segunda-feira, 25 de agosto de 2014


25 de agosto de 2014 | N° 17902
CELSO LOUREIRO CHAVES

PALAVRA ERRADA

Adjetivos não fazem mal a ninguém. A não ser que seja falando em música. Recebo convite para a estreia de uma orquestra europeia. Programa da pesada. Descrito assim: “as elegíacas Danças Sinfônicas de Rachmaninov”, “o iridescente Pássaro de Fogo de Stravinsky”. Como assim: elegíacas, iridescente?

Essas duas obras, conheço-as razoavelmente bem. Uma (o pássaro) é a primeira peça célebre do compositor, a outra (as danças) é a última obra célebre do outro compositor. Hmmm... iridescente? Lembro um poema de Athos Damasceno Ferreira: “A prata líquida e irisada ondula o espelho liso, de leve... / A água está toda lantejoulada...”. Aí sim! Mas iridescente... em música?

Num comentário que escrevi sobre as Danças Sinfônicas para um programa da Osesp, falo numa batalha que se trava entre vida e morte na música, menciono um compositor mais livre e mais violento do que antes. Mas: elegíaco? Não quero ser exagerado, mas não vejo – e, pior, não ouço – nem arco-íris em Stravinsky, nem elegias em Rachmaninov. Mas é que escrever sobre música é difícil. Complicado não se deixar atropelar pelo primeiro adjetivo que surgir, carimbando o compositor com palavras que não têm nada a ver nem com ele nem com a música ou que, para encurtar a história, não dizem nada.

Houve um tempo em que escrever sobre música no Brasil dava nisso, uma molhaçada geral no texto. Ainda hoje a crítica jornalística de música de concerto sofre desse mal contagioso, mas não incurável. Lanço os olhos numa resenha de concerto de uma orquestra brasileira em turnê nacional. Lá vem o resenhista, que nem me atrevo a chamar de crítico: “Com um som macio, a orquestra abriu a noite...”. Som macio, meu amigo? Mas com mil colcheias, o que é macio em música?


Escrever sobre música não é fácil, seja em inglês (de onde vieram o “iridescente” e o “elegíaco” que, em português, têm exatamente o mesmo sentido), seja mesmo em português. Pensando bem, melhor ir rápido escarafunchar os meus próprios textos, caçando adjetivos desgarrados como o doido que caça borboletas com rede furada.