sexta-feira, 17 de março de 2017



17 de março de 2017 | N° 18795 
CLAUDIA LAITANO

Raiva


Numa época já definida como “a era da raiva” (o ensaísta indiano Pankaj Mishra acaba de lançar nos EUA o livro Age of Anger, tentando analisar as origens históricas da gastura em escala global que nos atinge em 2017), parece cada vez mais essencial desenvolver a habilidade sobre-humana de esfriar a cabeça. Nos últimos tempos, a cada comentário azedo que eu leio sobre os temas mais banais, penso comigo: menos, menos, menos. 

O mundo claramente já está com as reservas de ressentimento abarrotadas por causas mais graves para que a gente contribua para aumentar ainda mais a fumaça de mau humor que polui o ar que todos respiramos com bobagens. Se a ideia é apenas botar a raiva para fora, há formas mais lúdicas e menos tóxicas.

Dito isso, peço licença para analisar aqui, em público, por que as imagens do goleiro Bruno e do ator Guilherme de Pádua publicadas nos últimos dias – o primeiro dando autógrafos para crianças, o segundo sorrindo na cerimônia do seu terceiro casamento – me dão tanta raiva. Olho para essa raiva, constrangida, e torço para que ela não seja da mesma natureza daqueles sentimentos que levam os que não acreditam na Justiça a atirararem a primeira pedra à menor convocação para o linchamento. 

Eu acredito na Justiça, eu acredito em segundas chances, eu acredito na redenção, porque é exatamente isso, a nossa “perfectibilidade”, a nossa capacidade para remendarmos nosso eu falho do passado, o que nos torna humanos.

Ainda assim, não consigo ver o goleiro Bruno distribuindo autógrafos ou Guilherme de Pádua sorrindo para as câmeras sem pensar que há algo de muito indecente nessa exibição pública de imodéstia, algo que agride o senso de justiça dos leigos (seis ou sete anos não parecem suficientes para crimes tão graves) e ofende a memória das vítimas. Penso nas mães de Eliza Samúdio e Daniella Perez, no que elas sentem quando veem os homens que tiraram as vidas de suas filhas sorrindo para as câmeras depois de tão pouco tempo na cadeia – e no que esse tipo de crime pode ter de contagioso.

Em um país com um histórico de impunidade nos crimes contra mulheres, de tantas vítimas atraídas para armadilhas de morte por homens em quem elas um dia confiaram, a brevidade das penas de Bruno e Guilherme e sua falta de recato diante da opinião pública soam como um convite para que outros homens, menos famosos, aliviem sua raiva da mesma forma que eles.