sábado, 11 de outubro de 2014


12 de outubro de 2014 | N° 17950
CÓDIGO DAVID | David Coimbra

A VERDADE SOBRE O GATO QUE SE FOI

Minha mãe tinha um gato chamado Foguinho. Era um gato temperamental, de pelo amarelo – dizem que os de pelo amarelo são os mais temperamentais. Era em tudo gato, com sua independência blasé e seu leve desprezo por humanos, a não ser quando minha mãe falava com ele. Então, comportava-se como cachorro. Atendia quando ela assobiava e prestava atenção ao que ela dizia, como se entendesse cada palavra e, na verdade, acho que entendia mesmo.

Foguinho era o que a minha mãe designava como ruano, estava sempre fora de casa, fazendo festa. Saía, desaparecia dois dias e voltava todo lanhado, mas feliz com as aventuras felinas. Minha mãe, então, curava-lhe as feridas, alimentava-o com as melhores porções do mais caro atum até que recuperasse o peso, e banhava-o com xampu, e escovava-lhe o pelo com doçura. Quando Foguinho se sentia no auge da força física e da disposição, a noite chamava-o mais uma vez, e ele sempre atendia a esse chamado. Era um Túlio Piva, com estrelas na alma e a lua dentro do seu peito.

Minha mãe incomodava-se com essa vida desregrada de Foguinho. Um dia, ao queixar-se para o veterinário, ele sugeriu:

– Que tal castrá-lo?

Minha mãe passou a considerar essa alternativa horrenda. Fui contra. Protestei com veemência. Até escrevi uma crônica a respeito. Os protetores dos animais me censuraram. Argumentaram que a castração era boa para o gato nem me lembro mais por que motivo. Não me convenceram. Boa para o gato??? Que raio de protetor é esse que quer simplesmente capar o protegido??? Que o Senhor Todo-Poderoso me livre de protetores desse jaez.

O caso das gônadas do Foguinho ganhou alguma celebridade no Estado, graças ao que ele conseguiu manter sua integridade física (e sua dignidade), tanto que continuou com a vida noctívaga. Até que, um dia, ele saiu e não voltou mais. Minha mãe ficou consternada, passou semanas sem dormir, chorou por causa do sumiço do Foguinho, procurou-o por todo o bairro. Em vão. Foguinho sumiu, e ninguém soube notícias dele.

Até agora.

Quantos anos se passaram? Sete? Oito? Muitos. E, então, recebi um e-mail misterioso com o seguinte título: “Um felino chamado Foguinho – recomenda-se discrição”.

O texto, o terrível texto:

“Meu pai é morador da Coorigha e ex-vizinho de sua genitora. Ele me disse que um gato de sua mãe, chamado Foguinho, havia desaparecido há muito tempo, fato que a deixou muito triste. Ele a ouvia chamar, por vários dias, pelo Foguinho: ‘Foguinho, Foguinho, Foguinho...’ Nada...

Foram feitas investigações por todo o condomínio e jardins adjacentes. Colocaram fotos em postes e em uma loja de animais da Rua Andaraí. Procuraram pelo valão que vai até o ‘Campo dos Americanos’. Nem um pelo, nem uma pegada... nada. O gato não apareceu mais.

Mas, passados esses anos, posso lhe revelar uma pista do que pode ter acontecido com o bichano. Quem contou foi um morador de rua. Ele não quis revelar o nome, pois tem medo de ser chamado pela tal comissão da verdade, que ele nem sabe bem do que se trata. Vamos chamar nosso informante de Eusébio.

O Eusébio tomava uma canja no albergue do Navegantes, servida pelo Vitor, meu concunhado. Por sinal, era A canja. Uma canja bem gorda: batata, arroz agulhinha, temperinho verde, um pouquinho de clara de ovo e uma sambiquira de galinha. O cacetinho era a entrada.

O Eusébio pegou esse pão, molhou bem na sopa e não parou de falar. Ele tinha um ponto de observação ao lado da Loja do Brasinha, do outro lado da avenida. Bem. O Foguinho fazia incursões secretas nos jardins da Formac. Ele comia escondido ovinhos dos ninhos dos quero-queros. Ele era viciado em ovinhos de quero-quero. Comia com casca e tudo.

Quando tinha filhotinhos ainda sem penas, com aqueles olhões, ele comia também. Parece que repugnava um pouco, ele arrepiava o pelo e se sacudia, o que era visível até de longe, mas ainda assim comia. Sua dieta diária era um ovinho ou dois. Não deixava o ninho completamente vazio. Era esperto e dissimulado. Depois passava pelo buraco da cerca e voltava vagarosamente para o apartamento, como se nada tivesse acontecido. Acredito que nem jantava direito.

Uma tarde, ele foi ao ninho. Eusébio viu um vigilante sacar o 32 e atirar. Um tiro seco e fraco, um traque (porque a pólvora poderia ser velha), mas suficiente para tirar a vida do Foguinho. Ele atirou de longe, escondido atrás da guarita. O vigia tinha a mesma visão privilegiada de Lee Oswald. Foguinho deu um salto, uma espécie de duplo twist carpado, e caiu. Não levantou e nem se mexeu mais. Expirou na grama mesmo. O vigilante tapou com galhos e folhas seu corpinho inerte... para depois desová-lo em lugar incerto.

Foi o fim do foguinho.

Testemunha ocular do evento, o Eusébio, que não tem nada de trouxa, mudou de ponto. Ele perambula agora perto da índia Obirici, ao lado do prédio da Samdu. Não quer mais falar no assunto.

Sds - Humberto”


Vejam agora vocês, a crueldade do bicho homem. Um assassinato. Por quê? Por proteção às famílias de quero-quero? Nada! Só por diversão. Mas será que posso acreditar no Humberto? São tantos detalhes... Não terá sido ele o matador de Foguinho, que, depois de tanto tempo, dá vazão à sua consciência dolorida e culpada? Posso confiar nele? Dona Diva, minha mãe, ainda não se recuperou do trauma do gato perdido, e só a verdade, toda a verdade, poderá oferecer algum consolo ao seu coração.