15
de janeiro de 2015 | N° 18043
L.
F. VERISSIMO
Blasfêmia
Vamos
combinar que não existe nada mais ofensivo do que um tiro na cabeça. Não posso
imaginar uma blasfêmia maior do que espalhar os miolos de alguém com um AK-47.
Porque tem gente dizendo que os cartunistas do Charlie Hebdo foram longe
demais, o que equivale dizer que mereceram o que lhes aconteceu. É o mesmo
raciocínio de quem diz que mulher estuprada geralmente estava pedindo.
“Blasfêmia”
quer dizer uma afronta ao sagrado. Assim, a verdadeira discussão não é sobre o
que as pessoas consideram blasfêmia, mas sobre o que consideram sagrado. A
descrença em qualquer divindade é uma blasfêmia perene – ou, visto de outra
forma, quem não crê em nenhum deus não pode, por definição, ser um blasfemo.
Muitas
vezes, o que se faz em nome de uma crença ou de uma divindade é que é
blasfêmia: uma ofensa a quem acha que sagrados devem ser a vida humana, o
direito de pensar livremente e o direito de descrer. Não se está falando só do
islamismo radical. Já houve tempo em que não acreditar no deus da igreja romana
era razão suficiente para ser queimado vivo. Levava mais tempo do que um tiro de
AK-47.
Mudando
de assunto, mas não muito. A reação do George W. Bush aos ataques ao World
Trade Center foi da catatonia, quando recebeu a notícia, à hiperatividade
impensada que resultou na transformação da base americana de Guantánamo em
campo de concentração para “terroristas” que, na sua maioria, não tinham nada a
ver com o atentado e, mais tarde, na invasão do Iraque para pegar o Saddam, que
também não tinha nada a ver com o 11/9, e as suas armas de destruição em massa,
que não existiam.
Mas
faça-se justiça: num dos seus primeiros pronunciamentos depois dos ataques,
quando já se sabia quem eram os responsáveis, Bush fez questão de alertar
contra perseguições aos muçulmanos no país, que não tinham culpa da ação
radical de uma minoria.
Na
França pós-7/1, com sua imensa população muçulmana, vítima do ressentimento de
boa parte da maioria francesa e da crescente reação a imigrantes em toda a
Europa, vai ser difícil seguir um conselho como o do Bush. A direita inchou do
7/1 para cá, na França. Se sua pregação racista vai prevalecer contra a
tradição libertária da terra dos direitos humanos, é o que se verá nas próximas
eleições. Os AK-47 podem ter matado muito mais do que 17 pessoas.