ARTIGOS - FLÁVIO
TAVARES*
PRÓTESE MENTAL
O fanatismo inunda a História
como um aluvião que tudo destrói. Quando a raiz é religiosa, a cegueira do
horror se multiplica e o assassinato vira virtude. Ao longo dos séculos,
matou-se em nome dos deuses. No Gênesis 22, conta a Bíblia que Abrahão se
dispôs a matar Isaac, seu filho único, em honra à Divindade.
Foi preciso que o próprio Deus lhe
segurasse o punhal e explicasse que só queria provar sua fé e obediência cega.
À exceção do budismo e suas variantes, todos os credos religiosos (e parte dos
credos políticos) mataram em nome de seus deuses. Depois, se arrependeram e se
penitenciaram, mas o crime já fora cometido.
A chacina de agora em Paris não
foi só um ato contra a liberdade de expressão, ou contra a cultura e a arte da
sátira expressada nas caricaturas do Charlie Hebdo. Reduzi-lo a isto é
desconhecer os assassinos, pensar que pensam ou raciocinam, quando – de fato –
são máquinas de ódio geradas pela deformação fanática do islamismo.
Chama-me a atenção, porém, a
imperturbável brandura com que tratamos os tais “radicais islâmicos”. Matam “em
nome de Alá” cada vez mais, como se os crimes superassem nossa capacidade de
evitar ou punir o terror que praticam até na França, país que os acolheu e os
livrou da fome e da opressão do mundo muçulmano.
Mais do que a liberdade de
expressão, está em jogo um estilo de vida e de comportamento. Ou o boçal
“pensamento único” irá se impor pela força à convivência e ao diálogo?
No Brasil, em matanças de outro
tipo e com outros deuses, também está em jogo um estilo de vida. Além do
assalto de rua, a mentira mata a cada dia. Nos mentem num bombardeio diário,
sempre para roubar. E, vindo de cima, o roubo mata os valores morais, nos
assassina sem tirar a vida.
O escândalo das próteses
ortopédicas é o elo novo do grande embuste que assola o país e transforma em
crime o que devia ser honesta dedicação à saúde humana. Médicos, advogados e
laboratórios unem-se para enganar enfermos e fazer da Justiça uma grotesca
fábrica de “liminares” e, assim, roubar do Estado – ou de cada um de nós, pois
o povo é o Estado. Imitam governantes, políticos e empresários que, com
idêntico despudor, mentem para assaltar a administração pública.
A roubalheira na Petrobras, por
exemplo, foi comandada por três partidos (PMDB, PP e PT) que nada teriam em
comum. Em teoria, o PT é de esquerda; o PP é de direita e o PMDB é amplo e
aceita tudo, mas se juntam para saborear o apetitoso butim clandestino. Os
partidos menores ficam com as sobras do banquete.
A mentira domina tudo, como vírus
que se propaga e contamina a todos. Quem irá salvar-se?
A fraude das próteses
ortopédicas, por exemplo, colide com o espírito da medicina em si. Os médicos
lidam diretamente com a vida, não devem mentir ou enganar. No máximo, dirão uma
“piedosa fantasia” a um doente terminal. Mas somos o único país do mundo em que
a maioria dos nascimentos (uns 60%) ocorre por cesárea, como se o ventre das
brasileiras exigisse parto antinatural, diferente das mulheres do planeta. Ou é
só um ardil para cobrar mais, mesmo submetendo a mulher ao risco inerente de
uma cirurgia?
Onde começa o emaranhado
comportamental? Os políticos levaram a mentira à sociedade, ou a sociedade os
inoculou com a mentira? Repete-se a dúvida insolúvel da biologia e da
filosofia: quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?
O pior é que esquecemos que nos
roubam e mentem. Em alguns meses, a maior roubalheira ao povo do Rio Grande do
Sul, o escândalo da CEEE no governo Pedro Simon, prescreverá na Justiça.
Silencia-se sobre a fraude no Detran, envolvendo reitor e professor da Universidade
de Santa Maria e três deputados. Idem sobre o roubo da merenda escolar, que se
alastrou de Canoas a outros cantos. A lista é longa.
E se colocássemos uma prótese
mental nessa gente dedicada ao crime?
*Jornalista e
escritor