30
de agosto de 2014 | N° 17907O
PRAZER
DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno
Folias
ortográficas
É MELHOR CONVIVER com a complexa ortografia do que
destruir a nossa apreensão da realidade
Quando
o doutor Simão Bacamarte construiu o seu hospício, conta-nos Machado, “de todas
as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos... Eram furiosos, eram mansos, eram
monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito”. Felizmente
naquela época ainda não se manifestavam essas pobres mentes que de vez em quando
saem do anonimato para anunciar uma solução mágica para nossa ortografia; caso
contrário, tenho certeza de que nosso bom alienista os mandaria internar na
Casa Verde.
Como
certos fenômenos meteorológicos, aparecem e desaparecem ciclicamente. Sentem-se
iluminados por uma inspiração genial e inédita; com aquele olhinho brilhante
que tão bem conhecemos, anunciam uma verdade que ninguém, antes deles, em todo
o planeta – nem os filólogos, nem os linguistas, nem os lexicógrafos do mundo
inteiro – ninguém, repito, havia percebido: para eliminar as dificuldades
inerentes à escrita, basta criar um sistema em que a cada letra corresponda um
só fonema! Puxa, que simples!
Como
não são especialistas no tema, pouco se lhes dá que nenhum país tenha adotado
essa ortografia fonêmica ou que os linguistas reprovem unanimemente essa ideia.
Para eles, nada disso conta; afinal, alguém que viu a luz não deve dar ouvidos
aos que vivem na treva.
O
problema é que esta mesma ignorância que os deixa felizes impede que entendam a
real importância da ortografia. Ela é que deixa visível o DNA das palavras; ao
realçar as semelhanças e diferenças entre elas, agrupa-as em famílias que nosso
cérebro pode reconhecer. A grafia diferente do fonema /s/ em obsceno, obcecado
e obsessão nos informa que se trata de três conceitos distintos; escrever essas
três palavras da mesma forma levaria, em poucas gerações, a um mingau semântico
irreversível. Todas as sociedades civilizadas já fizeram essa conta: é melhor
conviver com a complexidade da ortografia, com todos os problemas e custos que
isso traz, do que destruir a própria essência de nossa apreensão da realidade.
Falo
tudo isso porque uma dessas sumidades se infiltrou na comissão do Senado
encarregada de propor ajustes ao Novo Acordo e anda pregando a mesma
“simplificação” pedestre que era defendida, em 1940, pelo famoso general
Bertoldo Klinger. Trata-se do professor Ernani Pimentel, nome totalmente
desconhecido do mundo acadêmico, autor de apostilas para concurso – “com mais
de 10.000 páginas publicadas”, diz seu saite, que parece substituir a qualidade
pela quantidade.
A
comissão existe para sugerir aperfeiçoamentos ao Acordo assinado pelos países
lusófonos; ele acha pouco, e quer botar tudo abaixo! Alguns jornalistas
apressados caíram no conto do vigário e apresentaram suas ideias como se fossem
oficiais (desmentidas pelo senador responsável). O nome do professor Pasquale,
outro membro da comissão, deve ter entrado aqui como Pilatos no Credo; pelo bom
senso e boa formação que demonstra no que escreve, dificilmente iria embarcar
nessa canoa furadíssima.
Cláudio
Moreno é professor de Português e escreve quinzenalmente aos sábados