24
de agosto de 2014 | N° 17901
FABRÍCIO
CARPINEJAR
O dia seguinte
hoje
Ao
fazer festa em casa, do que mais gosto é a bagunça.
Não
da festa em si, mas daquilo que precisarei arrumar no dia seguinte.
Sou
vidrado pela ideia de reconstrução de um ambiente em algumas horas.
Tudo
repentinamente fora do lugar, sujo, imundo, e há o desafio de reencontrar a
ordem natural das coisas.
É
uma recriação do mundo num final de semana.
O
corredor beira o estado de sítio, o banheiro sofreu com o desespero dos
boêmios, as estantes dos livros estão cheias de bandejinhas de salgados.
Nem
espero o dia seguinte.
Nada
mais íntimo dentro de um casamento do que o silêncio das 6h. Todos já foram
embora, felizes com a balbúrdia, e nós dois decidimos ajeitar o lar enfrentando
o cansaço.
O
previsível era deitar com a roupa do corpo e desmaiar, desprezando os escombros
e a vida virada pelo avesso.
Mas
não, eu e minha mulher adoramos o pós-festa, quando estamos sozinhos.
Reina
uma sensação de paz, de sobrevivência.
A
faxina é partilhar a memória do encontro. Melhor do que roda de violão.
A
faxina é fixar as lembranças antes que sejam corrompidas pela enxaqueca do
meio-dia.
Ela
segura o lixo de 100 litros
e eu vou buscando as garrafas de cerveja espalhadas pelos cantos.
Vamos
conversando sobre as cenas mais engraçadas da festa, o comportamento dos
amigos, as coreografias das músicas ridículas.
Cada
um repassa o que viu e o que conversou. Como anfitriões, tínhamos o trabalho de
nos revezar por diferentes turmas e atender a todos, não deixar ninguém
excluído e isolado. Naquele momento, completamos o quebra-cabeça da noite.
–
Você falou com a Vanessa? E como ela está com o marido?
–
Sim, pareciam alegres. Já passou a tormenta.
De
nosso papo frugal, seguimos com o rodo e a vassoura, um encarando o outro com
ternura.
De
vez em quando, reclamo da dor nos braços. De vez em quando, ela reclama da dor
nos pés. São exclamações naturais do sacrifício que não se estendem por muito
tempo.
Ela
massageia rapidamente meus ombros e diz que providenciará uma massagem mais
tarde. Eu tiro seus sapatos, apertos seus dedos e juro que depois pego um creme
para aliviar o estresse.
A
admiração é feita de pequenas pausas e promessas.
E
seguimos nosso baile mudo, nossa coreografia de espuma e detergente.
Lamentamos
uma mancha que não sairá no sofá ou algumas cicatrizes novas nas paredes. Não
choramos por algo que tenha sido quebrado. Entendemos que a amizade é para ser
usada.
Recolhemos
o exército de copos e cálices, os pratos sujos, e não nos intimidamos com a
quantidade de louça que ocupa a mesa inteira da cozinha.
Dividimos
as tarefas: primeiro os copos, depois os pratos, em seguida os talheres. Assim
não sofremos com a dimensão assustadora do compromisso.
E
continuamos nossa troca de impressões ouvindo os pássaros assobiando ao longe.
Não temos certeza se são os rumores das aves ou se é a claridade cantando
lentamente na janela.
Ela
pergunta se estou com fome. Paramos um pouco nossa arrumação para esquentar
salgados e comer sentados no chão da cozinha, na posição de índios ao redor da
fogueira.
Corre
entre nós uma cumplicidade apaixonada, como se só nossos olhos dançassem.
O
amor não é apenas uma festa, como alguns imaginam. O amor é também dividir o
trabalho de limpar a casa.
Acordamos
com o apartamento brilhando e nos beijamos de olhos fechados, ainda sonhando.