

O alarme de incêndio tocou três vezes nessa madrugada aqui no prédio. É óbvio que está com defeito, não tem nada pegando fogo, mas você é obrigado a levantar e sair para a rua - normas de segurança e tal. Até porque ninguém conseguirá dormir. Em cinco minutos, sempre que soa o alarme, chegam dois caminhões de bombeiros, dois carros de polícia e uma ambulância, todos com as sirenes ligadas, fazendo grande alarde. Os bombeiros saltam dos carros e entram no edifício açodados, carregando mangueiras e machados e tudo mais. Naquele momento, eles são mais importantes do que o presidente da República. Agem com muita autoridade e são muito respeitados. Os moradores ficam esperando pacientemente que digam que o prédio está liberado e só então voltam para suas casas.

Na primeira vez que o alarme soou, eram 2h40min da madrugada. Escorreguei para fora da cama e me dirigi sem pressa para a escada de incêndio. Imaginava que devia ser uma panela esquecida no fogo, como da última vez que o alarme tocou. Quando saí do prédio, quase todos os vizinhos já estavam na calçada, inclusive a morena do quinto andar.

Ela é nova no prédio, e acho que veio da Rússia. Se não for da Rússia, veio da Moldávia. Ou da Ucrânia. Um desses lugares. Deve ter uns 35 anos, talvez um pouco mais. Calçava chinelos e uma camisola que escondeu debaixo de uma camiseta comprida. Seus cabelos estavam presos por um coque que deve ter improvisado ao saltar da cama. Atrás dela, um menino de uns 12 anos de idade a observava de olhos arregalados e boca aberta.

Entenda: vivemos o verão no Hemisfério Norte. As mulheres saem às ruas vestindo roupas sumárias, shorts mínimos, minissaias realmente mínis. Logo, é mais do que natural ver pernas de louça de mulher expostas por aí. Ou seja: a russa do quinto andar não mostrava nada que o garoto de 12 anos não visse todos os dias, em toda parte. Mas ele estava visivelmente emocionado.

Sorri. Lembrei-me de quando também tinha meus 12 anos. É uma idade decisiva para o menino, porque ele está deixando de ser criança e ainda não é adolescente. Está transitando entre a inocência e a malícia, sabe que algo de importante está prestes a lhe acontecer, mas ainda não aconteceu. Nessa idade, a diferença que existe entre os meninos e as meninas não faz mais com que queiram se afastar; faz com que queiram se aproximar.

Mas isso não é assim tão simples. Porque elas têm algo estranho, que os deixa inseguros. Olhe o que elas fazem. Quando vão cruzar as pernas, elas não cruzam, elas enroscam uma na outra de um jeito só delas e ficam equilibradas naquelas duas serpentes, bem eretas, como se estivessem prestando atenção em algo muito interessante que se passa logo ali. Algumas, se estão distraídas, enrolam uma mecha de cabelo no indicador e deitam a cabeça de lado, com suavidade. E, quando vão experimentar um perfume, borrifam o próprio pulso e levam-no à ponta do nariz, para sentir o cheiro. Como é bonito ver uma mulher aspirando o aroma que lhe vem do pulso. Mas é claro que, para um guri de 12 anos, o evento clássico se dá quando ele está na praia e vê uma mulher puxando a alça do biquíni para melhor encaixá-lo nas ilhargas. Esse é um acontecimento que ele quererá partilhar com os amigos: "Nem imagina o que eu vi hoje à tarde?".

Ah, uma mulher, mesmo que seja só uma menina, ela às vezes faz silêncios ou sorri de uma forma que é enigmática para um menino de 12 anos. Dependendo do silêncio e do sorriso, será enigmático até para meninos de 40, 50, 60 anos. Por isso, compreendi a fascinação daquele garoto com a russa do quinto andar. As rendinhas da camisola, que surgiam por baixo da camiseta larga, o chinelo rasteiro que ficou equilibrado entre os dedos do seu pé direito quando ela acomodou-se numa mureta e cruzou as pernas, aquela intimidade inesperada era o suficiente para deixá-lo sem respiração.

Fiquei olhando para a cena por alguns minutos. Agora, o alarme já havia sido desligado, o chefe dos bombeiros fez sinal de que estava tudo sob controle. Então, a russa se levantou, levou a mão para a parte de trás da cabeça e de lá puxou a vareta que lhe prendia o coque. Seus cabelos desabaram, macios, até os ombros. E o menino, a dois passos de distância, ergueu a mão ao peito e suspirou. Continuou ali parado, enquanto a morena sumia no saguão do edifício. Foi para casa sem nem desconfiar que, naquela noite, ela entrou para a história de uma vida.

DAVID COIMBRA


27 DE JULHO DE 2019
MÁRIO CORSO

A depressão traduzida em monstro

Você já sentiu uma pontada de frio na alma, uma sensação estranha de que nada vale a pena? Ou, repentinamente, o mundo fica sem cor e nada faz diferença? Ou, ainda, algo vago que começa com um aperto no peito, uma sensação de falta que, embora aguda, não se sabe do que é, acompanhada de uma desesperança absoluta e uma ideia de que está tudo errado com você?

Se essa sensação for eventual, tudo bem, de quando em quando a experimentamos e isso é incontornável da dimensão humana. Mas, se isso se instalar e vier com a certeza de que não valemos nada, nunca, para ninguém, temos uma depressão. Isso é muito sério, vá procurar ajuda.

O calvário da depressão ganhou um monstro à altura para representá-lo com a chegada do Dementador, uma das mais geniais criações da escritora J. K. Rowling. Esse monstro nos induz a um estado deplorável pela sua simples presença. Basta fazer sua aparição para que toda nossa esperança se esvaia e sejamos inundados pelo nada. Sentimo-nos sem valor, sem força para seguir lutando. Se sobrevivermos, será só por falta de energia até para nos tirar a vida. Ficamos inertes, hipnotizados por essa negatividade. Depois de encontrar um deles, acreditamos que nunca mais seremos felizes. No mundo de Harry Potter, eles são os guardas da prisão de Azkaban.

Até então os monstros machucavam, decepavam, engoliam e matavam, muito distintos destes, cuja arma é a tristeza. O Dementador é o terror em estado puro: uma aniquilação que prescinde de tocar no corpo. Ele age sugando nossas boas lembranças. Sem elas, seríamos reduzidos a nada. Como também inocula a desesperança, não resta a expectativa de conseguir valer algo no futuro.

Em síntese, a depressão é uma tristeza que nos engolfa quando os laços afetivos (nossas boas lembranças) que nos seguram como numa teia se desfazem. Então alcançamos o vazio e afundamos numa bolha egoica que não ama nada, nem a si mesmo.

Os psicanalistas não teriam muito a objetar a Rowling. É claro que nós acreditamos que em geral o Dementador está na nossa trincheira, ou seja, que a maior fonte de dor provém de nós mesmos quando nos desencaixamos dos trilhos dos afetos e das relações. Quando ficamos nus e sem defesa frente às exigências sociais.

Só quem já teve depressão de fato a entende. Sabe que não se trata de falta moral, de preguiça, de covardia. Sabe que o amor dos seus queridos lhe é importante, mas não é suficiente para dissolver a paralisia.

A arte é uma forma prévia de sabedoria, chega como literatura aquilo que sabemos de forma intuitiva. O fato é que temos uma excelente imagem da depressão, principalmente para um público jovem, pois nem as crianças ignoram ou estão a salvo dos perigos da depressão. Melhor assim, conhecendo os contornos do monstro, nomeando suas artimanhas, fica mais fácil combatê-lo.

MÁRIO CORSO

27 DE JULHO DE 2019
OPINIÃO DA RBS


UM ERRO AMAZÔNICO

Ainda há tempo para Jair Bolsonaro entender que, hoje, nada prejudica mais a imagem do Brasil no Exterior do que a questão ambiental. A controvérsia alimentada pelo presidente em relação aos dados de desmatamento da Amazônia, com ataques à credibilidade do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), só agrava a percepção. Para o mundo, passa a impressão de que o mandatário brasileiro está mais preocupado em esconder a estatística, e não com o problema da destruição da floresta em si.

Talvez por demonstrar certa aversão a dados científicos e preferir dar mais crédito a informações duvidosas e teorias conspiratórias que absorve na bolha ideológica de suas redes sociais, Bolsonaro emite sinais de não ter alcançado a compreensão exata de quanto o país pode ser prejudicado caso teime na postura de desdenhar da proteção do ambiente. É uma ameaça, por exemplo, ao acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. E quem tem mais a perder, no fim das contas, é o próprio agronegócio. Sim, é o setor em que o Brasil é mais competitivo, mas o consumidor internacional, especialmente dos países desenvolvidos, está cada vez mais atento à forma como são produzidos os alimentos que leva à mesa. As entidades mais modernas ligadas à indústria agropecuária têm esta consciência e agem para frear os arroubos inconsequentes do governo.

Pessoalmente, o presidente já não goza de grande prestígio no Exterior por conta de suas declarações homofóbicas e misóginas e, ao demonstrar que considera o ambiente um entrave a atividades econômicas, está entrando no rol dos vilões internacionais, sendo apontado como uma espécie de incentivador da exploração desregrada e a qualquer custo da Amazônia pela agricultura e a pecuária. Desprezar a importância de salvaguardas a povos indígenas, minimizar a relevância de áreas de proteção ambiental e enfraquecer órgãos como o Ibama - espécie de salvo-conduto tácito a agressores da natureza - apenas fortalecem esta visão.

Não adianta colocar a culpa da imagem arranhada do país na imprensa internacional ou na suposta inação de embaixadores. Só há uma forma de começar a reverter o péssimo retrato do Brasil lá fora: mudar drasticamente o discurso, evitar rompantes e dar uma guinada na política ambiental, hoje vista como, no mínimo, leniente. Pouco importa, agora, se as nações ricas do Hemisfério Norte destruíram as suas florestas no passado. Preservar as matas, mantendo o delicado equilíbrio do ecossistema amazônico e colaborando para mitigar os efeitos das mudanças climáticas, é uma tarefa que só trará benefícios ao Brasil. E esta também é a responsabilidade do país com as próximas gerações de todo o mundo.

OPINIÃO DA RBS

27 DE JULHO DE 2019
RODRIGO CONSTANTINO

Tecido social

As liberdades individuais não sobrevivem num vácuo de valores morais. Os liberais clássicos e conservadores sempre foram simpáticos a essa crença, daí a importância que dão ao tecido social, mantido justamente por associações voluntárias que fortalecem o sentido de comunidade, tais como as igrejas. Atualmente, com o recrudescimento do tribalismo, esse tecido está bastante esgarçado.

Ao frequentar com a família esses locais que buscam um propósito comum, o indivíduo encontra um ambiente de tolerância e igualdade. Não importa tanto a classe, o  sexo ou a “raça” ali, pois não é isso que une aquelas pessoas. O enfraquecimento dessas instituições tem colaborado para o clima de polarização exacerbada na sociedade, o que é alimentado pelas redes sociais. Os radicais ganharam mais voz, eis o fato.

E fazem um barulho ensurdecedor, que intimida a maioria silenciosa e mais moderada. De ambos os lados do espectro ideológico, há mais intolerância e desrespeito. São vários casos que ilustram essa tendência. Podemos pensar em palestrantes conservadores impedidos de falar em universidades americanas por conta de protestos agressivos de “justiceiros sociais” que dizem combater o fascismo, mas agem como fascistas.

Ao mesmo tempo, simpatizantes de Trump gritam num evento pedindo que o presidente mande uma congressista de volta ao seu país de origem, sendo que ela é americana. Por mais abomináveis que sejam as ideias racistas de Ilhan Omar, o coro é inaceitável e ao menos deixou Trump constrangido.

No Brasil, a jornalista Miriam Leitão foi alvo de pressão bolsonarista e teve sua participação cortada numa feira de livro. Ela já foi atacada por petistas também. Já o ministro da Educação foi cercado e humilhado por manifestantes de esquerda, mesmo com sua pequena filha no colo.

Existem inúmeros outros exemplos, mas o ponto está claro: há um ambiente tóxico de intolerância e falta de respeito ao contraditório. Disputas ideológicas têm ficado acima da decência humana. Ou resgatamos o tecido social que nos une, ou o tribalismo vai destruir as liberdades individuais.

RODRIGO CONSTANTINO

sexta-feira, 26 de julho de 2019


Lançamentos Corpos e almas - Uma história da pessoa na Idade Média 

(Ed. Unisinos, 362 páginas), do francês Jérôme Baschet), um dos maiores medievalistas da atualidade, na primeira parte apresenta os fundamentos das representações antropológicas medievais; na segunda, as questões da temporalidade humana, e, na terceira, uma abordagem comparativista ocidental com concepções modernas.

Parábola para unicórnios (Editora Penalux, 162 páginas), do médico, escritor e tradutor José Eduardo Degrazia, tem apresentações de Alexandra Almeida e Jane Tutikian e é seu vigésimo livro. "Os unicórnios preferem andar em linha reta, mas quando cansados andam em círculos" e "Os unicórnios sabem a geometria da parábola, mas não espalham" são alguns dos bem elaborados versos dos poemas.

A avoada e o distraído (Class, 170 páginas), romance dos escritores porto-alegrenses Vanessa Silla e Cláudio Levitan, traz criaturas que, pela lógica, nunca se encontrariam e cuja união teria tudo para dar errado. Bartolomeu, de meia-idade, é herdeiro de empresas de joias e livros raros.

Já Sirena é uma jovem linda e desmiolada, que veio do século XXIII, vivem um romance entre Punta del Este, Europa e Israel.

A propósito... 

O Dia do Amigo veio para ficar, foi e será sempre ótimo na internet, nas redes sociais, onde às vezes a gente se sente sozinho no meio de milhões e na real.

Mas é essencial pensar em pequenos gestos cotidianos de amizade, em pelos menos alguns minutos presenciais, por dia, com os amigos, para falar de tudo e de nada e tomar cafezinhos e providências para o presente. Por vezes a maior qualidade do amigo não é ele só ter qualidades, é ele ter defeitos como os nossos.

Especialmente com os amigos, melhor escutar ao invés de só ouvir, apertar a mão, abraçar, dar um beijo quando for o caso, ficar quieto na hora precisa e não esquecer de pronunciar as velhas palavras mágicas: muito obrigado, mil desculpas, com licença, gosto de nossa amizade e até sempre, meu amigo. -

Jornal do Comércio (https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/livros/2019/07/694616-martin-fierro-a-biblia-gaucha.html