sábado, 10 de janeiro de 2015

ARTIGOS - FLÁVIO TAVARES*

PRÓTESE MENTAL

O fanatismo inunda a História como um aluvião que tudo destrói. Quando a raiz é religiosa, a cegueira do horror se multiplica e o assassinato vira virtude. Ao longo dos séculos, matou-se em nome dos deuses. No Gênesis 22, conta a Bíblia que Abrahão se dispôs a matar Isaac, seu filho único, em honra à Divindade.

Foi preciso que o próprio Deus lhe segurasse o punhal e explicasse que só queria provar sua fé e obediência cega. À exceção do budismo e suas variantes, todos os credos religiosos (e parte dos credos políticos) mataram em nome de seus deuses. Depois, se arrependeram e se penitenciaram, mas o crime já fora cometido.

A chacina de agora em Paris não foi só um ato contra a liberdade de expressão, ou contra a cultura e a arte da sátira expressada nas caricaturas do Charlie Hebdo. Reduzi-lo a isto é desconhecer os assassinos, pensar que pensam ou raciocinam, quando – de fato – são máquinas de ódio geradas pela deformação fanática do islamismo.

Chama-me a atenção, porém, a imperturbável brandura com que tratamos os tais “radicais islâmicos”. Matam “em nome de Alá” cada vez mais, como se os crimes superassem nossa capacidade de evitar ou punir o terror que praticam até na França, país que os acolheu e os livrou da fome e da opressão do mundo muçulmano.

Mais do que a liberdade de expressão, está em jogo um estilo de vida e de comportamento. Ou o boçal “pensamento único” irá se impor pela força à convivência e ao diálogo?

No Brasil, em matanças de outro tipo e com outros deuses, também está em jogo um estilo de vida. Além do assalto de rua, a mentira mata a cada dia. Nos mentem num bombardeio diário, sempre para roubar. E, vindo de cima, o roubo mata os valores morais, nos assassina sem tirar a vida.

O escândalo das próteses ortopédicas é o elo novo do grande embuste que assola o país e transforma em crime o que devia ser honesta dedicação à saúde humana. Médicos, advogados e laboratórios unem-se para enganar enfermos e fazer da Justiça uma grotesca fábrica de “liminares” e, assim, roubar do Estado – ou de cada um de nós, pois o povo é o Estado. Imitam governantes, políticos e empresários que, com idêntico despudor, mentem para assaltar a administração pública.

A roubalheira na Petrobras, por exemplo, foi comandada por três partidos (PMDB, PP e PT) que nada teriam em comum. Em teoria, o PT é de esquerda; o PP é de direita e o PMDB é amplo e aceita tudo, mas se juntam para saborear o apetitoso butim clandestino. Os partidos menores ficam com as sobras do banquete.

A mentira domina tudo, como vírus que se propaga e contamina a todos. Quem irá salvar-se?

A fraude das próteses ortopédicas, por exemplo, colide com o espírito da medicina em si. Os médicos lidam diretamente com a vida, não devem mentir ou enganar. No máximo, dirão uma “piedosa fantasia” a um doente terminal. Mas somos o único país do mundo em que a maioria dos nascimentos (uns 60%) ocorre por cesárea, como se o ventre das brasileiras exigisse parto antinatural, diferente das mulheres do planeta. Ou é só um ardil para cobrar mais, mesmo submetendo a mulher ao risco inerente de uma cirurgia?

Onde começa o emaranhado comportamental? Os políticos levaram a mentira à sociedade, ou a sociedade os inoculou com a mentira? Repete-se a dúvida insolúvel da biologia e da filosofia: quem surgiu primeiro, o ovo ou a galinha?

O pior é que esquecemos que nos roubam e mentem. Em alguns meses, a maior roubalheira ao povo do Rio Grande do Sul, o escândalo da CEEE no governo Pedro Simon, prescreverá na Justiça. Silencia-se sobre a fraude no Detran, envolvendo reitor e professor da Universidade de Santa Maria e três deputados. Idem sobre o roubo da merenda escolar, que se alastrou de Canoas a outros cantos. A lista é longa.

E se colocássemos uma prótese mental nessa gente dedicada ao crime?


*Jornalista e escritor