sexta-feira, 17 de abril de 2020


17 DE ABRIL DE 2020
EDUARDO BUENO

Rubem Moraes Moreira da Fonseca


O diário do ano da peste segue escrevendo errado por linhas tortas, uma página sombria após a outra. Mas nada nos impedirá de abrir nossas portas e janelas - dos olhos, do coração e da mente - para, uma vez mais, ver o sol nascente da música de Moraes Moreira. Nem evitará que sigamos perplexos ante a brutalidade lírica, as vastas emoções e os pensamentos imperfeitos de Rubem Fonseca, que turvou as águas da literatura para deixar os marinheiros de primeira viagem à deriva no mar de letras, e delegou a pieguice, a sandice e a mesmice para o exílio entre folhas secas.

Moraes Moreira veio nos chamar enquanto corria a barca - a barca do céu e do inferno, o barco ébrio, a nau dos sensatos singrando os sete mares, caravelas ao vento. Moraes, baby do Brasil! Moraes boca de cantor! Moraes galvanizado! Moraes de Dadi, Dodô e Osmar, tingindo a cor do som! Moraes Pepeu legal: Castro Alves elétrico, na praça que é do povo, com frevo, fervor e cerveja.

Moraes Gil Moreira, Moraes como Vinicius, andando sobre as águas na comuna de Jacarepaguá. Moraes, valente como Assis, no pandeiro da batucada do seu Jackson, Mr. Tamborine Man, misturando chiclete com banana-da-terra na terra do Tio Sam, na Casa Branca, na Casa Rosada dessa gente bronzeada. Moraes batendo bola com João, dando caneta, dando bandeira, queimando até a última ponta, fundindo a cuca dos caretas, dos coroas, dos loucos de cara. Moraes Moreira da Silva, da selva, do céu e da Boa Terra! Apertou, acendeu e ascendeu agora. Imagine Moraes Moreira: um pássaro que vive avoando, sem nunca mais parar. Ai, ai, saudade, não venha nos matar. Se esta vida é um sonho, ele partiu dormindo, aos 72.

Mas não acabou! Não chorare! Cantare - e volare! Porque Novos Baianos passeiam pela nossa garoa, e Novos Baianos sempre nos fizeram curtir numa boa!

Mais difícil é curtir numa boa com Rubem Fonseca. Sua prosa é afiada feito navalha, as palavras como projéteis, vertendo chumbo quente a sangue frio. Rubem Fonseca era um boxeador: escrevia para nocautear. Sua prosa tem vísceras, ossatura e nervos de aço. Fonseca, um canto torto feito faca, cortando a carne com grande arte: mágico, qual Mandrake. Ele fez contos curtos, romances negros, literatura noir, com os clarões de sua prosa viril rescendendo a álcool e tabaco, destilando talento, Rubem Fonseca definiu o Brasil com a rispidez de uma manchete de jornal. Partiu aos 94, quase centenário.

Tive a bênção de encontrá-lo sob os céus de Berlim. E presenciamos, por puro acaso, a queda do muro - um dos estertores do século 20. Nos separamos naquele dia, cada um levando consigo um pedaço do muro da vergonha, marchando em direção a um século que julgávamos que seria melhor do que este que ora nos assombra.

EDUARDO BUENO

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