sexta-feira, 9 de agosto de 2013


09 de agosto de 2013 | N° 17517
DAVID COIMBRA

Aceitação. Paciência. Tolerância.

Encontrei, no fundo de uma gaveta, minha primeira carteira de identidade, de quando tinha 15 anos. Mirei a imagem de mim mesmo começando a vida. Estava muito sério naquela foto. Diziam que a gente não podia sorrir em foto de carteira de identidade. Não pode ainda? Por que será? Fazer carteira de identidade é coisa séria.

Deu-me certa nostalgia ao manusear a carteira. Lembro de que fiquei orgulhoso quando ficou pronta. A primeira pessoa para quem mostrei foi o meu avô. Fui à sapataria dele, ali na Câncio Gomes, passei-lhe a carteira por cima do balcão, ele a examinou e fez um comentário que nunca esqueci:

– Tu estás taludo aqui. Peguei a carteira de volta. Olhei a foto. Taludo? Gostei daquilo. Taludo.

Lembro também que fiquei muitas horas esperando na repartição pública até ser atendido para confeccionar a carteira. Onde seria? Na Delegacia de Polícia? Não sei mais. Só sei que foram muitas horas de espera, eu lá sentado naquele lugar sombrio, e a certa altura pensei: isso é injusto. Por que uma pessoa tem que ficar tanto tempo aqui esperando, sem fazer nada? É um dia perdido! A vida tem que ser mais divertida.

Aquilo, aquela espera, foi me dando uma angústia. Eu podia estar fazendo trezentas outras coisas mais proveitosas do que ficar parado numa repartição, esperando para pintar o polegar com tinta preta. E aquela burocracia era só uma de dezenas que teria de enfrentar, porque ainda teria de tirar carteira de trabalho, fazer CPF, aprender a dirigir, entrar em fila de emprego, fazer exame disso e daquilo... Que revolta, que vontade de quebrar tudo e sair de lá gritando:

– Eu não vou fazer carteira de identidade! Eu não tenho de fazer carteira de identidade! Um ser humano livre não precisa de carteira de identidade! Um ser humano livre tem de fruir a vida! Só isso! Fruir a vida! Fiquem com suas carteiras de identidade, seus papéis, suas exigências mesquinhas! Eu fico com a vida!

E iria embora de lá para nunca mais voltar.

Então, pensei que, para arrumar emprego, como queria, precisava de carteira de identidade, sim. E também para me matricular na faculdade que pretendia cursar e outras coisas mais. Droga, eu tinha de fazer a carteira de identidade.

Tentei me acalmar. Há coisas na vida que a gente tem de fazer, ponto. Não temos controle sobre tudo, não é mesmo? Respirei fundo. Aceitação, pensei. Aceitação. Não adianta me revoltar contra o que está acima das minhas forças. É uma rebeldia inútil. Aceitação. Paciência. Tolerância. São as armas de que um homem tem de dispor para enfrentar a vida inclemente.

Aceitação. Paciência. Tolerância. Quantos dias tive de recitar esse mantra depois daquele episódio? Milhares de dias, talvez todos os dias. Aceitação. Paciência. Tolerância. Foi no que pensei, sentado na cadeira da repartição pública. Foi no que pensei ao encontrar minha velha carteira de identidade que jazia esquecida por tantos anos no fundo de uma gaveta.


Aceitação. Paciência. Tolerância. Tenho de lembrar sempre dessa fórmula que um dia aprendi e que tantas vezes volto a esquecer.