09
de novembro de 2014 | N° 17978
DIREITO
- por Flavia Penido
JUIZ não é DEUS
Caso
da agente de trânsito condenada a indenizar um magistrado provoca indignação
contra o vício bem brasileiro do “sabe com quem está falando?”
Advogada
formada pelo Largo São Francisco-USP, atua na área de direito digital e
marketing. Organizadora da campanha para arrecadar os recursos para o pagamento
da multa imposta à agente de trânsito Luciana Tamburini.
É
uma piada conhecida no mundo jurídico: “Juiz acha que é Deus, Desembargador tem
certeza e Ministro fala ‘Deus? Pfffff’”. Obviamente é uma generalização
grosseira; tenho imensa admiração por vários magistrados e há votos e decisões
de ministros do Supremo Tribunal que aplaudo de pé. No entanto, como em toda
classe, há os juízes cônscios de seu dever e papel na sociedade, e há aqueles
que acreditam que a toga lhes confere poderes especiais, ou que os coloca em
posição superior aos outros cidadãos.
O
fato de alguns cidadãos acharem-se superiores a outros não é algo restrito à
classe dos juízes: nós vemos tal sentimento em toda sociedade e é um clássico
de nosso país a famosa frase “você sabe com quem está falando?”, que denota o
sentimento – e, por que não dizer, a certeza – de que pertencer a determinada
classe social ou profissional torna a pessoa acima da lei e digna de
privilégios desconhecidos dos “simples cidadãos”.
Tal
sentimento é tão tacanho e antiquado que sequer podemos dizer que estamos
diante de infração à Constituição Brasileira; o princípio da igualdade tal como
o conhecemos hoje, base do Estado Moderno, remonta à Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, logo após a Queda da Bastilha na
França, estopim da Revolução Francesa. Pelo visto, a sociedade brasileira está
alguns anos atrasada...
Esta
semana, a sociedade revoltou-se, de forma pacífica, contra mais um dentre
tantos “você sabe com quem está falando?” que enfrentamos em nosso dia a dia:
um juiz de Direito (pessoa que deveria, ao menos em tese, ser conhecedor da
legislação brasileira vigente) obteve uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro na qual uma agente de trânsito seria obrigada a pagar R$ 5 mil de
multa em razão de tê-lo “ofendido”. A ofensa? Ter dito, ora vejam a ignomínia,
que “juiz não é deus”.
Quando
soube do fato através dos jornais, fiquei indignada. O caso feria o senso
comum. Até sabemos que por vezes as autoridades podem ser arbitrárias para
impor a lei, mas não parecia ser o caso, lendo a narrativa: a verdade é que um
juiz de Direito, parado em uma blitz sem sua carteira de habilitação e com o
carro sem placa, de imediato identifica-se como “autoridade”, em uma clara
tentativa de intimidar, em razão de seu cargo, funcionários em trabalho. É
importante deixar um ponto bem claro: em uma sociedade na qual todos são
iguais, pouco importaria a profissão do cidadão parado; ele a proclamou
justamente porque vivemos em um país onde essa prática é comum, assim como
também é comum pessoas acharem-se acima da lei e detentoras de privilégios.
O
exame dos autos comprova que, não contente em se identificar como juiz, este:
a) não portava sua CNH e teve que solicitar a sua esposa para trazê-la; b)
alegou desconhecer a lei de que não poderia andar com o carro sem placa por
mais de 15 dias (eis aqui uma situação deveras curiosa, para dizer o mínimo);
c) pretendia, acreditando merecer um tratamento diferenciado, que seu carro
fosse levado a uma delegacia e não ao pátio de veículos apreendidos, como determina
a legislação. Quanto à famosa frase “você é juiz mas não é deus”, esta teria
surgido ante à exigência do juiz de levar seu carro a uma delegacia e não foi
dirigida ao juiz, mas sim a um policial militar (segundo os autos do processo).
É
kafkaniana a situação de uma funcionária presa por desacato simplesmente por
não ter cedido às exigências de tratamento diferenciado. É absurdo o fato de
uma funcionária ter contra si protocolada uma representação – na qual foi
inocentada, diga-se – apenas por cumprir sua função. E mais absurdo ainda é
receber uma decisão judicial afirmando que não só ela não foi ofendida, como
teria ofendido o juiz de Direito.
Admiro
a coragem da agente Luciana Tamburini por ter proposto ação pedindo
indenização. Sabemos que não é fácil enfrentar autoridades, ainda mais
autoridades que se julgam divinas ou dignas de tratamento especial. E,
justamente por admirar-lhe a coragem, imagino a frustração e o sentimento de
injustiça que tomaram conta dela ao saber do resultado das decisões.
Não
cabe aqui criticar as decisões ou especificar as razões técnicas pelas quais
elas mereceriam reparo; é outra frase corrente no meio jurídico que “decisão de
juiz deve ser cumprida”. Mas podemos cumprir protestando.
Esta
foi a ideia da vaquinha: o processo ainda não transitou em julgado (isto é, não
houve um fim definitivo) mas, por várias razões, é difícil que seja revisto; e
além da multa a ser paga, há aquele sentimento de injustiça que todos que
tiveram conhecimento do caso sentiram. E todos sentiram porque, em maior ou
menor grau, todos já estiveram no lugar de Luciana; todos já ouviram, ao menos
uma vez na vida, o famoso e arrogante “você sabe com quem está falando?” e
sentiram-se injustiçados ao ouvi-lo.
Talvez
não seja possível alterar a decisão proferida pelos tribunais; mas é possível
que a sociedade diga com todas as letras que está atenta e farta de pessoas que
se julgam acima de outras; é possível que a sociedade diga que está mudando e
se apropriando de seus direitos, e que nessa mudança, está dizendo um grande,
enorme e sonoro não à prática da carteirada. A Luciana, meus agradecimentos.
Não
acho, e quero deixar isso claro, que o Poder Judiciário deva se curvar à
pressão da sociedade ao examinar e julgar um caso específico; no entanto, é importante
que o Poder Judiciário também saiba que a sociedade está atenta às decisões
proferidas e que em alguns casos, não é necessário ter conhecimento jurídico
para se saber que estamos diante de uma injustiça. É importante que tenhamos
magistrados conscientes do papel que devem ter na sociedade, e este papel não é
somente analisar conflitos e fazer cumprir a lei, mas não praticar no dia a dia
atos que violem princípios fundamentais básicos.
E ao
Tribunal que julgou o caso em 2ª instância, deixo a mensagem do grande jurista
Piero Calamandrei, em Eles, os Juízes, Vistos por Nós, os Advogados (editora
Pillares, 2013): “Justiça não quer dizer insensibilidade, que o juiz, para ser
justo, nem por isso deve ser impiedoso. Justiça quer dizer compreensão, mas o
caminho mais direto para compreender os homens é aproximar-se deles com o
sentimento”.