19
de agosto de 2014 | N° 17895
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Cebolão e escapulário
Amo
ganhar presente.
Finjo
que não, mas amo ganhar presente.
Digo
que não precisava, mas amo ganhar presente.
O
presente de minha preferência é o usado, nenhuma novidade ou lançamento.
É receber
algo de precioso do outro. Algo que o outro usava.
É uma
herança em vida. É uma partilha em vida. É desafiar a morte distribuindo a própria
existência.
Pode
ser um anel, um livro, um casaco.
Não
há maior demonstração de amor do que subtrair um objeto de seu cotidiano para
premiar um amigo.
É repassar,
além da lembrança, o nosso estilo.
É repassar,
além da homenagem, a nossa estima.
Diferente
daquele que compra um novo para não emprestar, é dar o que é seu, pois
encontramos quem nos representa, encontramos a nossa extensão, encontramos quem
cuidará de nossa fortuna simbólica como se fosse a gente. É atravessar o
espelho muito mais do que uma porta.
Recebi
de meu pai um cebolão. Um relógio antigo, azul fosco, com pulseira de metal, de
marca Technos. Fui descobrir depois que era do avô, e que a peça foi repassada
de geração a geração.
Tinha
12 anos. Ele tirou de repente da mão esquerda no meio do almoço. Mal repousou
em meu braço magrela: enorme, pesado, brilhante. Mais parecia um relógio de
parede, um cuco do pulso.
Lembro
que fiquei tão feliz que fui jogar futebol naquela tarde com o bambolê das
horas balançando em meu pulso. Talvez tenha confundido com uma braçadeira de
capitão.
Meu
pai, quando me ofereceu o que mais gostava de presente, estava afirmando:
– Tome,
seu tempo é meu tempo. Você me continua. Você me segue.
Ele
não alcançava apenas o relógio, e sim seu tempo. O tempo de suas convicções. O
tempo de suas palavras. O tempo de suas recordações.
Carrego
o relógio paterno com indisfarçável orgulho, assim como o escapulário de minha
mãe.
Ela
colocou em meu pescoço quando me formei em Jornalismo, corrente de oração que
foi da avó e da bisavó. Há o rosto de Cristo num coração em chamas. É um pouco
assustador, como tudo que envolve a fé.
É curioso
concluir que o pai quis me dar seu tempo e a mãe quis me dar seu Deus.
O
primeiro preocupado com meu futuro e a segunda preocupada com a minha salvação.
Até hoje
meu pai sempre diz que pensa em mim e minha mãe sempre diz que reza por mim.
Relógio
e escapulário formam minha família no meu corpo.
Nem
somente casais têm alianças, mas também pais e filhos.