sábado, 10 de abril de 2021


10 DE ABRIL DE 2021
J.J. CAMARGO

EU SEI QUEM VOCÊ É

Alerto meus residentes: se não lembrarem o nome do paciente, não entrem no quarto. Poupem-no da humilhação do anonimato

Soltos no mundo como anônimos, somos seres incompletos, ainda que esta incompletude seja festejada por aqueles avessos ao convívio social, contrariando a nossa natureza gregária. Mas esses são poucos, acrescidos talvez daqueles que preferem não serem identificados por conta de uma biografia chamuscada.

Quando circulamos livres, sem culpa na mochila, é sempre prazeroso sermos identificados por completo, ou seja, com nome e antecedentes.

Sendo a identificação a primeira medida do tamanho que temos aos olhos do mundo, toda homenagem deve ter a espontaneidade da nominação instantânea.

Por isso aquela cerimônia de reconhecimento ao velho cabo eleitoral que durante tantos anos tinha sido o fiel escudeiro do político emplumado morreu no nascedouro e ainda deixou uma mágoa que só morrerá com o magoado.

Tudo tinha sido planejado por um chefe de cerimonial famoso pelo detalhismo com que impunha a perfeição absoluta. Ele não imaginava que, enquanto o povo se aglomerava na praça (houve um tempo em que a proximidade humana era festejada, lembram?), o imprevisto lambia os beiços.

Com a bandinha interrompendo os acordes iniciais, o político veterano levantou o braço direito, no clássico pedido de silêncio, limpou a garganta de tantos discursos vazios e, se preparando para mais uma fala de outra lavra, anunciou: "Estamos aqui para reverenciar este amigo fiel, este apoiador incondicional durante décadas de assessoria política e que hoje completa 80 anos. Peço o aplauso ao nosso querido.... o velho ... o incomparável...".

Com um olhar desesperado, passou os olhos pelas folhas soltas no púlpito, onde o escriba contratado para ser emocionante listara todas as conquistas, sem jamais citar o nome do autor das proezas.

Quando todo mundo já tinha percebido que um apagão mental borrara o nome do amigo aludidamente inesquecível, o pedido dissimulado de um estrepitoso "parabéns a você!" não encontrou eco no público, onde os amigos verdadeiros, emudecidos, tomaram as mágoas do desconsiderado e deixaram o homenageando num constrangedor canto à capela.

Os médicos experientes sabem bem que não há relação com paciente que se pretenda sólida e duradoura, que prescinda de uma identificação solene.

Alerto meus residentes: se não lembrarem o nome do paciente, não entrem no quarto. Poupem-no da humilhação do anonimato. No outro extremo, peçam à secretária que relacione as consultas do dia para que os pacientes antigos, previamente identificados, iluminem a sala de espera da mais justa alegria ao serem saudados nominalmente pelo médico que os atendeu tempos atrás. E quanto mais humilde o paciente, maior será esta alegria.

Quem achar que isso é um exagero não tem a menor noção do quanto os pequenos gestos de afeto são inesquecíveis quando estamos fragilizados pelo medo. E não interessa o tamanho que este medo tenha.

J.J. CAMARGO

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