09
de novembro de 2014 | N° 17978
ENTREVISTA:
DAVID HARVEY
“Está emergindo um novo modo de pensar
o futuro”
Desde
que seu livro A Condição Pós-moderna foi publicado, em 1989, o britânico David
Harvey tornou-se referência obrigatória no debate mundial sobre o fim da
modernidade. Renomada autoridade acadêmica em sua área de interesse, a geografia,
Harvey utilizava a arquitetura e o planejamento urbano, arenas que serviram de
campo de provas para o chamado pós-modernismo nos anos 1960 e 1970, como pontos
de partida para uma crítica ampla e erudita do capitalismo. Ele voltará ao tema
num ciclo de conferências em Brasília, Recife, Fortaleza, Curitiba e São Paulo
entre os dias 14 e 19. Durante os eventos, promovidos pela Boitempo Editorial,
será lançada a edição brasileira de sua obra Para Entender o Capital: Livros II
e III.
Na
quarta-feira, por telefone, de Santiago do Chile, Harvey concedeu uma breve
entrevista a Zero Hora. A seguir, os principais trechos:
Uma
tradição no pensamento ocidental associa as cidades e a vida urbana com o
esclarecimento e o desenvolvimento, em oposição ao campo. Marx e Engels, que
são parte dessa tradição, escreveram no Manifesto Comunista que a burguesia
“submeteu o campo ao domínio das cidades” e zombam da “idiotice da vida rural”.
Se é correto criticar o processo de urbanização, de que ponto se deve começar?
Quando
Marx e Engels escreviam, menos de 10% da população mundial vivia em áreas
urbanas. Hoje, obviamente, são mais de 50%, e as distinções nítidas que
existiam entre cidade e campo, entre a vida urbana e a rural, não existem mais.
Sob diversos aspectos, as pessoas assistem aos mesmos programas de TV, consomem
os mesmos produtos. As áreas rurais apenas têm menor densidade populacional e
estruturas de emprego diferentes das áreas urbanas.
Como
a esquerda pode questionar a urbanização sem se associar a distintas formas de
tradicionalismo, nativismo e idealização de formações sociais pré-capitalistas?
Acho
que deveríamos nos preocupar com as condições materiais da vida cotidiana em
áreas urbanas. Para mim, esse é um dos grandes problemas políticos que existem
hoje, e a esquerda, historicamente, não tem confrontado isso. Ela é geralmente
obcecada com o trabalho nas fábricas e o que deve custar de acordo com
critérios de produção. Penso que a política da vida cotidiana nas zonas urbanas
deveria ser o foco principal de nossas preocupações e que isso tem sido
registrado sob a forma de protestos políticos que estão emergindo, como os que
ocorreram no Brasil no ano passado.
O
senhor vê relações entre as manifestações de rua no Brasil e as que têm
ocorrido em outros países, com maiores ou menores consequências políticas?
Esses movimentos são parte de um mesmo processo social?
Devemos
reconhecer que está emergindo um novo modo de fazer política e um novo modo de
pensar o futuro. Imaginários do passado, como socialismo, comunismo e utopismo,
estão sendo submergidos por uma nova sensibilidade emergente, embora também por
novos padrões de conflito em cenários urbanos. O que ocorreu no Brasil no ano
passado é um bom exemplo dos primórdios de um novo modo de fazer política, de uma
nova via de desenvolvimento humano. À medida que essa via pode levar à direita,
à esquerda ou a quaisquer outras direções, penso que devemos prestar bastante
atenção ao fato de que esses protestos estão surgindo a partir das condições da
vida cotidiana em cenários urbanos. Portanto, é isso que devemos observar para
compreender de que trata essa nova política.
No
ano passado, foi publicado no Brasil um artigo seu, A Liberdade da Cidade. No
texto, o senhor afirma que há um problema de direitos subjacente à crise
urbana. Nesse texto, o senhor cita o filósofo francês Henri Lefebvre em
referência a um “direito à cidade” ou “direito à vida urbana”. O que é,
exatamente, o “direito à cidade”?
O
direito à cidade, para mim, é o direito de remodelar a vida urbana de acordo
com as necessidades e desejos da população. Vemos cada vez mais zonas urbanas
sendo conformadas ao capital pelos grandes empreendedores imobiliários e
financiadores, e eles, claro, adoram construir estruturas espetaculares e
acomodações caras para os mais ricos. Não se preocupam com moradias decentes a
preços acessíveis para a massa da população ou com a disponibilidade de
serviços cotidianos como água, comida e serviço social. Pessoas começarão a
exigir moradia e áreas de convivência decentes, que são a meta de políticas
públicas mundo afora para a qual recursos de desenvolvimento urbano são
direcionados.
Além
de diferenças sociais e econômicas, cidades são caldeirões de diferenças
culturais, como o recente debate sobre o uso de burkas na França deixa claro. É
possível, do seu ponto de vista, resolver essas diferenças por meio de algum
tipo de síntese ou, por outra via, mediante algum tipo de solução balcânica,
com uma grande quantidade de pequenas cidades vivendo lado a lado?
Acho
que um dos aspectos empolgantes da vida urbana são os confrontos entre
diferenças no interior das populações. Há uma tendência a pensar em como tornar
cidades pacíficas e harmoniosas. Não concordo com isso. Penso que cidades
sempre foram centros de confronto entre modos de viver, entre diferenças
culturais, e vejo isso como algo sadio para uma cidade, desde que os conflitos
não resultem em desequilíbrio ou em discriminação excessiva, ou no poder sendo
impingido por um grupo sobre outros dentro da cidade. Penso que o confronto
entre ideias e experiências é o que torna a vida urbana tão gratificante de se
presenciar.
ENTREVISTA:
DAVID HARVEY POR LUIZ ANTÔNIO ARAUJO | GEÓGRAFO BRITÂNICO
LUIZ.ARAUJO@ZEROHORA.COM.BR