sábado, 10 de janeiro de 2015


11 de janeiro de 2015 | N° 18039
MOISÉS MENDES

Maomé

Entre na Redação de um jornal brasileiro e pergunte de mesa em mesa se alguém faria humor com Maomé, com o Islã ou com extremistas muçulmanos. Depois desafie alguns, dependendo das respostas, a elaborar uma charge sobre Maomé, mesmo que não saibam desenhar direito.

Se você não encontrar ninguém que cometa o atrevimento, isso pode significar muita coisa e pode também não significar quase nada.

Pode querer dizer somente que a maioria não zombaria de Maomé – porque não há motivo para isso, por respeito às convicções religiosas dos outros, porque este não é um tema que esteja no foco de um jornalista brasileiro, ou por medo.

Mas alguém dirá que faz qualquer piada, em nome da liberdade de expressão. E outro pode dizer que faz humor com Deus e com o Papa argentino, mas não com Maomé.

Nos sentimos à vontade para satirizar deuses, santos e diabos que estejam sempre a nossa volta, mas acusamos um certo desconforto ao brincar com os profetas dos outros.

E por que os europeus se divertem com a imagem de um Maomé que teria sido corrompido pelos próprios adoradores? Os franceses debocham de quase tudo e a imigração de muçulmanos mudou a vida deles.

Mas a racionalidade ocidental, em que até as nossas transcendências têm de expressar alguma supremacia, não estaria reduzindo Maomé, sistematicamente, a um inspirador de ações do mal? Reproduzimos o que condenamos – as distorções de percepção dos extremistas?

É o atrevimento de artistas que radicalizam a liberdade, sem concessões a medos e a eventuais represálias. Têm até o “direito”, como disse um deles, de perder a vida para não ficar de joelhos e perder a piada.

Os chargistas da Charlie Hebdo deveriam então ter evitado a ira dos assassinos? Eles foram adiante e disseram não. Mas sabiam que, contra os lápis que usavam, as armas de seus algozes poderiam ser fuzis Kalashnikov.

Em outubro, quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu censurar a propaganda partidária na TV, eu escrevi contra. O duvidoso moralismo do TSE não tinha o direito de tutelar o eleitor e privá-lo de ver e ouvir baixarias.

Esperei que vozes fortes pela liberdade de expressão se manifestassem. Esperei. Tive minguada parceria. E mesmo assim esperei, esperei e continuo esperando.

Digo isso aos que estiverem deduzindo, por leituras tortas, que defendo restrições a críticos de profetas ou aceito a barbárie como reação legítima. Não! Repito, com três pontos de exclamação: não!!!

O que desejo é que o cinismo de uma certa direita (que agora é Charlie...) não enuvie o entendimento do que os chargistas faziam. Entre as milhares de charges em homenagem aos mortos, um desenho mostra o cartunista degolado pondo a língua para o carrasco pelo toco do pescoço.

É cruel? É o tipo de humor que eles certamente gostariam de ver em seus velórios. Sim, desta vez você pode chorar e rir com os mortos.

Para encerrar, a quem interessar possa, não tenho religião. E não acho graça nas charges que estabelecem alguma relação entre o terrorismo e Maomé.