22
de agosto de 2014 | N° 17899
DAVID
COIMBRA
Dilma, Míriam e
Roger
Deu-se
no começo desta semana. Primeiro, li o assustador relato da jornalista Míriam
Leitão sobre como foi torturada num quartel do Exército nos anos 70. Com 19
anos de idade, grávida, ela passou três meses sendo supliciada. Certo dia,
trancaram-na numa sala totalmente escura, na companhia de uma serpente. Míriam
ficou horas de pé, nua, tremendo de horror, sem saber onde rastejava a cobra,
com medo de atraí-la com o movimento.
Poucos
minutos depois de ler essa história cruenta, caiu-me diante dos olhos uma
inacreditável discussão virtual entre o escritor Marcelo Rubens Paiva e o
músico Roger Moreira. Marcelo, além de autor do bom livro Feliz Ano Velho, é
filho do deputado Rubens Paiva, que foi torturado até a morte num dos porões da
repressão, também nos anos 70. A
folhas tantas do bate-boca pela internet, Roger disse que sua família não
sofreu durante a ditadura “porque não fez merda”.
Fiquei
um pouco nauseado com a frase, mas depois ponderei: as redes sociais são mesmo
perigosas, as pessoas discutem como se estivessem em mesa de bar, só que não
estão em mesa de bar, estão lidando com a palavra escrita. Quer dizer: com
documentos. Além do mais, Roger faz oposição ao PT, o que o leva a cometer uma
confusão que cometem muitos outros opositores: eles identificam o PT com tudo o
que é vagamente comunista e libertário, e aí atacam tudo o que é vagamente
comunista e libertário, a fim de atacar o PT.
Uma
bobagem. O PT não é comunista nem libertário. É outra coisa, que não cabe aqui
analisar. Já na questão da luta contra a ditadura, que cabe, nisso o PT não
teve nenhuma participação. O PT foi fundado quando a redemocratização já estava
bem encaminhada. Nem a presidente da República, que, ela sim, pegou em armas
para enfrentar a ditadura, nem ela era do PT. Dilma é petista de última hora,
tendo sido arrancada não faz muito das fileiras brizolistas. A geleca que é o
PMDB, por absurdo que pareça, tem bem mais a ver com a luta contra a ditadura
do que o PT.
Então,
suponho que Roger deva ter se arrependido das tolices que disse. Mas, no passar
das horas, li que grupos de brasileiros pretendiam se manifestar pela volta dos
militares ao poder. Será que se manifestaram? Não é possível... Em todo caso,
talvez sejam como Roger: querem mudança, e não sabem qual.
Confesso
que tudo isso me proporcionou certo desalento com os rumos do Brasil. Até que
assisti à entrevista de Dilma no Jornal Nacional. Já sei de toda a repercussão
que rendeu, acompanhei o debate feroz. Só que nada disso realmente importa. O
que importa é que, naquela noite, em rede nacional de TV, um jornalista
questionou duramente um presidente da República.
A
presidente que, nos anos 70, foi torturada como o foram Míriam Leitão e Rubens
Paiva, essa presidente agora se sentava em frente a um jornalista e ouvia
perguntas incisivas, rascantes e desconfortáveis. E Dilma não se comportou como
se comportariam seus algozes. Não. Dilma pode não ter respondido a algumas
questões até essenciais, mas nunca usou sua autoridade para tentar descompor ou
debochar do entrevistador.
Dilma
foi uma democrata. E ali, naquele momento, a democracia era exercida. Ali,
naquela noite, no Jornal Nacional, a democracia brasileira alcançava sua
plenitude. A imprensa fazia o seu papel de cobrança severa do poder
constituído, e o poder constituído, na pessoa de um presidente da República,
compreendia que o presidente não é senão o primeiro servidor da nação. E dava
satisfações à nação.
A
entrevista do Jornal Nacional foi um bálsamo. Não interessam os impulsos
bolivarianos de setores do governo, não interessam as manifestações obtusas dos
saudosos da ditadura, o Brasil é uma democracia. E aqui, às margens do
Atlântico Norte, a 10 mil quilômetros de distância, me senti feliz por ser
brasileiro.