terça-feira, 3 de março de 2015


03 de março de 2015 | N° 18090
 DAVID COIMBRA

Que hora para falar de amor

O maior amor é o amor irrealizado.

Ah, sei bem que nestes tempos conflagrados as pessoas pouco pensam no amor. Imagine: amanhã vai sair a lista dos políticos implicados no petrolão. Uns e outros não dormem mais, em Brasília. Passam as noites rolando na cama, a se perguntar: será que meu nome está na lista? A lista! A lista! O país inteiro quer ver a lista.

Some-se a isso a greve dos caminhoneiros. Há 42 anos, Allende começou a cair com uma greve dos caminhoneiros chilenos. Claro: outros tempos, outro país, outras circunstâncias, mas greve de caminhoneiros abala uma nação abastecida através da malha rodoviária, como o Brasil.

E aí, em meio a tudo isso, venho falar de amor. Pode?

Pode. Falarei.

Como dizia, o amor realizado pode produzir vidas felizes, não a grande arte. A grande arte é resultado de grande angústia. O medíocre rejeitado vai lá e mata a mulher que o desprezou. O gênio se recolhe e escreve O Amor nos Tempos do Cólera.

Os clássicos de Roberto Carlos, ele os escreveu enquanto sofria. Se alguma vez você pensar em mim, não se esqueça de lembrar que eu nunca te esqueci. Um homem que canta isso está sofrendo.

Um dia perguntaram a Dostoiévski do que um escritor precisava para escrever bem. Ele respondeu:

– Sofrer, sofrer e sofrer.

A arte necessita de desejos insatisfeitos. Donde, o papel imprescindível da repressão religiosa. O amor romântico vicejou na Idade Média, quando os anseios da carne conduziam ao fogo do inferno. Verdade que, 3 mil anos atrás, Salomão teceu algumas das mais belas peças de poesia da História no Cântico dos Cânticos, onde ele suspirava: “O amor é forte como a morte...”. Mas era um canto de elegia ao prazer compartilhado. Tinha beleza, não profundidade.

A profundidade vem com a dor. Quando o judaísmo (primeiro) e o cristianismo (depois) se assentaram sobre o pecado original, fundaram preconceitos e neuroses, geraram emprego para milhares de psicanalistas, causaram incomodação a gente que só queria se divertir, mas também inventaram o amor romântico e deram assunto para escritores e compositores.

Por isso a Idade Média foi a idade do amor romântico: porque o prazer era proibido.

Você vai ao Père-Lachaise e vê a devoção dos amantes nas sepulturas de Abelardo e Heloísa e se espanta: o que eles fizeram para merecer a lembrança dos vivos quase mil anos depois de suas mortes? Então você investiga e descobre que Abelardo foi um filósofo poderoso, que Heloísa foi uma mulher de grande cultura. Mas o que ficou não foram seus pensamentos: foi sua dor. Seria uma história comum: o professor 20 anos mais velho se apaixona por sua pupila e a seduz – ou por ela é seduzido, tanto faz. Só que eles viviam na Idade Média, a idade dos mil pecados. Abelardo foi castrado pelo tio de Heloísa e ela acabou internada em um convento. Continuaram se amando e se correspondendo, sem jamais se ver outra vez. E agora jazem juntos pela eternidade. Trágico. E lindo.

Toda essa beleza só foi possível porque havia o interdito moral, o peso da religião, o pecado pulsante. Hoje, nada disso existe mais. Hoje tudo é aceito e permitido. Vivemos num tempo em que as pessoas decerto sofrem menos, mas a arte, a grande arte, essa decerto sofre mais. Ontem mesmo saiu uma pesquisa que diz que os noivos, agora, preferem descansar depois do casamento a se empanzinar de amor na noite de núpcias. Normal, nesses tempos de desejos satisfeitos.


O que fazer, se nossos bardos não sentem mais anseios sobre os quais cantar? Melhor pensar na lista. Que gana de ver logo essa lista!