segunda-feira, 2 de março de 2015


02 de março de 2015 | N° 18089
L. F. VERISSIMO

Spartacus

Há dias, vi na TV a versão restaurada de Spartacus, de Stanley Kubrick, lançado originalmente em 1960. Spartacus não era exatamente um filme “de Stanley Kubrick”, na medida em que Kubrick só assumiu a direção depois que Anthony Mann, o primeiro escolhido, brigou com Kirk Douglas, astro principal e um dos produtores do filme, e pediu o boné. Se Mann, que dirigiu alguns westerns clássicos e um épico inesquecível, El Cid (Charlton Heston, Sophia Loren e a paisagem da Espanha, todos monumentais), faria um filme diferente é matéria para debate acadêmico, ou de mesa de bar.

Kubrick já dirigira Kirk Douglas em Glória Feita de Sangue, mas pode-se imaginar que não tenha se sentido muito confortável como o segundo escolhido para dirigir Spartacus.

O filme tem alguns toques kubrickianos, se você procurar bem, mas Mann parece ter deixado uma marca pessoal mais evidente no produto final. E todas essas especulações são irrelevantes porque, se há um filme na história do cinema em que quem escreveu é mais importante do que quem dirigiu, este é Spartacus.

A origem literária do filme é um romance de Howard Fast, ativista político perseguido pelo macarthismo e um batalhador por causas como a do sindicalismo e dos direitos de trabalhadores e imigrantes – e além disso um bom escritor. A adaptação do romance de Fast para o cinema foi feita por Dalton Trumbo, um dos roteiristas de Hollywood que durante muito tempo foram obrigados a assinar seus trabalhos com pseudônimos, pois estavam na lista negra do macarthismo.

Trumbo dá uma lição, no roteiro de Spartacus, de como ser político sem ser panfletário ou aborrecido. A sentimentalização do escravo rebelde segundo Trumbo às vezes resvala no xarope, mas o próprio Douglas se encarrega de manter sua nobreza de espírito dentro de limites palatáveis.

E para representar a luta pelo poder em Roma enquanto os escravos rebeldes enfrentam as centúrias mandadas para subjugá-los – que é o subtexto, como se dizia no meu tempo de mesa de bar, da história – Trumbo conta com dois atores fantásticos, Laurence Olivier e Charles Laughton, Laurence incorporando o aristocrata que defende uma Roma idealizada, sem lugar para a ralé e muito menos para escravos insubmissos, e de preferência sob a sua ditadura, enquanto o gordo e libertário (e simpaticamente corrupto) Laughton representa o povo e os valores da República. Trumbo lhes dá discursos definitivos sobre o que cada um simboliza, na Roma da época e em gerações ainda por vir.


A versão restaurada do filme repõe uma cena cortada do original, considerada sugestiva demais. Crassus (Laurence Olivier) escolhe um escravo bonitinho (Tony Curtis, com sotaque do Brooklyn intacto) para ser seu servo pessoal. Numa cena penumbrosa na beira de uma piscina, Crassus, recém-saído do banho, diz ao servo que às vezes gosta de ostras, às vezes gosta de escargots, o que foi considerado uma confissão cifrada mas clara de bissexualidade. Tony Curtis, sensatamente, dá o fora. Como se vê, uma das coisas que mudariam em gerações ainda por vir, em Hollywood, seria o conceito de sugestivo.