sábado, 30 de maio de 2015


31 de maio de 2015 | N° 18179
MARTHA MEDEIROS

Viciados em companhia

Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.

Não confio no amor de quem não consegue ficar sozinho.

Nunca foi ao cinema sozinho, nunca viajou sozinho, perambula pela rua feito um cão que se perdeu do dono. Sentar na lanchonete de uma livraria para tomar um cafezinho assemelha-se a uma catástrofe. Sua solidão lhe parece vergonhosa e indigesta, é evitada com o mesmo afinco com que evitaria a morte.

Para ele, qualquer parceria é melhor que nenhuma. Uma conversa enfadonha é melhor que o silêncio. Um chato é melhor que ninguém. É praticamente um viciado em companhia. E, como todo viciado, critério não é o seu forte.

Não confio no amor de quem não se suporta.

De quem telefona a fim de papo furado, de quem envia mensagens só para ouvir o sinal da chegada da resposta, de quem precisa se iludir de que não está só. Quem de nós não está só?

Uma manhã de frente para o mar, uma tarde com um livro, uma noite com um filme, três dias inteiros numa cidade estranha, uma rua que nunca foi atravessada, um museu com tempo livre à vontade, uma cama vazia – para ele, simulacros do inferno.

Não confio no amor de quem não se entretém. De quem se desespera em frente ao espelho, de quem não consegue se maravilhar num jardim, de quem não viaja ao ouvir uma música, de quem não gosta de andar de ônibus enquanto aprecia a paisagem pela janela, de quem não se sente inteiro num trem.

Sozinho é uma coisa, solitário é outra. Sozinho é com, solitário é sem.

Eu sozinha sou muitas. Sozinha, tem mais sabor minha comida, tem mais foco o meu olhar, tem mais profundezas o meu ser. Sozinha tem mais espaço minha liberdade, tem mais imaginação a minha fantasia, tem mais beleza a minha individualidade. Sozinha tem mais força o meu pensamento, mais inteireza a minha vontade. Não confio no amor de quem negocia sua autenticidade.

Como amar de verdade outro alguém, se não sabe de onde esse amor vem? Onde foi gerado, por que é necessário, que atributos ele contém? Amar é doar, não vem do doer. Amar é saber que aquele que a gente ama, se faltar, vai deixar saudade, mas não nos transformará num cadáver a vagar. Não confio em quem ama para ser um par, não confio em quem quer apenas se enquadrar, não confio em quem ama por não se tolerar.

Amar tem que ser extraordinário. Além do que já se tem.

Se sozinho você não se tem, amar vira tubo de oxigênio, ânsia, invenção e enredo barato, perde a dignidade, o amor vira muleta e trucagem. Confio no amor de quem não precisa amar por sobrevivência, de quem se basta e mesmo assim é impelido a se dar, porque dar-se é excelência, não é mendicância.

Não confio no amor de quem não se ama em primeira instância.



31 de maio de 2015 | N° 18179
CARPINEJAR

Sonhei com você

Ninguém resiste a um sonhei com você. “Sonhei com você” cria uma cumplicidade imediata, uma afinidade súbita. Mudamos o nosso olhar para a conversa e para o interlocutor.

Pode ser trova, pode ser chantagem emocional, mas é um recurso sedutor infalível. No início da relação ou quando se é apenas amigo, o sonho é uma cantada que desperta a curiosidade.

Você procurará saber o que foi e o que estava fazendo no sonho de outra pessoa. Mesmo os mais inteligentes e maduros, os mais céticos e descrentes, sucumbem à estratégia.

É um sinal claro de interesse e de disposição para começar algo, já que o inconsciente criou uma memória em comum, uma memória a dois. Os homens, tarados por sua natureza, imaginam que são sonhos eróticos e crescem seu apelo pelo relato.

Não se dá muita chance quando alguém diz que pensou em você, mas quando diz que sonhou com você muda de figura e ganha toda a nossa atenção. O interrogatório do que aconteceu na mente alheia é inevitável.

Adere-se ao território das verdades secretas, aos símbolos do divã, à esfera mística das casualidades inexplicáveis.

Como contestar um sonho? Não tem como desmentir. Nem criamos oposição. Queremos, no fundo, sermos sonhados, sermos conduzidos, receber sinais de anjos e de cupidos.

Na paixão, somos supersticiosos, somos místicos. Não marcamos encontros, abrimos cartas de tarô na alma. Procuramos uma união que seja maior do que nossa força, que seja uma fatalidade, um destino agendado de vidas passadas.

Trata-se de uma facilidade sentimental, para não precisar justificar nossa escolha diante dos amigos e parentes. Pois foi o destino que definiu, não a gente, acabamos nos isentando de nossos gostos e predileções.

Se o sonho serve para estabelecer proximidade, o pesadelo é o elo para recuperar os laços.

Durante a separação, no momento em que perdeu o contato com o ex e a ex e não conta com pretexto para retomar o diálogo, o pesadelo vem como panaceia da saudade. Do nada, pode mandar uma mensagem que sempre produzirá estrago: “Tive um pesadelo com você. Está bem?”

É óbvio que ganhará resposta. Pelo medo do castigo, da macumba e da maldição, e também porque não há como deixar uma preocupação sobre a saúde no vácuo. Não perceberá que ela e ele procuram somente notícias de sua condição, é uma pescaria aleatória, com a meta de descobrir qual é o seu estágio de sofrimento.

O objetivo é de menos. O pressentimento, ainda que ruim, demonstra falta e indica uma forte ligação espiritual. Várias reconciliações se deram por um pesadelo falso ou verdadeiro. Não há como se indispor, ainda que a briga tenha sido épica e a ruptura justa.


O pesadelo é o habeas corpus do amor.

31 de maio de 2015 | N° 18179
ANTONIO PRATA

Seminovos, único dono

Veja bem: apesar deste texto figurar em uma coluna numa página de jornal, veículo cujo propósito é publicar notícias, este texto não é uma notícia. Este texto é uma crônica. A diferença, grosso modo, é que as notícias só às vezes são ficção, enquanto as crônicas sempre são.

Se o Alckmin afirma que não há por que se preocupar com a crise hídrica, por exemplo, ou a Dilma garante “Nenhum direito a menos, nenhum passo atrás”, você deve desconfiar que seja mentira; já se eu digo que comprei uma bicicleta ou que pulei de paraquedas, pode ter certeza que é. Afinal, mesmo que eu tenha de fato comprado uma bicicleta ou pulado de paraquedas, ao escrever a crônica vou mudar a cor do banco, aumentar a queda-livre, vou sair empinando pela Marginal, talvez bata papo com um urubu.

Ano retrasado, resolvi publicar um texto irônico, com um narrador reacionário e hidrófobo, para ridicularizar opiniões racistas, homofóbicas, machistas e que tais. Algumas horas depois de enviar a crônica, recebi um telefonema do jornal. O secretário de redação gentilmente me sugere que a piada não iria ser compreendida. “Ironia não funciona em jornal.” Como não? O texto era um despautério do começo ao fim. Afirmava que, por conta das cotas, o homem branco se encontrava escanteado, no Brasil, que os índios tinham acabado com o agronegócio, que José Maria Marin, ex-membro da Arena (e atual hóspede do FBI), era comunista – e por aí ia. Ou não ia, segundo o secretário: “Ironia não funciona em jornal”.

Mas eu, que teimo em apostar no ser humano, mesmo depois de ter assistido a um documentário de nove horas sobre o holocausto e de ter participado de mais reuniões de condomínio do que aconselharia qualquer hepatologista (na última delas, negou-se plano de saúde aos funcionários e aprovou-se, por unanimidade, a reforma da fachada), resolvi pagar pra ver – e quase paguei com a minha liberdade. Fui processado. Por racismo. A juíza, felizmente, entendeu que racista era o personagem de um texto FICCIONAL, não eu, de modo que estou escrevendo aqui de casa, não da cadeia, entre perigosos meliantes do PCC, da OAS ou da UTC.

Todo esse tour de force é porque, hoje, eu gostaria de ter publicado uma crônica engraçada sobre as agruras de ter filhos. Eu diria que, vendo o casamento afundar, o dinheiro rarear e as olheiras crescerem, eu e a minha mulher havíamos percebido que a nossa geração, hedonista e autocentrada, era incompatível com a paternidade. Decidíamos, então, botar as crianças à venda, viajar pela Ásia e dar um refresh na relação. Ao começar a escrever, contudo, temi que me levassem a sério, que a vara da infância de Cotia nos tirasse a guarda das crianças, que, qualquer dia desses, na saída do Saltimbancos, apanhássemos da plateia.

Ora, bolas, seria uma peça de FICÇÃO. IRÔNICA. Por mais trabalho que me deem, por mais reais e noites de sono que me custem, nada na vida se iguala a ter filhos e eu não os trocaria nem por um milhão de dólares.


(Por cinco, já podemos começar a conversa: ela, dois anos, ele, três meses, carteirinha de vacinação completa, único dono. Interessados, por favor, DM no Twitter ou inbox no Facebook.).

31 de maio de 2015 | N° 18179
MOISÉS MENDES

O deboche

José Maria Marin é o mais vistoso exemplar das figuras da ditadura que ainda prosperam, bajulam, são bajuladas, corrompem, são corrompidas e circulam impunemente. Marin é um deboche com a polícia, o Ministério Público, a Justiça e o jornalismo.

O homem preso na Suíça prestou grandes serviços aos militares golpistas. Um de seus feitos, como deputado paulista pela Arena, foi denunciar a TV Cultura – mantida pelo Estado – como uma instituição que não correspondia aos anseios do regime. Insinuava que a TV havia sido tomada por comunistas dedicados a conspirar contra o governo.

Um discurso de Marin, no dia 7 de outubro de 1975, apontava na direção de Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da Cultura, que passou a ser investigado pela polícia política. No dia 24, Herzog foi preso no DOI-Codi, o porão da repressão. Um dia depois, foi encontrado enforcado na cela.

Ivo Herzog, filho de Vladimir, não tem dúvida de que Marin perseguiu seu pai e inspirou o assassinato, mantido por décadas pelos chefes dos criminosos sob a farsa de suicídio. Depois, de maio de 1982 a março de 1983, Marin foi governador nomeado de São Paulo, em substituição, vejam só, a Paulo Maluf. Presidiu a Federação Paulista de Futebol de 1982 a 1988 e foi, acreditem, no início da redemocratização, chefe da delegação brasileira na Copa de 1986 no México.

Andou fora da política e do futebol por um tempo, até ser eleito vice-presidente da CBF e, há três anos, assumir o comando da federação, com a renúncia de Ricardo Teixeira (que fugiu para Miami, depois de uma série de denúncias de corrupção).

Em janeiro de 2012, na cerimônia de premiação da Copa São Paulo de Futebol Júnior, Marin enfiou no bolso uma das medalhas que deveria entregar a um atleta. Foi flagrado pela TV, e o roubo ganhou tratamento de fato humorístico por boa parte da imprensa. No ano passado, refestelou-se pelo mundo como presidente do Comitê Organizador da Copa no Brasil.

O jornalista Juca Kfouri contou em fevereiro deste ano que ele roubava até energia elétrica do prédio em que mora em São Paulo. O porteiro do prédio sabe bem quem é Marin. O porteiro do prédio da CBF também. O roupeiro da CBF, o massagista da Seleção, todos sabem quem é Marin.

Mas poucos têm a coragem de um Kfouri para defini-lo como o “personagem bizarro”, que elogiava até torturadores em seus discursos como deputado. Corria por debaixo das mesas das redações, pelas conversas em hotéis que hospedam a Seleção e pelas trocas de e-mails pela internet que Marin era tudo o que o FBI já sabe que é. Ninguém incomodava sua impunidade e tampouco a vida mansa de seus amigos João Havelange e Ricardo Teixeira.

Faltam uma polícia, um Ministério Público e um juiz Sergio Moro na vida de José Maria Marin. Assim como faltou jornalismo, para que Marin fosse formalmente identificado como corrupto, antes da ação dos investigadores suíços e americanos. Aqui, as suspeitas contra o sujeito eram apenas curiosidades compartilhadas quase como folclore.


Marin é a excrescência dos que ajudaram a sustentar a ditadura e conquistaram cumplicidades para desfrutar do prestígio sempre renovado pelo dinheiro e pelo gangsterismo do futebol. Alguém terá de assumir aqui a continuidade do trabalho iniciado pelo FBI, para que os cupinchas de Marin saiam da toca, ou a direita brasileira só conhecerá cadeia na Suíça.

31 de maio de 2015 | N° 18179 L. F. VERISSIMO
As aventuras da família Brasil

A invasão

A divisão ciência/humanismo se reflete na maneira como as pessoas, hoje, encaram o computador. Resiste-se ao computador, e a toda a cultura cibernética, como uma forma de ser fiel ao livro e à palavra impressa. Mas o computador não eliminará o papel. Ao contrário do que se pensava há alguns anos, o computador não salvará as florestas. Aumentou o uso do papel em todo o mundo, e não apenas porque a cada novidade eletrônica lançada no mercado corresponde um manual de instrução, sem falar numa embalagem de papelão e num embrulho para presente.

O computador estimula as pessoas a escreverem e imprimirem o que escrevem. Como hoje qualquer um pode ser seu próprio editor, paginador e ilustrador sem largar o mouse, a tentação de passar sua obra para o papel é quase irresistível.

Desconfio que o que salvará o livro será o supérfluo, o que não tem nada a ver com conteúdo ou conveniência. Até que lancem computadores com cheiro sintetizado, nada substituirá o cheiro de papel e tinta nas suas duas categorias inimitáveis, livro novo e livro velho. E nenhuma coleção de gravações ornamentará uma sala com o calor e a dignidade de uma estante de livros. A tudo que falta ao admirável mundo da informática, da cibernética, do virtual e do instantâneo, acrescente-se isso: falta lombada. No fim, o livro deverá sua sobrevida à decoração de interiores.

A urna eletrônica é um exemplo da invasão inevitável da cultura científica em todos os nossos costumes. Imagino que ela seja apenas o começo de uma informatização progressiva do processo eleitoral que culminará, um dia, com a eliminação do próprio candidato. Em vez de digitar na urna os números que identificam o candidato com as características e as qualidades que você quer, você digitará os números que identificam as características e as qualidades que você quer – e o computador fabricará um candidato com as especificações mais procuradas. Em vez de um presidente, por exemplo, teremos uma espécie de print-out consensual.

Como o amor e as compras, um dia a democracia também será feita só através da internet. Você não precisará sair de casa para votar – e poderá votar em qualquer eleição do mundo! Se a globalização já tivesse chegado a esse ponto, você poderia ter votado nas recentes eleições na Inglaterra, por exemplo. Só não votará quem não estiver ligado na internet, mas a essa altura quem não estiver ligado na internet não fará mais nada e não será mais ninguém. E um dia o circuito se fechará.


Digitaremos no nosso computador para eleger computadores. Computadores programados farão o trabalho do Legislativo e do Executivo. Eliminaremos o fator humano, a técnica nos dominará e seremos felizes. Ou infelizes, dará no mesmo, porque não haverá ninguém para culpar, e os computadores farão pouco dos nossos protestos. Até o presidente será um computador central. E, no Brasil, a única coisa certa é que o vice será do PMDB.
Canto Livre Desgarrados

Horizontes - Elaine Geissler

ESISTENZE (Vivências) - Sergio Napp e Mario Barbarà - versione italiana: Neville Lyon


desgarrados
RUTH DE AQUINO

A gente se sente como quem partiu ou morreu

Formamos cada vez mais bandidos e menos cidadãos. O crime da Lagoa é um alerta a um Estado omisso e incompetente

Tem dias que a gente se sente/Como quem partiu ou morreu/A gente estancou de repente/Ou foi o mundo então que cresceu/A gente quer ter voz ativa/No nosso destino mandar/Mas eis que chega a roda-viva/E carrega o destino pra lá.

Tem semanas que a gente precisa apelar para a poesia de Chico Buarque. Essa foi uma semana assim, marcada por um assassinato a sangue-frio, com requintes de crueldade, cometido com uma faca numa das áreas urbanas mais belas do Brasil: a Lagoa Rodrigo de Freitas. A Lagoa sediará algumas provas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e atrai atletas e famílias nos fins de semana.

Um médico cardiologista do Hospital Universitário do Fundão, da UFRJ, desarmado, pai divorciado que morava com os filhos, foi esfaqueado enquanto pedalava sua bicicleta. Cioso das regras dos ciclistas, usava capacete. Foi atacado por trás e, mesmo caído no chão, levou um corte no abdome, de baixo para cima, que atingiu quatro órgãos e frustrou qualquer chance de sobrevivência após oito horas de cirurgia. O principal suspeito é um jovem de 16 anos, franzino, com corte de cabelo parecido com o de jogadores de futebol e 15 passagens pela polícia, filho de uma catadora de lixo da favela de Manguinhos, abandonada pelo marido com três filhos.

Foi um choque. Não é caso isolado. Assaltos com facas – armas brancas cujo porte é permitido por lei – viraram moda no Rio. No transporte público, também os pobres, especialmente mulheres, têm sido ameaçados com faca por gangues de jovens. Atrás de celulares, carteiras, vale-refeição. Minha empregada, que acorda às 4h30 da manhã para vir trabalhar, conta que a garotada passa rasgando com faca as bolsas das passageiras nos pontos de ônibus.

Diante da tragédia que vitimou o médico Jaime Gold, as reações foram também extremas e desencontradas. A imprensa foi acusada de dar mais destaque a esse crime do que aos de um rapaz de 24 anos e um adolescente de 13 anos, mortos covardemente a tiros por um policial civil no Morro do Dendê, na Ilha do Governador. No mundo inteiro é assim. Em periferias ou áreas conflagradas, em guerra, as mortes recebem menos atenção do que os crimes em área turística, de lazer, buscada por nativos e estrangeiros.

Por envolver menores de idade, esse crime obriga políticos e sociedade a examinar com lupa sua imagem no espelho. Está claro que a culpa é de todos – além do assassino. Há muitos “monstros” por aí. Não nasceram assim. Mas nem por isso devem continuar impunes e soltos. Falta policiamento ostensivo. O Rio está coalhado de viaturas paradas, com policiais conversando, e áreas estratégicas abandonadas. Mas não basta e nem há policiais suficientes para colocar um PM em cada esquina. Falta preparo. Fardados não podem matar, achacar e montar versões. Não basta ser expulso da corporação. Precisa ser isolado da sociedade.

Falta iluminação pública. Falta saneamento para não conviver com ratos. Falta a presença do Estado nas favelas. Não adianta ter UPP sem o Estado.

Falta investigação: até agora não entendi como esse menino, considerado foragido, tinha tantas bicicletas caras roubadas no barraco após 15 passagens pela polícia. Impressionou a rapidez com que os policiais o encontraram.

Falta rigor da Justiça: adultos ou adolescentes, não importa a idade, ficam detidos pouco tempo para os crimes que cometem; e isso vale para os corruptos, os estupradores e os assassinos do trânsito.

Falta reduzir a maioridade penal em crimes hediondos. Se um crime bárbaro desses rendesse prisão perpétua ou 30 anos, não importa a idade do assassino, mesmo os pobres e carentes só roubariam da vítima, e não tirariam vidas.

Falta descriminalizar as drogas, começando pela maconha, para dar um tiro no pé e no nariz do crime organizado.

Falta melhorar o sistema penitenciário. Tanto as instituições de menores quanto nossas cadeias comuns são escolas de crimes, indignas. A maioria absoluta de crianças pobres quer estudar e trabalhar. Para os que  desafiam os pais, fogem de casa e preferem ser delinquentes, que tal criar presídios-escolas?

Falta sobretudo uma sociedade digna, que forme cidadãos e não bandidos. Falta planejamento familiar para evitar paternidade e maternidade aos 14 ou 16 anos. Faltam creches para bebês serem assistidos com carinho e as mães poderem trabalhar.

Falta, na “pátria educadora”, Educação com maiúscula, para todos e de qualidade em tempo integral – não escolas sem merenda, sem banheiro e sem professores. Quando lembro os Cieps do Brizola e do Darcy Ribeiro, solução simples, barata e eficaz, por isso abandonada... quando lembro uma frase atribuída ao Brizola: “O PT é a UDN de macacão”... aí eu penso que tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.



30 de maio de 2015 | N° 18178 PALAVRA DE MÉDICO
J.J. CAMARGO

Nunca estamos prontos para perder

Não há um jeito padronizado de dizer o que ninguém quer ouvir

A reação das pessoas ao sofrimento tem sido um inesgotável manancial de pesquisa sobre o comportamento das vítimas, e os seus extremos de tolerância e abnegação. Um pastor adventista, trabalhando no Memorial General Hospital, um grande centro de oncologia de Nova York, entrevistou 196 famílias que tinham perdido parentes vitimados de câncer num período de 18 meses.

Uma das perguntas repetidas a cada entrevistado buscava descobrir qual tinha sido o momento mais inesquecivelmente sofrido daquela experiência dolorosa. Um dado surpreendeu: quase 60% referiu que a falta de sensibilidade na comunicação da morte havia suplantado a dor da própria perda. Deprimente que, tendo aprendido tantas maneiras eficazes de prolongar a vida, não nos tenham ensinado como ser solidários na hora da morte.

Um dia desses, retomei essa discussão ao tentar socorrer um residente que, tendo constatado um óbito na terapia intensiva, confessou sentir-se incapaz de conversar com a família que aguardava por notícias na sala de espera. Nem a previsibilidade do desfecho, repetidamente passada aos familiares que acompanhavam a gravidade do caso, serviu para amenizar a ansiedade da inexperiência.

Como, de certa forma, tratamos nossa autoestima auxiliando pessoas que contam com nosso desempenho, assumir que perdemos será sempre desagradável e deprimente. Duas verdades transpareceram desse episódio: 1) ninguém gosta de dar notícia ruim; 2) as nossas escolas médicas, com raras exceções, ainda não incluíram no currículo a disciplina de cuidados paliativos que tem a missão de ensinar como se transita nesse delicado campo das relações humanas, onde se exige uma combinação de delicadeza e solidariedade para encarar uma realidade irretocavelmente cruel e dolorosa.

Precisando socorrer nosso jovem residente, fiquei buscando palavras e concluí que não há um jeito padronizado de dizer o que ninguém quer ouvir. E que a morte, qualquer que seja a circunstância, é a capitulação definitiva do nosso intento de preservar a vida, porque, afinal, é esse esforço que nos estimula e impulsiona, e, às vezes – e queríamos tanto que fossem mais frequentes –, orgulha-nos.


Por isso, não acredite na frieza dos médicos, mesmo que alguns aparentem rigidez absoluta. Todos nós perdemos pedaços mais ou menos dolorosos com essas mortes miseráveis que insistem em atazanar nossa atividade e a reiterar a nossa frágil condição de humanos. Muitas vezes, a indiferença é apenas uma máscara precária para despistar o quanto sofremos.

30 de maio de 2015 | N° 18178
NÍLSON SOUZA

PIRATAS NA SERRA

Sei que as queridas leitoras e os distintos leitores não vão acreditar, mas estive na semana passada a bordo do Pérola Negra, ao lado do capitão Jack Sparrow. Com a calva coberta por um chapéu de três pontas, empunhei uma espada e, por breves momentos, me senti um pirata do Caribe no Museu de Cera de Gramado, o Dreamland, que reúne esculturas representativas de personagens reais e imaginários da política, da música, do esporte e do cinema.

Foi divertido contracenar com Johnny Depp na sessão de fotos, ainda que o talentoso ator tenha permanecido em silêncio, como exigia sua condição de estátua.

Tenho um certo fascínio por histórias de piratas desde que li na adolescência as aventuras do Capitão Blood, do escritor ítalo-britânico Rafael Sabatini. É um magistral relato da saga do médico irlandês Peter Blood, que se tornou um combatente dos mares caribenhos depois de ter sido preso como traidor pelos guardas do rei James II, da Inglaterra, e mandado como escravo para uma colônia na Jamaica. Lá por mil novecentos e antigamente, o romance de Sabatini foi transformado em filme, com Peter Blood sendo interpretado pelo lendário Errol Flynn.

Depp inspirou-se no veterano ator e no guitarrista Keith Richards, dos Rolling Stones, para criar o trejeitoso capitão Jack Sparrow, que lhe valeu a indicação ao Oscar em 2003.

Com essas referências na memória, também viajei pelos mares da imaginação enquanto brincava de pirata no veleiro improvisado do museu. Quando saí, depois de passar por presidentes americanos, pela família real inglesa, por astros do futebol e do cinema, chovia fino e uma névoa outonal cobria a bela cidade serrana, prologando a sensação fantasiosa.

Parecia que a qualquer momento, de uma daquelas esquinas molhadas e encobertas pela cerração, apareceria o navio de bandeira negra, com sua alegre tripulação de fantasmas esfarrapados.


E pensar que tudo isso começou com uma leitura adolescente. Como disse o mestre da fantasia Walt Disney, há mais riquezas nos livros do que na arca dos piratas da Ilha do Tesouro.

30 de maio de 2015 | N° 18178
DAVID COIMBRA

Sergio Napp, o campeão dos campeões

Eu tinha uma raiva daquele Sergio Napp. Ele sempre ganhava o Prêmio Habitasul de Literatura. De mim, quero dizer – ele ganhava de mim. E de todos os outros também, diga-se a verdade. Inscrevia-me no concurso de contos, centenas de sôfregos candidatos a escritor se inscreviam, e, no fim, quem vencia? Sergio Napp.

Sergio Napp, Sergio Napp, Sergio Napp.

Me dava uma raiva. Mas quem é esse Sergio Napp?, perguntava. Descobri ao ouvir Desgarrados, que ele compôs em parceria com Mário Barbará. É uma canção belíssima, campeã (é claro) da Califórnia da Canção de 1981.

Que música linda. Que melodia docemente nostálgica. Que poesia tão cheia de significado e tão cheia de emoção. Esse Sergio Napp é bom demais, pensei. E admiti ser muita pretensão um pirralho de 15 anos de idade querer vencê-lo num concurso de contos.

Desgarrados. Até hoje aperta-me o peito quando a ouço. A história daqueles homens altivos do campo que se transformam em pingentes na Capital.

“Faziam planos e nem sabiam que eram felizes

Olhos abertos, o longe é perto, o que vale é o sonho.”

Tempos depois, passados tragos, muitos estragos, por todas as noites, meio que perdi Sergio Napp de vista. Acabei por reencontrá-lo após mais de 12 anos, também numa, por assim dizer, ocasião literária: lançava meu primeiro livro na Feira de Porto Alegre. Havia, sei lá, umas 10 pessoas na minha fila de autógrafos. Já a fila do autor sentado ao meu lado era imensa, cinco vezes maior, o cara não parava de fazer dedicatórias, era tanta gente em volta dele, que não conseguia vê-lo. A certa altura da noite, curioso, aproveitei uma oportunidade, estiquei o pescoço e o vi. Ele. Sergio Napp! Não é possível, rosnei, esse cara está de sacanagem comigo!

E sopraram os ventos, e mais tempo passou, e me desgarrei de Porto Alegre, e agarrei-me à minha cidade outra vez, e não sabia mais de Sergio Napp, até que um dia, depois de publicar uma crônica no jornal, recebi um e-mail dele. Era um caloroso elogio ao meu texto. Que felicidade! Sergio Napp, o campeão dos campeões, dizia gostar do que eu escrevia, eu, que, na arrogância da pré-adolescência, tive a audácia de competir com ele! Aquilo era um título para mim.

Não resisti. Respondi ao e-mail contando a história do prêmio de literatura. Ele riu muito e, a partir daquele dia, sempre enviava gentis considerações aos meus textos, enchendo-me de orgulho, ou então comentando algo sobre a cultura gaúcha ou sobre as amenidades do futebol. Tornou-se um agradável amigo virtual.


Sergio Napp morreu na quinta-feira. A morte de um amigo é um pedaço do mundo que deixa de existir. O mundo era de um jeito, agora é de outro. A gente se sente como que desgarrado, porque, o que foi, nunca mais será.

30 de maio de 2015 | N° 18178
CLÁUDIA LAITANO

452 a 19

Apenas 19 deputados manifestaram-se a favor da reeleição para o Poder Executivo na votação da reforma política realizada nesta semana. Acachapantes 452 foram contra. A proposta de acabar com a reeleição ainda precisa ser votada em segundo turno na Câmara antes de seguir para o Senado, mas já é evidente para que lado o vento político está soprando.

Os motivos para um consenso tão grande contra um mecanismo chancelado pelo próprio Congresso há apenas 18 anos provavelmente têm menos a ver com debates de alto nível sobre gestão pública do que com interesses políticos. Fora da patota do “primeiro eu”, cada vez mais forte e expedita, porém, devem existir deputados que são genuinamente contra a reeleição. Para esses, a curta experiência de recondução mostrou-se um passe live para que políticos extraiam até a última gota de benefícios da máquina administrativa para permanecer no poder.

Descontados oportunistas, pragmáticos e desiludidos, portanto, restaram apenas 19 deputados. Entre esses, alguns devem pensar como eu: erra-se mais tirando alguém que está fazendo um bom trabalho e confiando no juízo do eleitor para dizer quem parte e quem fica do que montando e desmontando projetos o tempo todo (como no governo do nosso Estado, por exemplo).

Não tenho nenhuma experiência na administração pública, mas na iniciativa privada é comum ver boas ideias que demoram a dar resultados. Se a Apple começasse tudo de novo, do zero, de cinco em cinco anos, e não pudesse aprender com os próprios erros e acertos, o iPhone só seria inventado em 2020.

Claro que a reeleição não resolve todos os problemas, e às vezes não é sequer garantia de que um bom trabalho vai ter continuidade, já que ministros e secretários eficientes num governo podem bailar no outro se suas pastas virarem moeda de troca política, mas era um avanço – especialmente depois que a Lei de Responsabilidade Fiscal tornou mais difícil a gastança inconsequente.


O Brasil da reeleição é o que confiava na possibilidade de que a gestão pública um dia viesse a ser encarada com algum tipo de idealismo e seriedade. O Brasil sem reeleição é o que capitulou não apenas à realpolitik, mas à turma do “primeiro eu”.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Jaime Cimenti

Bibliotecas, livros e leitores nas ruas

No jornal Zero Hora de terça-feira passada, na página 10, assinada pela editora de política Rosane de Oliveira, escrevendo diretamente da cidade alemã de Erlangen, do interior da Alemanha, onde cobre a viagem do governador José Ivo Sartori a convite do Sebrae, estão uma foto de uma estante de madeira, com porta de vidro, na rua principal da cidade, com livros protegidos da intempérie, ao alcance de quem quiser pegar de empréstimo ou de quem quer colocar livros à disposição de outros leitores e um pequeno texto que acompanha a foto. Segundo Rosane, a experiência funciona.

A experiência é, de fato, bem interessante, e sei de casos parecidos em outros lugares do mundo, inclusive Porto Alegre. Muitas pessoas têm livros sobrando em casa e espaço de menos, especialmente nos apartamentos pequenos das grandes cidades. De mais a mais, o conceito de que livros, ideias e histórias devem circular tem sido aplicado. Sei que a Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, por exemplo, oferece exemplares nos átrios dos prédios para partes, advogados e testemunhas que aguardam pelas audiências. Boa ideia.

Na rua Florêncio Ygartua 151, bairro Moinhos de Vento, o Mercado Brasco proporciona, numa das prateleiras da estante metálica da frente da loja, a possibilidade de as pessoas deixarem livros ou levá-los para leitura. Atitude simpática. Andei examinando o acervo. As condições dos livros e os títulos me pareceram muito bons, e a ação tem tudo para seguir dando certo e ser imitada.

Soube que, em alguns táxis e ônibus, pessoas estavam deixando livros. Acho que nos parques e nas praças da cidade, especialmente nos fins de semana, ações envolvendo trocas de livros podem ser feitas. Aliás, a Secretaria Municipal da Cultura (SMC), há 13 anos, se não me engano, realiza a Feira de Troca de Livros no Parque da Redenção, ação democrática e simpática em favor do livro, da leitura e dos leitores, que merece referência, continuidade e apoio. A feira está prevista em lei municipal.

Soube que existe uma ação a ser executada em taxis, pela SMC, com apoio de uma editora e de uma empresa comercial, para distribuição de livros nos táxis, em sacolas, como incentivo à leitura. No Facebook, pessoas e grupos já trocam e negociam livros, CDs e DVDs usados, é claro, aproveitando a tecnologia e colocando para circular os acervos.

Fico torcendo para logo ver, assim como livros, discos de vinil, CDs, DVDs e outros produtos de comunicação e cultura circulando gratuitamente por aí, em benefício de todos, na maior democracia. Por que só livros?

Troca de livros em parques e praças, doações para escolas, bibliotecas, presídios, hospitais, táxis, ônibus e outros locais são ações louváveis e que, a praticamente custo zero, produzem efeitos benéficos para muitas pessoas.

A propósito...

Estou na direção do Instituto Estadual do Livro (IEL), órgão da Secretaria Estadual da Cultura que tem, entre suas missões, incentivar a leitura e divulgar livros, especialmente rio-grandenses. As ideias do texto acima são bem inspiradoras, mas, claro, todos os que tiverem outras sugestões, por favor, encaminhem, que serão muito bem-vindas. 

O livro, a leitura e os leitores agradecem. Como se vê pelos exemplos citados, a comunidade livreira tem mostrado generosidade, atributo importante nesse nosso mundo conturbado. E generosidade delicada, anônima, desinteressada. Não é pouco, não é?
Jaime Cimenti


AGE EDITORA/DIVULGAÇÃO/JC

Sepé Tiaraju bilíngue, de Alcy Cheuiche

Sepé Tiaraju - Romance dos Sete Povos das Missões (AGE, 295 páginas, tradução de Helmut Burger), do consagrado escritor Alcy Cheuiche, em edição de luxo, bilíngue (português/alemão), tem capa dura e miolo inteiramente em cores. As fotos são do celebrado fotógrafo Leonid Streliaev.

O volume foi lançado nesta quinta-feira, no Teatro Bruno Kiefer, e já se coloca como um dos maiores lançamentos literários deste ano - pela importância temática, histórica, pela qualidade literária e pela excelência editorial. Cheuiche dedica-se, principalmente, ao romance histórico e já retratou gigantes como Santos Dumont, João Cândido, Bento Gonçalves, Getúlio Vargas e muitos outros. O farol da solidão é seu romance mais recente e foi lançado há poucas semanas. Cheuiche realizou, ainda, palestras em vários países.

Esta edição de Sepé Tiaraju comemora os 190 anos da Imigração Alemã no Brasil, sendo apresentada pelo Ministério da Cultura e tendo patrocínio do Banrisul por meio do financiamento da Lei de Incentivo à Cultura - Lei Rouanet. Traduzido anteriormente para o espanhol e para o alemão, o livro foi editado em quadrinhos e em braile. A primeira edição do romance é de 1975.

Alcy Cheuiche e Leonid Streliaev percorreram juntos as ruínas missioneiras especialmente para esta obra. O fotógrafo iluminou com maestria as palavras do romancista e, a partir, deste diálogo, os leitores poderão reviver a história do lendário índio guarani Sepé Tiaraju, hoje reconhecido pela Unesco como Panteão da Pátria Brasileira e líder da resistência indígena ao Tratado de Madrid (1750) nos Sete Povos.

A obra recupera um dos maiores exemplos de colonização justa, cooperativa e cristã da história da humanidade e, acima de tudo, representa um compromisso com os deserdados da terra. O filósofo Voltaire caracterizou a experiência Guarani como um verdadeiro triunfo da humanidade. Os guaranis foram convertidos para o Cristianismo e, povo pacífico e próspero, terminou condenado à destruição e a morrer como povo livre, porque sua existência, inofensiva e feliz, representava a condenação viva e irrefutável de todo o sistema colonial da época.


Enfim, o romance premiado em 1978, que já tivera nove edições no Brasil e edições no Uruguai e na Alemanha, agora mereceu esta belíssima reimpressão comemorativa, bilíngue, que é mais uma ótima oportunidade para os leitores tomarem contato com uma das mais belas experiências de colonização que o mundo já viu. E que jamais, jamais deve ser esquecida.

29 de maio de 2015 | N° 18177
MOISÉS MENDES

Interioranos

Se a pessoa que anda a sua frente no centro de Porto Alegre caminha olhando para o alto, é óbvio que se trata de um interiorano. Não é um forasteiro de outra cidade grande, é alguém do Interior. O interiorano olha para cima em busca das surpresas da cidade vertical.

Isso é o básico, todo mundo sabe. Mas meu amigo Gustavo Ferenci identifica a origem do interiorano pelo jeito de andar. Não pelo tipo físico ou pelas características étnicas, porque aí fica fácil, mas pelo caminhar.

Gustavo é capaz de dizer se alguém andando pela Avenida Otávio Rocha, virando-se para um lado e para o outro, como quem procura a rodoviária, é de Passo Fundo ou de Vacaria. Ele observa o ritmo, a pressa ou a lerdeza, os movimentos dos braços.

Alguém de Bento ou Caxias, por exemplo, anda com as pernas à frente do tronco, como se a parte abaixo da cintura tivesse que chegar sempre antes. Já o fronteiriço é o contrário.

Oriundos de Livramento e de Uruguaiana caminham com o tronco para a frente e com as mãos nos bolsos. Cabeça e peito chegam antes das pernas. Preste atenção nos que andam de bota e bombacha. É a ciência do Gustavo.

A passada do fronteiriço também é mais larga e mais firme. E há um molejamento de tronco. Já o morador do Litoral é parecido com o da Capital, com a diferença de que anda mais devagar e quase arrastando os pés – pelo costume de andar de chinelos na areia.
São estudos empíricos da antropologia ferenciana. Gustavo fica uma hora debatendo as possíveis diferenças entre o tipo de Quaraí e Itaqui, por exemplo. São mínimas.

Ele se inspira nos estudos do grande Claude Lévi-Strauss, que observava tudo, dos índios aos japoneses, para concluir que não há superioridades entre povos, como não há diferenças fundamentais entre o que seria o civilizado e o primitivo.

Pelos estudos de Gustavo, conclui-se que, apesar das peculiaridades, também não há distinções fundamentais entre o interiorano e o morador da Capital – além da fala e do jeito de caminhar.

O homem da Capital, concluiu Gustavo, caminha quase sempre olhando para o chão. Preste atenção nos pedestres da Rua dos Andradas. E quem caminha olhando para pedras e asfaltos não pode se achar superior a quem perscruta a cidade olhando para o alto.


Pena que Claude Lévi-Strauss tenha morrido sem falar com o Gustavo.

29 de maio de 2015 | N° 18177
MARCOS PIANGERS

O que ninguém conta

É fácil se emocionar com a relação entre pais e filhos. Crianças são fofas, engraçadas, inteligentes. Pais se identificam com momentos especiais, como o nascimento, os primeiros passos, os dentes nascendo. São momentos bobos, mas emocionantes. Curto todas as fotos de crianças nas redes sociais, indiscriminadamente. Acho a coisa mais bonita do mundo. Mas sei que existe um lado que ninguém mostra: os momentos difíceis da paternidade. E são vários.

Por mais que você tenha lido alguns livros e acompanhado os amigos que têm filhos nas redes sociais, nada prepara você para a primeira noite sozinho com seu filho. Aquela minipessoa irá chorar, e fazer xixi e cocô, e não irá dormir, e ninguém nunca colocou isso no Instagram. Você vai achar que acontece só com você. Que você é um péssimo pai. Depois, os filhos vão crescendo e, de novo, irão aparecer momentos complicados.

Tentar colocar as crianças no banho. Tentar fazê-las escovar os dentes. Tentar fazê-las andar mais rápido quando você está com pressa. Tentar fazê-las dormir. E o pior de todos: tentar fazê-las comer.

Tentamos de tudo. Arroz colorido, legumes disfarçados, promessas de que vai ficar forte. “Come só esse pouquinho”, imploramos. Pra cada colherada, a criança quer passear, caminhar enquanto mastiga. Volta depois de 15 minutos pra mais uma colherada. A comida está fria. Vinte segundos no micro-ondas. Só mais uma colherinha! O almoço dura horas, às vezes dias. Ficamos velhos tentando fazer uma criança comer.

Apelamos para a televisão. Enquanto está hipnotizada pela Peppa Pig, vamos enchendo colheres de comida e lentamente colocando-as perto da boca da criança. Ela abre, instintivamente. Começa a mastigar a comida lentamente. Eventualmente, percebe que está mastigando a comida, faz cara de nojo e devolve o conteúdo no prato. Alguns pais (prepare o estômago) comem o resto dos filhos, inclusive essas colheradas mastigadas.


Ninguém conta essas histórias dramáticas. Ninguém posta vídeos desses momentos no YouTube. As redes sociais mostram apenas sorrisos e soninhos. Fotos lindas que eu curtirei indiscriminadamente, enquanto tento alimentar as minhas crianças.

29 de maio de 2015 | N° 18177
UM PROFESSOR INESQUECÍVEL

O Camisa, o punk e Porto Alegre

DIRETO DA BAHIA, Marcelo Nova e sua turma introduziram o punk rock para muitos porto-alegrenses nos anos 1980

Em meados dos anos 1970, não havia internet, nem TV por assinatura, nem locadoras de fitas VHS. As poucas lojas de discos importados só ofereciam música erudita e rock progressivo. Nas festas, dançava-se como John Travolta. Nos lugares mais escuros e alternativos, Beatles e Rolling Stones ainda reinavam, absolutos. As rádios quase não tocavam rock. Por tudo isso, é natural que a grande explosão musical do punk que aconteceu em Londres e Nova York por volta de 1976 não tenha sido escutada em Porto Alegre.

São Paulo, mais cosmopolita, ouviu um pouco, tanto que, na sua periferia, jovens do ABC, em sua maioria filhos de operários, formaram as primeiras bandas. Em 1982, foi realizado o festival O Começo do Fim do Mundo, reunindo grupos que mais tarde lançaram discos importantes, como Cólera, Inocentes, Olho Seco e Ratos de Porão. O barulho desse fim de mundo, porém, também não foi ouvido em Porto Alegre.

Lançado no Brasil com pouca publicidade, o álbum Never Mind the Bollocks, dos Sex Pistols, graças à sua capa maravilhosamente desleixada e ao seu som maravilhosamente sujo, começava a chamar a atenção, mas foi um outro disco, por incrível que pareça brasileiro, e por incrível que pareça de uma banda baiana, que introduziu o punk para muitos porto-alegrenses. Em 1983, o Camisa de Vênus lançou o seu primeiro LP, e muitas das suas canções eram maravilhosamente punks. Eles tinham o som, as letras e a atitude de bandas inglesas e norte-americanas que ainda não eram conhecidas no Brasil, mas eram bem conhecidas de Marcelo Nova.

Para mim, o início do punk foi Pistols e Camisa. E daí para a frente foi um turbilhão sonoro, que todo mundo ouviu. Quando Os Replicantes começaram seus ensaios, em dezembro de 1983, já procurávamos avidamente os discos (ou fitas) de The Clash, Ramones, Dead Kennedyz, Buzzcocks (de quem o Camisa fez algumas versões) e muitos outros. Mas continuávamos ouvindo Camisa de Vênus.


Em 1985, conhecemos a banda, em especial o Marcelo e o Robério Santana, que namorou uma gaúcha e morou aqui por algum tempo. Pessoas bacanas, muito bem informadas e que tinham prazer em dividir o palco conosco. O Camisa fez shows antológicos no Araújo Vianna e no Gigantinho e de vez em quando volta pra cá, porque seu público porto-alegrense é fiel. Claro, eles nos ensinaram, na prática, o que era punk rock. Um professor como esse a gente não esquece.

quinta-feira, 28 de maio de 2015


28 de maio de 2015 | N° 18176
ARTIGOS - GRAZIELLE ARAUJO*

O HAITI É AQUI?

Ao abrir os jorn a i s , d e p a r o com matéria s sobre a chegada de 300 haitianos no Estado. Entre as notícias, há informações de que receberão curso de português e que uma empresa do ramo de estacionamentos já disponibilizou 50 vagas para os imigrantes. Uma discussão sobre de quem é a responsabilidade – federal, estadual ou municipal – reina em cima do assunto.

Diante de tudo isso, me questiono: e os brasileiros que estão sem emprego? E os analfabetos que mal sabem assinar o seu nome? Será que chegamos mesmo a esse estágio, o de receber imigrantes e dar a atenção devida a eles? Como ficam os nossos?

Pode ser hipocrisia, talvez até um certo egoísmo, mas penso que deveríamos fazer primeiro a lição de casa. Sermos exemplos de um povo que beira o mínimo de taxa de analfabetos, de desempregados e de famílias em vulnerabilidade. E a realidade está, infelizmente, bem distante disso.

Vieram ao Brasil buscar refúgio, enquanto, por aqui, estamos procurando o nosso lugar ao sol. Triste constatação, mas não estamos prontos para resolver problemas que não são nossos, mal administramos a nossa realidade. O Haiti está pior do que nós, pura verdade.

Desde o terremoto de 2010, a população foi devastada. Mas o que a nossa pátria amada pode fazer, além de ser gentil? Vamos resolver o problema dessas pessoas, que nos veem como uma única luz no fim do túnel? Ou seremos responsáveis, mais uma vez, pelas coisas não darem certo?

Longe de mim ter pensamentos pessimistas, primo sempre pelo otimismo. Mas essa infinidade de perguntas ainda está sem resposta. Somos exemplo? O que temos mesmo para oferecer? Não há estratégia nacional organizada para acolher essas pessoas.

O governo federal não sabe como melhorar a acolhida. Só que, antes disso, deveria se dedicar a abraçar os milhares de lares que estão abandonados pelas autoridades que prometeram mundos e fundos. Até agora, observamos. O corte de benefícios, a errata de discursos e a incansável busca pelo tempo perdido. O Brasil precisa primeiro tomar jeito para, depois, ter a manha e o orgulho de resolver problemas que não nos pertenciam.


*Jornalista

28 de maio de 2015 | N° 18176
ARTIGO -LEONARDO OLIVEIRA*

VOLTEI DE BOGOTÁ COM INVEJA

Osorriso dos bogotanos evidencia a satisfação com o momento que vivem. Não é para menos. Percebe-se fácil a mão do Estado para beneficiá-los. Trata-se de uma capital que, entre os carros e as pessoas, ficou com as pessoas. Os passeios são largos e ajardinados. As ciclovias se estendem por 269,3 quilômetros, conforme o site oficial da cidade.

As ciclorrutas, como eles chamam, estão integradas aos BRTs, criados há 15 anos pelo prefeito Enrique Peñalosa, que veio a Curitiba copiar a ideia. Os articulados zunem por 104 quilômetros de corredores de concreto. Em cada estação envidraçada e ampla (e sem pichações ou cartazes de shows baratos), há boxes com ganchos para que os ciclistas pendurem suas bicicletas. São saídas para amenizar o trânsito pesado, que ainda exige rodízio de placas na hora do rush.

Bogotá é uma cidade para ser conhecida a pé – apesar da altitude. A segurança se faz presente nas ruas. É ostensiva. Tanto a pública quanto a privada, em que homens caminham sempre ladeados por cães. A luta contra o narcotráfico foi vencida, mas é nítido que a Colômbia não baixa a guarda. Labradores são parceiros inseparáveis de policiais e seguranças. Farejam veículos na entrada do estacionamento dos shoppings enquanto o porta-malas é revistado.

Quem entra a pé no shopping também passa por revista, com detector de metais. Ninguém reclama ou franze o cenho. Os bogotanos sabem o quanto foi dura a vida. E quanto ela melhorou. Por isso sorriem e se orgulham da sua cidade.


E isso, confesso, me fez trazer na mala uma ponta de inveja.

28 de maio de 2015 | N° 18176
DAVID COIMBRA

O traidor da pátria

A professora avisou que iríamos discutir uma reportagem do New York Times em aula. Tive medo. Entenda: assino o Times “de papel”. Sou daqueles que gostam de apoiar o tornozelo direito no joelho esquerdo e abrir o jornal em cima da canela, enquanto bebo café. Ocorre que quase nunca há nada sobre o Brasil no NYT.

O correspondente, que, se não me engano, mora no Rio, deve viver na praia.

Dias atrás, porém, saiu uma matéria alentada, de capa, a respeito da violência da polícia brasileira. Compreensível: violência policial é o assunto do ano nos Estados Unidos.

Meu medo era de que a professora tivesse trazido justamente essa matéria. Não que queira esconder a realidade, mas não gosto de falar mal do Brasil para estrangeiros. Nós que tratemos de nossas mazelas internamente.

Bem. Era a maldita matéria.

O texto começa com a morte daquele menino no Complexo do Alemão, no mês passado, e segue descrevendo o “massacre de crianças e adolescentes pela polícia”. A folhas tantas, um diretor do Instituto Sou da Paz declara que a classe média brasileira “aceita assassinatos feitos pela polícia como uma prática legítima”.

A classe média. Sempre aprontando...

Os outros alunos me olharam, e havia certa censura no olhar deles. Preferi calar. Mas, por deboche do destino, esse gozador, havia um brasileiro novo na aula. Era a primeira vez que aquele cara aparecia, um economista de algum lugar como, sei lá, Goiânia. Esse brasileiro era desinibido e ficou excitadíssimo porque estavam falando do Brasil. A todo instante, fazia intervenções:

– Recomendo que vocês nunca visitem o Rio! Nunca! Lá, as pessoas são assassinadas a facadas em pontos turísticos!

Todos me olharam de novo.

– Não é bem assim... – tentei argumentar. – Existe violência em algumas regiões, como em qualquer lugar, mas o Rio é a cidade mais linda do mundo. Vale a pena ver.

– Na Lagoa! – gritou o brasileiro. – Estão matando na Lagoa!

– Mas as pessoas não são presas no Brasil? – perguntou a chinesa.

– São, claro. Há 500 mil presos no Brasil e...

– Mas eles são soltos! – atalhou o economista. – Presos de manhã e soltos à tarde!

– É verdade? – quis saber o russo neoliberal.

– É verdade, mas existem 500 mil presos. Quer dizer: muita gente está presa, mesmo que muita gente seja solta quando é presa...

Vi que eles ficaram confusos. E eu também. Como explicar aquilo? E em inglês?

– Os presídios lá são desumanos! – interrompeu o espanhol comunista.

– E a polícia mata crianças! – acrescentou a ucraniana, já levemente emocionada.

– Não é bem assim – protestei, temendo que a ucraniana chorasse. – No meu Estado, por exemplo, é diferente. Eu sou do sul do Brasil, e lá...

Mas ninguém me deixava concluir. A italiana havia se virado para o espanhol comunista e comentava, para que todos ouvissem:

– Eu li que os presídios do Brasil são horríveis, pior que pena de morte.

– Você deve ter lido sobre o Pizzolato – observei. – Esse caso é complicado. Esse homem é um ex-diretor do Banco do Brasil que foi condenado por corrupção. Ele alegou a má condição dos presídios brasileiros para não ser deportado, mas, na verdade...

– Ah, o Pizzolato! A corrupção no Brasil! – exaltou-se o economista. – Vocês tinham que ver o que é a corrupção no Brasil!

Suspirei. As chamas da revolta consumiam a aula inteira. A ucraniana estava prestes a chorar. Olhei para o brasileiro traidor da pátria.

– Não basta a Alemanha? – rosnei, em português.


Ninguém entendeu. Ele, sim.