12 de outubro de 2014 |
N° 17950
CÓDIGO DAVID | David
Coimbra
A VERDADE SOBRE O GATO QUE SE
FOI
Minha mãe tinha um gato chamado
Foguinho. Era um gato temperamental, de pelo amarelo – dizem que os de pelo
amarelo são os mais temperamentais. Era em tudo gato, com sua independência
blasé e seu leve desprezo por humanos, a não ser quando minha mãe falava com
ele. Então, comportava-se como cachorro. Atendia quando ela assobiava e
prestava atenção ao que ela dizia, como se entendesse cada palavra e, na
verdade, acho que entendia mesmo.
Foguinho era o que a minha mãe
designava como ruano, estava sempre fora de casa, fazendo festa. Saía,
desaparecia dois dias e voltava todo lanhado, mas feliz com as aventuras
felinas. Minha mãe, então, curava-lhe as feridas, alimentava-o com as melhores
porções do mais caro atum até que recuperasse o peso, e banhava-o com xampu, e
escovava-lhe o pelo com doçura. Quando Foguinho se sentia no auge da força
física e da disposição, a noite chamava-o mais uma vez, e ele sempre atendia a
esse chamado. Era um Túlio Piva, com estrelas na alma e a lua dentro do seu
peito.
Minha mãe incomodava-se com essa
vida desregrada de Foguinho. Um dia, ao queixar-se para o veterinário, ele
sugeriu:
– Que tal castrá-lo?
Minha mãe passou a considerar
essa alternativa horrenda. Fui contra. Protestei com veemência. Até escrevi uma
crônica a respeito. Os protetores dos animais me censuraram. Argumentaram que a
castração era boa para o gato nem me lembro mais por que motivo. Não me
convenceram. Boa para o gato??? Que raio de protetor é esse que quer
simplesmente capar o protegido??? Que o Senhor Todo-Poderoso me livre de
protetores desse jaez.
O caso das gônadas do Foguinho ganhou
alguma celebridade no Estado, graças ao que ele conseguiu manter sua
integridade física (e sua dignidade), tanto que continuou com a vida noctívaga.
Até que, um dia, ele saiu e não voltou mais. Minha mãe ficou consternada,
passou semanas sem dormir, chorou por causa do sumiço do Foguinho, procurou-o
por todo o bairro. Em vão. Foguinho sumiu, e ninguém soube notícias dele.
Até agora.
Quantos anos se passaram? Sete?
Oito? Muitos. E, então, recebi um e-mail misterioso com o seguinte título: “Um
felino chamado Foguinho – recomenda-se discrição”.
O texto, o terrível texto:
“Meu pai é morador da Coorigha e
ex-vizinho de sua genitora. Ele me disse que um gato de sua mãe, chamado
Foguinho, havia desaparecido há muito tempo, fato que a deixou muito triste.
Ele a ouvia chamar, por vários dias, pelo Foguinho: ‘Foguinho, Foguinho,
Foguinho...’ Nada...
Foram feitas investigações por
todo o condomínio e jardins adjacentes. Colocaram fotos em postes e em uma loja
de animais da Rua Andaraí. Procuraram pelo valão que vai até o ‘Campo dos
Americanos’. Nem um pelo, nem uma pegada... nada. O gato não apareceu mais.
Mas, passados esses anos, posso
lhe revelar uma pista do que pode ter acontecido com o bichano. Quem contou foi
um morador de rua. Ele não quis revelar o nome, pois tem medo de ser chamado
pela tal comissão da verdade, que ele nem sabe bem do que se trata. Vamos
chamar nosso informante de Eusébio.
O Eusébio tomava uma canja no
albergue do Navegantes, servida pelo Vitor, meu concunhado. Por sinal, era A
canja. Uma canja bem gorda: batata, arroz agulhinha, temperinho verde, um
pouquinho de clara de ovo e uma sambiquira de galinha. O cacetinho era a
entrada.
O Eusébio pegou esse pão, molhou
bem na sopa e não parou de falar. Ele tinha um ponto de observação ao lado da
Loja do Brasinha, do outro lado da avenida. Bem. O Foguinho fazia incursões
secretas nos jardins da Formac. Ele comia escondido ovinhos dos ninhos dos
quero-queros. Ele era viciado em ovinhos de quero-quero. Comia com casca e
tudo.
Quando tinha filhotinhos ainda
sem penas, com aqueles olhões, ele comia também. Parece que repugnava um pouco,
ele arrepiava o pelo e se sacudia, o que era visível até de longe, mas ainda
assim comia. Sua dieta diária era um ovinho ou dois. Não deixava o ninho
completamente vazio. Era esperto e dissimulado. Depois passava pelo buraco da
cerca e voltava vagarosamente para o apartamento, como se nada tivesse
acontecido. Acredito que nem jantava direito.
Uma tarde, ele foi ao ninho.
Eusébio viu um vigilante sacar o 32 e atirar. Um tiro seco e fraco, um traque
(porque a pólvora poderia ser velha), mas suficiente para tirar a vida do
Foguinho. Ele atirou de longe, escondido atrás da guarita. O vigia tinha a
mesma visão privilegiada de Lee Oswald. Foguinho deu um salto, uma espécie de
duplo twist carpado, e caiu. Não levantou e nem se mexeu mais. Expirou na grama
mesmo. O vigilante tapou com galhos e folhas seu corpinho inerte... para depois
desová-lo em lugar incerto.
Foi o fim do foguinho.
Testemunha ocular do evento, o
Eusébio, que não tem nada de trouxa, mudou de ponto. Ele perambula agora perto
da índia Obirici, ao lado do prédio da Samdu. Não quer mais falar no assunto.
Sds - Humberto”
Vejam agora vocês, a crueldade do
bicho homem. Um assassinato. Por quê? Por proteção às famílias de quero-quero?
Nada! Só por diversão. Mas será que posso acreditar no Humberto? São tantos
detalhes... Não terá sido ele o matador de Foguinho, que, depois de tanto
tempo, dá vazão à sua consciência dolorida e culpada? Posso confiar nele? Dona
Diva, minha mãe, ainda não se recuperou do trauma do gato perdido, e só a
verdade, toda a verdade, poderá oferecer algum consolo ao seu coração.