sábado, 1 de novembro de 2014


01 de novembro de 2014 | N° 17970
CLAUDIA LAITANO

As duas maçãs

Até a quinta-feira passada, Tim Cook era apenas aquele sujeito sem uma gota do charme midiático de Steve Jobs encarregado da dura tarefa de substituí-lo à frente de uma das empresas mais poderosas do mundo. Um poder que se traduz não apenas em números gigantescos e sucessivos recordes de vendas, mas em sentimentos extremos de ódio e adoração que tornam a Apple um caso único de empresa dotada de um capital simbólico tão impressionante quanto seu valor de mercado.

Pois esse sujeito pacato, com jeitão de relojoeiro suíço, fez história ao tornar-se o primeiro executivo de uma das 500 maiores empresas americanas a assumir publicamente sua homossexualidade.

Tim Cook saiu do armário da maneira mais discreta possível, publicando um texto na sóbria revista de negócios Bloomberg Businessweek, mas o impacto do gesto, como ele deve ter calculado, foi gigantesco. Não por se tratar de um fato surpreendente – mesmo sem dizer uma palavra sobre o assunto, ele já era considerado um dos gays mais influentes do planeta – mas pelo significado simbólico do pronunciamento.

Citando Martin Luther King, Cook disse que a questão mais urgente que cada um precisa se colocar todos os dias é o que tem feito pelo bem de outras pessoas. “Cheguei à conclusão de que meu desejo de privacidade estava me impedindo de realizar algo mais importante. E é isso que me traz aqui hoje”, afirma no texto, comparando a decisão de expor sua intimidade a um “tijolo” na construção de um mundo mais justo e igualitário. (Um caminhão de tijolos, eu diria.)

A citação ao mártir da causa dos direitos civis nos Estados Unidos não é gratuita. A longa e dolorosa batalha dos negros americanos pela igualdade tem vários pontos em comum com a luta da comunidade LGBT em curso atualmente em boa parte do mundo. Uma mudança de cultura que se consolida em várias frentes ao mesmo tempo, das manifestações de rua à votação de leis mais inclusivas, de artigos na imprensa a séries de TV.

E que marcha ao redor do globo de forma tão desigual quanto o dinheiro – dos extremamente liberais nórdicos à legislação medieval dos grotões da África, passando pelos altos índices de crimes homofóbicos registrados no Brasil todos os anos. Nesse ambiente de transformação de mentalidades, foi um gesto de inteligência política de Barack Obama manifestar-se a favor do casamento de pessoas do mesmo sexo em 2012. Tim Cook não é presidente dos Estados Unidos, mas é o símbolo de um valor mais caro ao americano médio do que a própria democracia: o sucesso pessoal e financeiro.

Por que malucos ensandecidos fazem fila para comprar o novo modelo do iPhone? Não faço a mínima ideia, mas entendo que a Apple conseguiu chegar aonde chegou associando sua marca com inovação e simplicidade. Tim Cook parece ter aplicado à própria vida um dos princípios que a empresa sempre valorizou: antecipe para onde a maré vai e chegue lá antes dos concorrentes.


E que tal essa como ironia histórica? Há exatos 60 anos, em 1954, o matemático britânico Alan Turing, considerado o pai da computação, cometeu suicídio depois de ter sido obrigado a submeter-se a um humilhante tratamento químico para “curar” a homossexualidade. Turing se matou comendo uma fruta envenenada – aquela mesma que hoje estampa todos os computadores da Apple.