sábado, 10 de agosto de 2013


11 de agosto de 2013 | N° 17519
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

LIVROS QUE ME ESPERAM

Tenho cá nas minhas estantes uma coleção em sete volumes encapados em couro publicada em 1964 pela Editora das Américas, o “Dicionário da Sabedoria”. Na verdade, uma deliciosa coleção de frases célebres. Por exemplo, no verbete “cabelo” há a seguinte preciosidade, de autoria de Longfellow:

“Nem dez parelhas de bois nos puxam com a mesma força com que o fazem os cabelos de uma mulher”.

Ou uma melhor ainda, de Publílio Siro:

“Também um simples cabelo tem a sua sombra”.

Não é uma maravilha de reflexão?

Lá encontrei este verso do gênio espanhol Lope de Vega a propósito de “caducidade”:

“Aprendei de mim, ó flores, o que vai de ontem a hoje; que eu ontem maravilha fui e hoje sombra do que fui não sou”.

Lope de Vega. Sabia brincar com as palavras.

São muitos os livros que estão esperando pela minha atenção. Volta e meia tomo um nas mãos, examino-o, chego a acariciá-lo, leio um ou dois parágrafos e fecho num suspiro: ainda não é tempo.

Tempo, tempo, preciso de tempo para ler os 10 alentados volumes de “Os Grandes Processos da História”, de Henri Robert. E os tijoludos tomos da “Biblioteca Internacional de Obras Célebres”, 25 deles, cada um com pelo menos um milheiro de páginas, quando encontrarei tempo para encará-los? E a “História de Portugal”, de Alexandre Herculano? Tenho que ler a História de Portugal, de Herculano. Lembro-me de quando adquiri essa coleção. O Cyro Martins, diretor da Gaúcha e meu amigão, comentou:

– Esse livro tem de ser lido com calma, acomodado numa poltrona confortável, acompanhado de um bom vinho.

Vou fazer isso um dia, Cyro. Juro que vou. Tempo, tempo. Sobre “tempo”, o “Dicionário da Sabedoria” registra uma frase de Flaubert:

“O futuro tormenta-nos e o passado retêm-nos. É por isso que o presente nos foge”.

Um homem cruel, mas fascinante

Um dos livros que me esperavam, encontrou-me. Terminei esta semana de ler “Conquistador”, de autoria do jornalista americano Buddy Levy, edição da Objetiva. Relata a conquista do Império Asteca pelo inteligentíssimo, crudelíssimo, gananciosíssimo espanhol Hernán Cortés.

Uma bela obra sobre de uma gigantesca façanha.

Cortés arrebatou um império vasto como meio continente, pintalgado de cidades desenvolvidas e bem organizadas, maiores e mais belas do que as da Europa da época, habitadas por milhões de homens industriosos. Pois sabe como conquistou tudo isso? Desembarcando de suas naus nas praias mexicanas com 500 mercenários e 16 cavalos.

Uma proeza improvável, talvez única na crônica dos imperialismos mundiais. Os historiadores explicam sua vitória pela superioridade das armas europeias e pela perplexidade dos astecas com os cavalos, bestas que eles nunca tinham visto antes, e que pisavam com seus cascos no chão da Mesoamérica pela primeira vez desde a Idade do Gelo.

Foi mais do que isso.

Cortés venceu por sua astúcia, por seu carisma e pelo sentimento de lealdade que conseguia despertar nas pessoas. Ou seja: venceu por dispor de boas qualidades humanas.

É estranho dizer isso de um homem que mandava torturar, matar, mutilar e até queimar pessoas vivas, mas ele devia ser um sujeito fascinante. Arrebatava aliados inclusive entre os seus inimigos. Verdade que, não raro, um punhado de ouro o ajudava na tarefa de convencimento, mas, ora, seus inimigos também tinham ouro.

Certa feita, um de seus oficiais tentou traí-lo. Ele descobriu a trama e, como punição, mandou que lhe decepassem parte dos dedos de um dos pés. Depois da sentença cumprida, a ferida cicatrizou e os ressentimentos do homem também. O oficial se tornou um de seus assessores mais leais e foi designado para missões de alta confiança, saindo-se a contento.

Montezuma, o orgulhoso imperador asteca, ficou fascinado com Cortés, submeteu-se a ele quase que sem resistência, achicou-se, humilhou-se e, por fim, foi destruído mais psicológica do que militarmente.

Numa derradeira prova de suas habilidades, Cortés angariou simpatias até entre as pessoas da Civilização que estava prestes a destruir. Seus principais aliados eram índios tributários do Império Asteca, e a pessoa que mais o ajudou foi também uma índia, Malinche, sua intérprete e amante.

Malinche é grande personagem. Foi dada de presente a Cortés pelos tabascos, que não eram aquele molho de pimenta que tanto aprecio, mas índios locais que a haviam escravizado anos antes.

Malinche era linda e inteligente. Logo aprendeu o castelhano e serviu de intérprete e amante de Cortés. Teve com ele um filho, Martín, considerado o primeiro mexicano, já que foi o primeiro mestiço. Mas Malinche não é venerada como a mãe de todos os mexicanos, como deveria. Não poucos a classificam de traidora, e não por acaso.

A lealdade de Malinche era propriedade de Cortés. Ela foi imprescindível no trato com os índios, inclusive na comunicação com o imperador Montezuma. Um dia, Malinche descobriu uma sublevação asteca, denunciou-a e salvou Cortés. Agiu contra os seus iguais e a favor de um europeu branco e barbudo. Mas não pense mal dela. Pense que muito do que acontece, na História, se deve ao contexto. O contexto, este incompreendido.

Mas, como eu dizia, Cortés conquistava pessoas antes de conquistar impérios. Não era um homem comum, e certamente era um homem do seu tempo. Um tempo duro, de homens duros. Tempo, tempo.

A banalidade do mal

Pode-se dizer que Cortés e os conquistadores espanhóis foram o Mal do seu tempo, o século 16. Pelo menos o foram para incas, maias, astecas e outros povos que quase dizimaram. Mas a representação imbatível do Mal em todos os tempos é, sem dúvida, Hitler e o nazismo. Porque é fácil identificar o Mal na figura grotesca de Hitler e no ambiente sombrio da Alemanha nazista. O problema é que o Mal nem sempre se apresenta assim tão abertamente, tão descaradamente. Seria fácil, se fosse sempre assim.

O Mal pode ser suave, pode ser risonho. E pode ser banal. Hannah Arendt, ao cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, nos anos 60, viu a banalidade do Mal. Eichmann não chegou a usar as próprias mãos para matar nenhum ser humano, mas foi o idealizador e o organizador dos campos de extermínio. Mandou milhões para a morte. Porém, confinado a uma jaula de vidro durante o julgamento, apresentou-se como um sujeito comum, um qualquer. Hannah Arendt disse sobre ele:

– Realmente, acreditava que Eichmann era um brincalhão, e digo que li, e me detive particularmente nas declarações que prestou no interrogatório policial, 3.600 páginas, e que não sei quantas vezes cheguei a rir... gargalhar!


Hannah foi perseguida implacavelmente depois de ter publicado suas impressões sobre Eichmann. Sua história está sendo contada em um filme ora em cartaz nos cinemas. Assista. E veja que o Mal, mesmo quando banal, continua sendo o Mal.